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Uma intensa forma de vida

Uma intensa forma de vida

Mais uma vez o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, de 74 anos, se reafirma como um dos grandes diretores de cinema em atividade. Inteligente, profundo conhecedor da indústria de filmes, e também da alma humana –, e trabalhador que adora o ofício que exerce. Em plena pandemia de covid-19, com todos os cinemas de portas fechadas e no vermelho, o mundo aterrorizado e encastelado dentro de casa, ele percebeu que não devia nem podia parar de trabalhar e realizou, com um orçamento ridículo, um curta-metragem de 31 minutos, barato em termos de produção, porém rico, complexo e milionário na perspectiva de eficiência de marketing utilizando um dos principais temas que foram iluminados, sem hipocrisia, pela sociedade desse século.

No belo filme-instantâneo, Estranha Forma de Vida,o cineasta nascido em Calatrava coloca o mundo LGBTQIA+ sacramentado, exaltado e instalado no cenário machista do faroeste americano, emoldurado por uma paisagem brutal e áspera e na sua complexidade, mergulhado nas tintas e cores das paixões.

Esse é o segundo curta-metragem em língua inglesa dirigido por Almodóvar. O primeiro, realizado nessa experiência dele nos curtas, foi The Human Voice, de 2020, (30 minutos) com Tilda Swinton. Onde ele flagrou um instante de desespero de uma mulher que acaba de ser abandonada pelo amante. Em A Voz Humana ela vê o tempo passar ao lado das malas do ex-namorado que não chega para apanhá-las e o cachorro dele que, inquieto, não entende que seu dono o está abandonando também. “São dois seres vivos enfrentando o abandono da mesma pessoa”, diz o diretor, em entrevista na época.

Extraña forma de vida (Strange Way of Life) funciona também como uma outra ‘anotação‘ pontuada de reticências que atraem o espectador deixando-o refletir durante muito tempo após o seu final sobre as implicações e decorrências apenas sugeridas no argumento do diretor.

O ator Ethan Hawke fazendo o xerife Jake e as cores típicas do cinema de Almodóvar – verde, azul, amarelo e sempre o vermelho, segundo ele uma cor ‘essencial’ – são os dois grandes trunfos do drama.

O resumo: depois de 25 anos, o fazendeiro Silva (ator chileno Pedro Pascal, também convincente na ambiguidade do seu personagem) atravessa o deserto a cavalo para, aparentemente, visitar seu amigo, Jake, xerife da cidade. Os dois, que viveram um caso de paixão e amor no passado, comemoram o encontro, mas na manhã seguinte às comemorações Jake cobra do rapaz o motivo de sua viagem. Ela não teria sido feita para relembrar a amizade dos dois e a atração que os dois amantes experimentaram um pelo outro quando ainda jovens.

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A intimidade de ambos é compartilhada, lembranças são revividas, cobranças são feitas e a reconciliação se dá na cama, em uma noite de, mais uma vez, intensa paixão. E tem mais: a descoberta da ligação de ambos com um crime local recente, na cidadezinha, sugere que o reencontro provocado por Silva vai além de uma viagem sentimental.

O dispositivo que detonou Almodóvar para filmar essa presente história, segundo ele afirma em entrevista, foi a pergunta lançada durante um diálogo do célebre filme, o oscarizado O Segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee (2005), para o qual o próprio cineasta chegou a ser cogitado participando das primeiras reuniões da produção.

Ele diz que acabou não fechando a direção do filme porque não teria liberdade total para conduzir o drama.

“O que dois caubóis vão fazer vivendo sozinhos num rancho isolado e distante?” (“What would two men do in the West, working on a ranch?”) é a pergunta que um amante faz ao companheiro, no filme de Lee, quando esse propõe comprarem uma fazenda isolada e lá viverem juntos. Em Estranha Forma de Vida Almodóvar responde: “Vamos viver cuidando um do outro”.

“De muitas maneiras “, disse Almodóvar em recente entrevista ao New York Times, “o meu filme responde àquela pergunta”.

O título do curta de agora é o mesmo da canção regravada por Caetano Veloso, grande amigo de Almodóvar, no disco Fados. Com toda a sua pungência, é a voz de Caetano, inesquecível em um instante de beleza e de melancolia ímpares que anuncia o início da trama. A trilha sonora, atenta todo o tempo com suas observações, foi montada para o filme por Alberto Iglesias. É sensacional.

Estranha forma de vida, filmado em plena época de “desânimo, tédio e confinamento”, como acentua Almodóvar, arrasta hoje multidões aos cinemas. Na sua exígua, porém intensa meia hora de duração, o curta sugere dezenas de outros filmes que podem ser desenvolvidos pelos dois personagens na fantasia do espectador. Argumentos de tramas tão emocionantes quanto os que se encontram embutidos nas reticências dessa bela anotação cinematográfica.

*Filme no Mubi. Leia mais clicando aqui

*Imagem em destaque: Ethan Hawke e Pedro Pascal, em cena de Estranha Forma de Vida, de Pedro Almodóvar (MUBI/divulgação)

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