O século de ouro de Bernstein

O século de ouro de Bernstein

Leonard Bernstein, “o primeiro grande maestro americano” como ressalta o filme escrito, dirigido e protagonizado pelo ator Bradley Cooper, era descendente de família judia ucraniana emigrada para os Estados Unidos e foi um venerado ícone da cultura americana dos anos 50/60.

Agora, esse compositor e célebre regente da Orquestra Filarmônica de Nova York acaba de ganhar uma boa cinebiografia com três indicações para o Globo de Ouro de 2024 e, certamente, será um forte candidato ao Oscar do ano que vem. Maestro está no grupo dos filmes mais assistidos no streaming, neste fim de ano.

A produção, bancada nada menos do que por Martin Scorsese e Steve Spielberg, não trata da carreira profissional de Bernstein. Quem espera um filme musical com peças conduzidas por Bernstein sairá decepcionado. O roteiro segue o regente no seu perfil humano, na trajetória familiar afetuosa com a mulher e os três filhos e na sua rotina sexual como gay– ou bissexual. Ambas revolucionárias e vivenciadas intensamente em uma época puritana do pós-guerra americano e considerando a grande exposição pública do regente, uma superestrela do seu tempo.

Até então, na música erudita, os grandes compositores e regentes em atividade eram europeus. Além de Bruno Walter, os mestres Toscanini, Karl Böhm, Stokowski, Furtwangler, o russo Koussevitz entre tantos outros.

O filme enfatiza o profundo amor que Bernstein viveu com a atriz Felicia Montealegre (Carey Mulligan), com quem casou e viveu durante 25 anos e, principalmente, a absoluta intensidade existencial do maestro que fez dele, além de um grande artista, alguém especial. Um homem íntegro, um homem livre, com uma força de vida e uma paixão pela música, excepcionais.

Maestro tem início com o episódio do maestro, em 1943, aos 27 anos de idade, sendo chamado de manhã, de repente, para substituir o lendário regente alemão Bruno Walter, de quem era assistente na Filarmônica, para um concerto no Carnegie Hall à noite. Ao terminar o concerto ele deixou o teatro ovacionado pela multidão que lotava a sala e se consagrava como uma nova grande estrela.

Nesse começo do roteiro escrito por Cooper e por Josh Singer (Oscar por Spotlight), este último um dos craques do cinema moderno americano, já fica indicado o tom do filme.

Bernstein salta da cama onde dormia com um namorado (provavelmente o clarinetista David Oppenheim com o qual manteve um romance prolongado) e inicia o seu destino lendário na música erudita e na autoria de trilhas sonoras inesquecíveis como a do filme Sindicato de Ladrões e, em particular, de um dos ícones da Broadway, o musical West Side Story/Amor, Sublime Amor, letra de Stephen Sondheim, com o qual redefiniu esse gênero do cinema americano.

Em 1976, o maestro saiu de casa para morar com seu amante, Tom Cothran, mas a separação da mulher durou pouco mais de um ano. Em 1978, Felícia foi diagnosticada com câncer no pulmão e Bernstein voltou imediatamente para a mansão do casal para acompanhá-la e ajudá-la nos seus últimos meses de vida. A atriz faleceu pouco tempo depois.

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Bradley Cooper levou anos trabalhando em Maestro, um tema e um personagem que o apaixonavam. Chegou a se submeter a uma prótese no nariz para se assemelhar o máximo possível a Bernstein na meia idade e aperfeiçoou uma interpretação dele extrovertida, sempre alegre, cheia de energia, de entusiasmo pela vida e paixão pela música onipresentes, e por vezes exagerada e até desabusada buscando encarnar e reviver com o máximo de realismo o impetuoso personagem.

Há quem ache Maestro um filme pedante e pretensioso. É curioso porque na sua primeira parte ele, até em alguns momentos, passa essa sensação, de cinebiografia modelo dejá vu para o espectador. Mas a partir dos “tormentos vividos por uma personalidade dividida”, como chega a comentar com amigas a sua mulher, Felícia, os dois atores, Cooper e Carey Mulligan, amadurecem com seus personagens e iniciam um brilhante show de trabalho dramático.

Algumas sequências são tocantes: a delicada conversa que Bernstein tem com a filha mais velha, Jamie, adolescente universitária que sofre com as fofocas sobre a vida sexual do pai famoso, e a deixam perplexa. Outra: a energia com que o regente procura Felícia, nos bastidores do teatro, ao fim de uma das suas apresentações avassaladoras, e os dois se abraçam apaixonadamente. E a observação da sua mulher, também em conversa com amiga, durante o período da separação do casal: “Desde o começo eu soube quem era Leonard. Não houve desonestidade da parte dele de omitir sua sexualidade. Se alguém foi desonesta, não foi ele”.

Foi em uma galeria de gênios que ‘Bern’, como era carinhosamente chamado pelos amigos e pela multidão de admiradores, entrou para a posteridade. Esse contexto de época falta ao filme de Cooper, que se concentra nos “tormentos de uma personalidade dividida”, como define Felícia durante outro diálogo.

Do ponto de vista formal, há sequências em preto-branco mescladas a outras, em cor, gratuitas e maneiristas. E outra falta que se sente no filme é a ausência de contextualização, do ambiente da vida como ocorria, na época do maestro: o século americano do pós Segunda Guerra Mundial, quando a indústria cultural dos Estados Unidos era adorada, copiada e consumida pelo mundo ocidental.

Hoje, o cinema americano saúda, com alguma nostalgia, e com frequência se alimenta de várias das biografias dos titãs dessa época de ouro do Império do Norte que começa a se desfazer.

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