Interrelações entre empresas, famílias, bancos, governos e resto do mundo
A alavancagem financeira, o grau de fragilidade financeira e a gestão de reservas são conceitos centrais para compreender a interrelação entre empresas, bancos, governos, famílias e o resto do mundo. Além disso, os bancos desempenham funções-chave na colocação de títulos de dívida pública e no movimento cambial, consolidando seu papel essencial na interconexão entre esses diferentes setores institucionais. Ao explorar essas dinâmicas em detalhes busco evitar o perene preconceito dos denunciantes da “financeirização” sem conhecimento de causa.
A alavancagem financeira refere-se ao uso de empréstimos ou dívida para financiar investimentos com a expectativa de os retornos sobre esses investimentos superarem o custo da dívida. O aumento de escala com uso de recursos de terceiros cria um efeito multiplicador de renda e emprego, permitindo às empresas expandirem suas operações com base em capital alheio.
As empresas utilizam a alavancagem para financiar crescimento, inovação e expansão. Elas contraem dívidas junto a bancos ou através da emissão de títulos corporativos. Quando o retorno operacional supera as despesas financeiras, a alavancagem se torna um instrumento de ampliação de lucros sobre o capital próprio. No entanto, em momentos de crise, o grau de fragilidade financeira aumenta e há risco de insolvência, isto é, faltar recursos para saldar as obrigações contraídas, se as receitas caírem e os custos de financiamento subirem.
Os bancos são cruciais nesse processo ao fornecer empréstimos corporativos, facilitando a alavancagem das empresas. Eles se beneficiam do spread no crédito: diferença entre o pago aos depositantes e o cobrado dos devedores. No entanto, os bancos também estão sujeitos a riscos quando há excesso de alavancagem no sistema e a explosão de uma crise de crédito levar à insolvência geral, impactando todo o sistema financeiro.
A saúde financeira dos bancos e das empresas é interdependente. Se o crédito bancário se restringe (por uma crise de confiança ou regulamentações mais rígidas), as empresas enfrentam dificuldades em se financiar, levando a possíveis recessões. Se muitas empresas se tornam insolventes, devido ao excesso de alavancagem e receitas não confirmadas, os bancos sofrem perdas e quebras.
A gestão de reservas financeiras é essencial para os indivíduos, tanto para enfrentar emergências, quanto para planejar o futuro, seja educação, seja aposentadoria. Famílias mantêm reservas em contas bancárias, em investimentos de menor risco (Tesouro Direto com títulos públicos, depósitos a prazo ou de poupança) e em ativos mais líquidos (ações, fundos de investimento etc.).
Os bancos utilizam as reservas captadas de famílias e empresas para fornecer empréstimos a outros agentes econômicos. A gestão de risco de liquidez é crucial para garantir eles atenderem às demandas por saques e, ao mesmo tempo, investir de forma lucrativa. O Banco Central, por meio da regulação bancária, exige os bancos manterem reservas mínimas para evitar crises de liquidez.
A relação entre famílias e bancos é de intermediação financeira: as famílias confiam suas reservas aos bancos. Estes, por sua vez, alocam esses recursos de forma produtiva na economia. Se as famílias perdem confiança no sistema bancário, por exemplo, por calotes repetidos como na Argentina, sacam seus depósitos, levando a problemas de liquidez nos bancos.
Quando os governos emitem títulos de dívida pública, eles estão essencialmente tomando empréstimos para financiar suas atividades e déficits. Esses títulos são comprados por uma variedade de investidores, incluindo bancos, fundos de pensão, famílias via fundos de investimentos e investidores internacionais.
Os bancos desempenham um papel central na compra e venda de títulos públicos. Esses títulos são considerados ativos seguros e, portanto, os bancos costumam manter uma parte significativa de seus ativos em dívida pública, especialmente em contextos de incerteza. Além disso, os títulos públicos servem como colateral em várias operações interbancárias, facilitando alavancagem e concessão de crédito.
