Empresas transnacionais contra Estados ultranacionalistas
O poder estrutural, no sentido de definir e impor regras e normas internacionais em áreas como comércio, finanças e tecnologia, tem sido historicamente dominado pelas Estados imperiais, especialmente pelos Estados Unidos e seus aliados. Esse domínio se expressa por meio de organizações como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, onde as regras do jogo refletem interesses do G7, ou seja, das potências ocidentais exceto os países emergentes ou BRICS.
Antes da ascensão da China no comércio mundial, o modelo de mercado liberalizado visava a abertura econômica em escala global. Agora, os Estados Unidos contrariam o pregado antes para os países subdesenvolvidos – e querem adotar o criticado: protecionismo e um processo de substituição de importações!
Entretanto, esse poder estrutural ameaçado pelos norte-americanos é, de fato, contraposto pela ação de empresas transnacionais (ETs), muitas delas com origem na América, mas com fortes interesses em mercados locais como o da China. Essas empresas, ao estabelecerem filiais ou parcerias estratégicas em países fora de seus mercados de origem, tornam-se defensoras naturais de uma maior abertura econômica, buscando reduzir barreiras tarifárias, regulações restritivas e políticas protecionistas impeditivas de seu crescimento e competitividade.
A lógica dessas empresas é, em geral, alinhada com a globalização e a integração dos mercados, pois dependem de fluxos de capital, tecnologia e comércio livres de restrições nacionais. Cito, em seguida, alguns exemplos de ETs de origem norte-americana com investimentos significativos na China.
A Apple possui uma vasta rede de produção na China, onde seus produtos, como iPhones, iPads e MacBooks, são montados em grande parte pelas empresas parceiras Foxconn e Pegatron. Além disso, a Apple opera diversas lojas e centros de pesquisa e desenvolvimento em Tecnologia e Eletrônicos na China, e investe em projetos locais de energia renovável para sustentar operações com fontes limpas.
A China representa um dos maiores mercados de consumo para Apple e uma base de fabricação essencial para a cadeia de suprimentos global da empresa. A dependência da Apple no mercado e nas fábricas chinesas é tão alta a ponto de ela impactar o valor de mercado da empresa e o custo de seus produtos globalmente.
A Tesla possui uma fábrica Gigafactory em Xangai, produtora de veículos elétricos Model 3 e Model Y para o mercado chinês e para exportação. É uma das primeiras fábricas estrangeiras de automóveis na China totalmente controlada por uma empresa estrangeira sem nenhuma participação acionária local.
A China é o maior mercado de veículos elétricos do mundo e, para a Tesla, representa uma grande oportunidade de crescimento. A operação em Xangai permite à Tesla evitar tarifas de importação, reduzindo custos e tornando seus produtos mais competitivos no mercado local.
Igualmente, a GM possui uma série de joint ventures na China, incluindo parcerias com a SAIC Motor, como a SAIC-GM e a SAIC-GM-Wuling, responsáveis pela produção e venda de veículos da marca Buick, Chevrolet e Cadillac no mercado chinês. A China é o maior mercado automotivo para a GM, superando as vendas da empresa nos EUA. As joint ventures locais ajudam a empresa a adaptar seus veículos às preferências dos consumidores chineses e a manter um alto volume de vendas no país.
A Procter & Gamble (P&G) possui várias fábricas e centros de distribuição na China, produzindo produtos de higiene e cuidados pessoais, como Pampers, Head & Shoulders e Gillette. Além disso, a empresa investe em pesquisa e desenvolvimento local para adaptar produtos aos gostos e necessidades do consumidor chinês.
A Qualcomm do setor de tecnologia em semicondutores e telecomunicações fornece chips e soluções de tecnologia para muitas empresas chinesas de smartphones, como Xiaomi, Oppo e Vivo. A empresa também investe em parcerias e laboratórios de inovação para apoiar o desenvolvimento do 5G na China.
A China é um dos maiores mercados da Qualcomm em termos de receita. Pretende manter essas relações comerciais apesar das tensões geopolíticas com os EUA.
