Crises da desigualdade: deslocar o poder para um novo contrato eco-social

Crises da desigualdade: deslocar o poder para um novo contrato eco-social

por LADISLAU DOWBOR. A United Nations Research Institute for Social Development (UNRISD), agência da ONU, publicou um relatório sobre como a desigualdade se estrutura e se aprofunda entre as nações e dentro delas, e como podemos batalhar um novo contrato ecológico e social. Uma ferramenta de trabalho poderosa pelo realismo e clareza nos dados e…

Crises of inequality: shifting power for a new eco-social contract (Crises da desigualdade: deslocar o poder para um novo contrato eco-social) – UNRISD, 22 de outubro de 2022. Acesse a íntegra do Resumo Executivo (35 p.) e do Relatório Completo (348p.)

A agência da ONU UNRISD (United Nations Research Institute for Social Development) publicou um relatório fundamental sobre como se estrutura e aprofunda a desigualdade no planeta, entre nações e dentro delas, e como podemos batalhar um novo contrato ecológico e social, “eco-social contract”, centrado simultaneamente nos desastres sociais e ambientais. Diferentemente de outros relatórios da ONU, que apresentam os dados sobre as nossas desgraças mas ficam no lamento, este aponta os mecanismos que as geram, as corporações e a financeirização que as controlam, e inclusive o desmonte das democracias, o que reduz a própria capacidade de enfrentarmos os desafios. É uma ferramenta de trabalho poderosa, pelo realismo e clareza nos dados e nos argumentos.

A compreensão de que estamos enfrentando uma crise sistêmica, e não de um sistema apenas deformado, que precisaria de “ajustes”, está se generalizando no planeta. Frente a uma situação surrealista em que uma economia globalizada está ancorada na moeda de um país, o dólar dos Estados Unidos – que não se privam de emitir à vontade – vemos importantes fontes se referirem à necessidade de um novo Bretton Woods, portanto um novo pacto financeiro mundial. Lembrando que este pacto data de 1944, com os Estados Unidos no leme, sendo gradualmente desfigurado com o abandono do lastro-ouro em 1971, enquanto a regulação financeira (lei Glass-Steagall, 1933) foi enterrada pelo governo Clinton em 1999. Hoje enfrentamos o vale tudo que chamamos de neoliberalismo, nome de aparência técnica, como se se tratasse de “ciência econômica”, e não de apropriação indébita, de enriquecimento sem a contrapartida produtiva. O aumento explosivo da desigualdade resulta em grande parte desta forma de apropriação do produto social por minorias improdutivas.

O dreno financeiro que hoje enfrentamos é também apresentado em outro relatório da ONU, o Trade and Development Report 2022, da UNCTAD, que aponta a ruptura entre as finanças e a economia real (decoupling of finance and the real economy): “Neste ambiente de altos lucros e baixo investimento, a engenharia financeira se tornou um instrumento de comportamento de rentismo (rentseeking behaviour), em particular entre as maiores corporações internacionais. Graças ao seu poder de mercado, elas frequentemente têm gerado mais renda a partir da manufatura de escassez do que da produção de bens ou fornecimento de serviços. A ampliação de tal comportamento por meio de monopólios de conhecimento, fusões e aquisições, contratos governamentais etc. tem sido acompanhada pela evasão fiscal sistemática, inclusive a canalização dos lucros por meio de paraísos fiscais offshore, o correspondente crescimento de fluxos fiscais ilícitos e o uso generalizado de aquisições alavancadas e recompras de ações.”[1]

Mencionamos aqui este outro relatório da ONU, porque detalha os mecanismos da financeirização, que permitem que o enriquecimento seja desconectado da produção. Aqui, vai por terra um fundamento essencial da teoria econômica herdada do passado, dita ortodoxa, de que o enriquecimento individual se transforma naturalmente em crescimento da prosperidade para todos. O principal mecanismo de enriquecimento não gera mais capital produtivo, pelo contrário, trava a economia, e resulta nos nossos desastres econômicos, sociais e ambientais. A ruptura entre o enriquecimento financeiro e a economia real significa que o sistema se tornou contraprodutivo. Segundo o relatório da UNRISD, “as presentes desigualdades extremas, destruição do meio ambiente e vulnerabilidade a crises não constituem um defeito (flaw) no sistema, mas uma sua característica. Apenas uma mudança sistêmica em grande escala pode resolver esta situação desastrosa.”(p.1). Conforme o documento, o mundo está em “estado de fratura” (state of fracture): “Um sistema no qual uma crise sanitária global permite dobrar a riqueza das 10 pessoas mais ricas do mundo, enquanto empurra mais de 120 milhões de pessoas para a pobreza extrema, sinaliza um contrato social rompido, deixando para trás um número muito excessivo de pessoas e falhando na proteção do nosso planeta.”(p.2)

Os dados básicos desta desigualdade são conhecidos: os 5,3 bilhões de adultos no planeta possuem uma riqueza pessoal acumulada de 463,6 trilhões de dólares, o equivalente a 88 mil dólares por pessoa (cerca de 450 mil reais). O mundo não é pobre. Mas 1,2% dos adultos do planeta têm uma riqueza acumulada de 221,7 trilhões de dólares, 47,8% do total, quase a metade. Os 53,2% dos adultos do planeta, 2,8 bilhões de pessoas, possuem apenas 5 trilhões, 1,1% do total. É impressionante constatar que bastaria tirar 2% da riqueza dos mais ricos, coisa que mal notariam, para dobrar a riqueza da metade mais pobre da população mundial. E o processo se agrava: “Nas últimas três décadas, o 1% de cima da humanidade capturou quase 20 vezes o montante de riqueza dos 50% na base. Essa concentração de riqueza e de renda no topo é ao mesmo tempo o resultado e um vetor de poder da elite.”(p.4) A realidade é que esse enriquecimento no topo é essencialmente desconectado da economia real, baseado em ganhos financeiros improdutivo, e praticamente não paga impostos. E o poder que gera permite que se amplie. O que fazem é legal, simplesmente porque são eles que fazem as leis. Mas não é legítimo.