O carregamento de títulos públicos pelos bancos é uma parte importante da estratégia de gestão de risco, porque esses títulos oferecem baixo risco de inadimplência e são ativos líquidos. No entanto, se um governo acumula níveis insustentáveis de dívida, costuma haver preocupações com a solvência do governo, afetando os preços dos títulos e a saúde financeira dos bancos.
O setor institucional “resto do mundo” participa da economia doméstica principalmente por meio de comércio internacional, investimentos diretos no país e fluxos de capital. O movimento cambial reflete a oferta e a demanda por moedas estrangeiras, diretamente ligado a esses fluxos de comércio e capital.
Os bancos desempenham um papel central no mercado de câmbio, facilitando a compra e venda de moedas estrangeiras. Eles intermedeiam transações internacionais para empresas e indivíduos, gerindo fluxos de capital e movimentações cambiais. Além disso, bancos internacionais captam recursos em diferentes moedas e oferecem financiamento em moeda estrangeira, integrando-se aos mercados globais de crédito.
O movimento cambial impacta diretamente as empresas exportadoras e/ou importadoras, as famílias, cujos investimentos podem ser afetados por variações cambiais, e os governos, cuja dívida externa aumenta ou diminui com a oscilação da cotação da moeda estrangeira em moeda nacional. Uma depreciação cambial aumentar os custos de importação e as obrigações externas dos governos e empresas, em reais, afetando toda a economia.
Ao longo do tempo, as interrelações entre esses setores são marcadas por ciclos econômicos, crises financeiras e ajustes regulatórios. Há interdependências.
Em períodos de alta confiança e expansão econômica, os bancos aumentam a concessão de crédito, facilitando a alavancagem das empresas e famílias. Esse ciclo gera crescimento econômico, mas também acumula risco sistêmico, porque o aumento do endividamento pode se tornar insustentável.
O grau de fragilidade financeira indica a prudência no endividamento diante o princípio do risco crescente. É calculado pela relação entre serviço da dívida e retorno esperado. Caso este não se confirme, os agentes econômicos passam de predominantemente protegidos a especulativos dependentes de refinanciamentos ou mesmo a “Ponzi”, caloteiros em juros e amortizações compromissadas.
Quando ocorre uma crise, como a GCF-2008, o excesso de alavancagem e a perda de confiança nos mercados financeiros levam a uma restrição de crédito, com os bancos reduzindo empréstimos, empresas falindo e famílias cortando consumo. A crise bancária se espalha para o setor público, com os governos aumentando a dívida pública para resgatar bancos e estabilizar a economia.
Altas nas taxas de câmbio alteram drasticamente o custo da dívida externa e o valor dos ativos financeiros denominados em moeda estrangeira. Bancos operadores internacionalmente precisam gerenciar ativamente esse risco, assim como empresas multinacionais e governos com dívidas denominadas em outras moedas.
Os bancos são nódulos centrais nas interconexões entre famílias, empresas, governos, operações interbancárias e o resto do mundo. Eles facilitam o uso de alavancagem financeira, gerenciam reservas e viabilizam sistemas de pagamentos escriturais ou digitais.
São fundamentais na emissão e carregamento de títulos públicos, bem como na intermediação cambial. As interações entre os fluxos de crédito, investimento e dívida geram feedbacks dinâmicos, em retroalimentação capaz de moldar a trajetória econômico-financeira ao longo do tempo.
Esse sistema complexo, por ser altamente interdependente, está sujeito a choques, isto é, variações súbitas de preços relativos e/ou cotações cambiais. Podem reverberar de forma significativa entre os setores, exigindo uma gestão cuidadosa de riscos tanto pelos bancos quanto pelos governos e empresas.
A crítica à financeirização é válida para chamar a atenção para os efeitos potencialmente desestabilizadores do sistema econômico-financeiro, especialmente quanto há especulação excessiva com ativos existentes sem criação de ativos novos e crises de crédito por inadimplência. No entanto, há vários equívocos recorrentes porque os denunciantes tendem a simplificar a complexidade do fenômeno, como confundir financeirização com a simples expansão do sistema financeiro, subestimar o papel positivo da intermediação financeira feita por bancos, e ignorar a diversidade de comportamentos entre famílias, empresas, governo, instituições financeiras e o resto do mundo.
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].