O austericídio segundo Varoufakis e Costa-Gavras

O austericídio segundo Varoufakis e Costa-Gavras

A semana cinematográfica, entre outros temas tensos e preocupantes que permeiam os nossos dias, é do cineasta grego Konstantinos Gavras, mais conhecido como Costa-Gavras. Com 91 anos de idade, ele volta à mesma Croisette que lhe deu estrepitosa fama premiando o histórico filme Z, em 1970, desta vez como grande homenageado. Cannes está lançando uma série para streaming, de Yannick Kergoat, intitulada Le siècle de Costa-Gavras*, com dezepisódios; e torcemos para que chegue logo aqui.

Acrescentando à homenagem do Festival de Cannes que está em curso até o dia 20, o debate sobre política econômica com ressonância cada vez mais ampla na população brasileira de hoje, relembrar o mais recente longa metragem de Costa-Gavras, o documentário Jogo do Poder **, de cinco anos atrás.

Assisti-lo ou revê-lo é mais que oportuno.

Sobre Adults in the Room, título original do filme, disse o cineasta grego em entrevista concedida ao crítico de cinema Rodrigo Fonseca: “Com o descrédito das lutas de classes, a religião mais poderosa que existe neste mundo se chama dinheiro, uma força amoral que não guarda respeito por nada”.

O tema central desse seu filme é baseado no livro de memórias de Yanis Varoufakis, Adultos naSala: Minha Batalha Contra o Establishment. Nele, o ex-ministro das Finanças da Grécia relata a sua renúncia ao cargo meses depois da vitória da forte coligação de esquerda liderada pelo partido Syrisa, que chegara ao poder nas eleições de janeiro de 2015.

Diz Costa-Gavras: “A intenção era salvar os bancos, e a Grécia acabou endividada. A dívida é maior hoje do que há 10 anos. Salvaram os bancos e destruíram o país”.

O filme de cerca de duas horas é fluente, fascinante porque ancorado nos bastidores e nas manobras hipócritas e/ou cínicas do eurogrupo formado pela Troika (Comissão Européia, Banco Central Europeu eFMI) durante as reuniões com os representantes do governo do então primeiro-ministro grego de esquerda Alexis Tsipras.

O roteiro teve a assessoria do próprioVaroufakis e é movido por um tom de humor crítico e fino que cativa o espectador leigo em economia política. Permite a compreensão fácil do que se discute apenas com alguns breves laivos de economês que são digeríveis.

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De um lado, os bancos credores, em Frankfurt, insistindo na austeridade econômica radical do país e dos gastos do governo do Syriza à custa do sacrifício da população grega espoliada durante a ditadura, e naquele instante depauperada. Do outro lado, os devedores insistindo em fechar acordos viáveis de reestruturação da sua monumental dívida, mas que não deviam de nenhum modo significar não austeridade, mas o austericídio do contribuinte grego.

É clara a cena com a anotação de um dos representantes da economia européia que àquela época ainda não fazia água como hoje. O close de uma mão rascunhando, durante uma das reuniões com direito a bate-bocas, o conhecido acrônimo depreciativo: “PIGS: Portugal, Itália, Irlanda, Grécia, Espanha“.

Em mais de uma sequência, o aviso vindo de todos os lados, também nas reuniões e nos bastidores: os europeus da poderosa aliança de direita iriam, no futuro, fazer tudo para tirar o Syriza do poder. Nas bordas dos encontros, menções ao jogo duplo de Angela Merkel, as pressões dos bancos para submeter os gregos, as manobras para dividir a esquerda grega (o que acabaram conseguindo) e a resistência de um Varoufakis, economista brilhante, de esquerda raiz, mas sem a malícia ou o cinismo dos espécimes políticos. No filme, em certo momento, ele faz a observação: “Essa é uma crise econômica para a Grécia, mas uma crise existencial para a Europa que não consegue enxergar a crise humanitária grega”.

Numa sequência final, Costa-Gavras usa a coreografia de um delírio, em linguagem realista/mágica, com um Tsipras acuado e sem saída diante da situação. Era “aceitar as medidas de austeridade ou fechar os nossos bancos”, ele conclui.

E lembramos que o título original do documentário, Adults in the Room, é inspiração retirada de uma frase proferida em voz baixa pela todo poderosa Christine Lagarde, diretora do FMI na época, durante uma reunião com direito a bate-boca. Ela também é personagem do documentário.

*O episódio da série mostrada em Cannes, esta semana, é intitulado La Vérité Est Révolutionnaire – L’Aveau.

**Neflix e Amazon Prime.

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