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As crises que resultam são claramente resumidas no relatório: os desafios urgentes (urgent challenges) que enfrentamos incluem: “Uma concentração de riqueza e de renda sem precedentes, e um progresso na redução da pobreza que é um disparate; a captura dos processos políticos e das instituições pelas elites; o aumento da austeridade, privatização de serviços essenciais e redução do Estado; nacionalismo e extremismo de direita bem como um ataque aos discursos e movimentos igualitários e de direitos humanos; insegurança, conflitos e um número crescente de pessoas forçadas a migrar; avanços tecnológicos que criam novas divisões tanto dentro como entre países; e a crise climática e perda de biodiversidade que ameaçam a nossa própria existência.”(p.3) A desigualdade aqui passa a ser vista no plural: “Raça, etnicidade, casta, status de cidadania, genro, identidade, orientação sexual, idade, incapacidade e numerosos outros fatores continuam a desempenhar um papel crucial na determinação dos potenciais e resultados sociais.”(p.4)     

A responsabilidade da convergência explosiva de crises é claramente atribuída ao mundo corporativo: “O ambiente atual de política econômica tende a favorecer atores econômicos poderosos como as corporações multinacionais e grandes empresas, em detrimento de entidades menores…para tornar as nossas economias mais inclusivas, sustentáveis e produtivas, é imperativo repensar e reajustar o papel do estado no desenvolvimento econômico”.(p. 22) Esta “era de financeirização e de hiperglobalização” leva a assimetrias que favorecem “a concentração de rentas [2] bem como a elisão e evasão fiscal pelas maiores corporações multinacionais”. (p. 12) O impacto do neoliberalismo nas últimas quatro décadas, com força dominante das corporações, ameaça o pouco que temos de democracia: “O tecido político democrático é ameaçado pela influência política crescente das grandes corporações, com redução do espaços de políticas públicas  devido às políticas tecnocráticas e condicionalidades que deslegitimam os governos”(p.10).

O pacto eco-social proposto se baseia na situação crítica mundial: “A compreensão de que todos dependemos dos bens comuns globais (global commons) e bens públicos, e de que ninguém estará seguro até que estejamos todos seguros, abre uma janela de oportunidade para criarmos um novo contrato eco-social orientado para maior inclusão social, igualdade e sustentabilidade ecológica.”(p.11) Faz parte do drama o fato que cerca de 2 bilhões de trabalhadores no mundo estão no emprego informal, com uma proporção maior de mulheres, o que representa 61% da força de trabalho global. Menos de 20% dos idosos recebem aposentadoria. “Considerando os laços entre as crises econômica, social, ecológica e política enfrentada no mundo todo, organizações e movimentos estão fazendo um chamado para a criação de um novo contrato social, entre pessoas, cidadãos e governos, e entre pessoas e a natureza.”(p.18)

Não é o caso de esperar a grande transformação. “A ideia básica de um novo contrato eco-social é a de promover um leque de processos deliberativos no nível local, nacional, regional e global, em diferentes setores e com diferentes grupos de stakeholders, para chegar a uma visão compartilhada, objetivos concretos e compromissos e responsabilização nos mecanismos.”(p.19) Trata-se também pela recuperação das narrativas, da própria educação e das universidades, pois “de-colonizar o conhecimento é crucial para deslocar as assimetrias de poder”. (p.20) O Relatório aponta, neste sentido, para um novo equilíbrio das relações entre Estado, mercado, sociedade e natureza, com “políticas sociais transformadoras reforçadas por um contrato fiscal justo, com multilateralismo reimaginado e solidariedades reforçadas.”(p.209)

Sonhos? O aporte do Relatório está no desenho de novos pactos possíveis, mas em particular no fato de apresentar de forma tão clara o que tem sido chamado de “catástrofe em câmara lenta”, e de deixar claro que a desigualdade desempenha um papel central, pois a partir de um certo nível reduz a imensa maioria ao desespero, com erosão dos sistemas democráticos de construção de equilíbrios, e os desequilíbrios sociais, econômicos e políticos tendem para uma cristalização nefasta que trava o desenvolvimento. O que se busca é uma economia social e solidária (SSE – Social and Solidarity Economy), e o controle financeiro é essencial, pois define as prioridades: “As políticas sociais precisam ser financiadas por meio de um contrato fiscal justo, garantindo tanto a sustentabilidade do financiamento como a redução das desigualdades e dos impactos sociais negativos.” Estamos longe dos sonhos de que “os mercados” resolverão os dramas, antes são eles que geram o pesadelo. “Líderes progressistas, cidadania ativa e movimentos sociais precisam juntar esforços para alcançar uma visão verdadeiramente inclusiva do clima e da justiça social.”(p.26)


Notas


1. UNCTAD – Trade and Development Report 2022 – p. 10 – https://unctad.org/system/files/official-document/tdr2022_en.pdf


2. Utilizamos aqui propositalmente o conceito de “renta”, que não está no Aurélio, mas é essencial na compreensão das deformações econômicas: trata-se de renda originada em atividades não produtivas. Lembremos que em inglês income e rent são claramente distinguidas, bem como em francês, com a diferença entre revenu e rente. Na mesma linha, o Relatório aqui apresentado menciona “rentier capitalism”, citando Guy Standing (p.5). O impacto no Brasil é analisado no nosso A Era do Capital Improdutivo (Autonomia Literária, 2018).

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