A Microsoft, também do setor de tecnologia (software e serviços de nuvem), possui data centers e parcerias com empresas chinesas para oferecer computação em nuvem, como o Azure. A empresa tem escritórios de desenvolvimento de software e laboratórios de inteligência artificial na China, além de parcerias com universidades locais para pesquisa. Fez investimentos de longo prazo no país para capturar o potencial de crescimento da tecnologia e da digitalização econômica.
Além desses exemplos, lembro a China ser um dos maiores mercados para a Coca-Cola em volume. Seus investimentos locais têm permitido à empresa se adaptar rapidamente ao mercado e ampliar sua participação com novos produtos voltados aos consumidores chineses.
A Starbucks possui milhares de lojas na China e continua a abrir novos estabelecimentos a cada ano. A empresa também possui centros de treinamento e uma fazenda de produção de café no país, além de um centro de inovação em Xangai. É o mercado com maior crescimento para a Starbucks fora dos EUA.
A China é um dos mercados mais lucrativos para a Nike, especialmente devido à popularidade da marca entre os jovens consumidores chineses. A operação local ajuda a Nike a se adaptar rapidamente às mudanças nas preferências dos consumidores e a manter um fluxo de inovação.
Portanto, empresas como Apple, Microsoft e muitas outras do setor financeiro e tecnológico têm fortes incentivos para pressionar governos e organizações internacionais a manterem mercados abertos e a minimizarem políticas protecionistas. Isso ocorre porque muitas dessas empresas operam em redes globais de produção e venda exigentes de acesso aos melhores mercados, seja para compra de insumos, seja para venda de produtos. Restrições comerciais, tarifas ou políticas de reserva de mercado impõem custos adicionais para essas empresas, prejudicando suas operações e seus milhares de acionistas.
As ETs e os Estados centrais compartilhavam o objetivo de manter mercados globais abertos. No entanto, a tensão surge agora quando os interesses das empresas transnacionais divergem dos objetivos estratégicos dos Estados ultranacionalistas. Por isso, a política de contenção tecnológica dos EUA em relação à China – através de restrições à exportação de tecnologias avançadas – é vista com resistência por empresas americanas possuidoras de grandes interesses no mercado chinês e com pretensão de continuar atuando lá sem barreiras.
A China, com sua abertura seletiva, atraiu e condicionou a operação das ETs para o fortalecimento da sua economia e para a transferência de tecnologia. Ao adotar políticas de incentivo à instalação de empresas estrangeiras em seu território e impor regulações como a exigência de joint ventures, a China promoveu o desenvolvimento interno e atendeu aos interesses das ETs em acessar seu enorme mercado consumidor. A presença dessas empresas transnacionais lá gera uma situação de dependência mútua, atuando as ETs em defesa de um poder estrutural favorável à manutenção de mercados abertos e integrados.
Embora o poder estrutural dos EUA e de outras economias centrais ainda seja dominante, a ascensão econômica da China e o crescente peso das ETs operando fora dos Estados Unidos e Europa tornam mais complexo o cenário de governança global. A pressão por uma governança mais equilibrada e inclusiva em instituições internacionais, capaz de contemplar tanto o poder das ETs quanto o de novas potências emergentes, representa um desafio ao tradicional poder estrutural.
Nesse sentido, há uma “multipolaridade” emergente nas regras do comércio e nas normas internacionais. As ETs e as economias emergentes dos BRICs atuam como forças contrárias ao protecionismo e à dominância unipolar.
Os Estados governados pela extrema-direita se encontram em uma posição ambígua ao lidar com ETs. Embora desejem proteger certas indústrias estratégicas e manter controle sobre setores essenciais, também precisam dos fluxos de investimentos e da presença internacional de suas empresas para seu benefício.
Ao contrário, as ETs, ao defenderem uma maior abertura, atuam não apenas como agentes econômicos, mas também como forças de pressão política sobre os governos para moderarem políticas protecionistas e promoverem uma governança favorável a integração e a cooperação global. As empresas transnacionais impõem um contrapeso ao poder estrutural, buscando influenciar a definição de normas globais para favorecer a abertura externa e reduzir o protecionismo.
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].