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Valor Adicionado em lugar de apenas Valor Apropriado

Valor Adicionado em lugar de apenas Valor Apropriado

A GCF (Grande Crise Financeira), iniciada em 2008, desencadeou uma miríade de críticas ao sistema capitalista contemporâneo:

  1. é demasiadamente especulativo;
  2. recompensa os “rentistas” em vez dos verdadeiros “criadores de riqueza”; e
  3. permitiu o crescimento desenfreado do sistema financeiro, possibilitando as trocas de propriedades privadas de ativos fossem mais recompensadoras diante os investimentos em novos ativos físicos e à criação de empregos.

Os denunciantes da “financeirização” não se atentaram para a fase cíclica de desalavancagem financeira, após o ciclo de expansão com endividamento, quando se busca pagar as dívidas. As sobras de recursos são investidas no mercado financeiro para propiciar o autofinanciamento quando retomar a “normalização” e, depois, novo ciclo de alavancagem financeira, orientado pelo planejamento estatal desenvolvimentista.

Os “reformistas”, sejam neoliberais, sejam desenvolvimentistas, se orientam por Economia Normativa – o que deveria ser – em lugar de Economia Positiva – o que, de fato, é. Pregam como saída da GCF cíclica receitas para reformas desse sistema “disfuncional”, entre as quais, incluem:

  1. tornar o setor financeiro mais focado em investimentos de longo prazo;
  2. mudar as estruturas de governança das corporações para elas se focarem menos nos preços das ações e nos retornos trimestrais;
  3. intensificar a tributação de negócios especulativos rápidos;
  4. restringir excessos nos pagamentos de executivos.

Mariana Mazzucato, em seu livro O Valor de Tudo: Produção e Apropriação na Economia Global (2018), argumentou tais críticas serem importantes, mas permanecerão incapazes de produzir uma reforma real do sistema econômico até se fundamentarem de maneira firme em uma discussão sobre os processos pelos quais o valor econômico é criado. Em outras palavras, enquanto não o lerem e a seguirem…

O valor passou de uma categoria no centro da Economia Política, ligada à dinâmica da produção (divisão do trabalho, custos de produção em transformação), a uma categoria subjetiva ligada às “preferências” dos agentes econômicos. Muitos males, como os salários reais estagnados, são interpretados na Economia Neoclássica em termos das “escolhas” feitas pelos agentes, por exemplo, entre trabalho e lazer.

O empreendedorismo, apresentado como o motor do capitalismo, é visto como resultado de tais escolhas individuais – e não de incentivos e oportunidades oferecidos pelo planejamento estatal. Não é visto como resultado de um esforço coletivo.

Mas “a grande sacada” de Mazzucato, redimindo-se de sua crítica à “financeirização”, é apontar para o fato de o preço ter se tornado o indicador de valor. Caso determinado produto seja comprado e vendido no mercado, ele deve ter valor!

Desse modo, ao invés de uma teoria do valor determinante do preço, os economistas ortodoxos, simplesmente, invertem para uma teoria do preço determinante do valor. Uma narrativa diferente se impôs junto à opinião especializada, espalhando-se para a opinião pública. Com foco nos criadores de riqueza, nos investidores de risco e no empreendedorismo, essa narrativa se infiltrou no discurso político e público.

A ideia-chave passou a ser o valor ser criado no setor privado e redistribuído pelo setor público. Pesquisa recente da FPA (Fundação Perseu Abramo) do Partido dos Trabalhadores sobre “Percepções e Valores Políticos nas Periferias de São Paulo” confirmou: muitos moradores da periferia empobrecida desejam ser empreendedores e utilizam como justificativa as ideias de não ter mais patrão, ter mais flexibilidade para gerir o próprio tempo, poder abrir o próprio negócio para trabalhar perto de casa, além da possibilidade de deixar patrimônio e herança para a família.

Entrevistados aspiram a ideia de tornarem-se empreendedores, citando inclusive negócios próprios já pensados em abrir, mas consideram essa uma realidade ainda distante: seja por falta de capital suficiente ou por não enxergarem como uma possiblidade real para sua classe social. Além disso, chamam a atenção para os riscos de se tornar empresário no “faça por si mesmo”.

O empreendedorismo é muito valorizado: está associado a histórias de ascensão social bem-sucedidas e remete à liberdade de ser ‘dono do seu próprio nariz’ e não dever satisfações a ninguém! Muitos, diante do fracasso, assumem o discurso propagado pela elite e pelas classes médias apontando a burocracia e os altos impostos como empecilhos para o empreendedorismo.

Para oferecer uma mudança real, os desenvolvimentistas no governo devem ir além da solução de problemas isolados e desenvolver uma estrutura para permitir moldar um novo tipo de economia, capaz de funcionar para o bem comum. A mudança tem de ser profunda. Não é suficiente simplesmente redefinir o PIB para IDH ao incluir indicadores de qualidade de vida, abrangendo medidas de felicidade, e tampouco é suficiente tributar a riqueza.

O maior desafio é definir e medir a contribuição coletiva na criação de riqueza, de modo a extração de valor existente ser menos capaz de fazer-se passar por criação de novo valor. A ideia de o preço determinar o valor e de os mercados serem os melhores mecanismos, para determinar os preços, tem todo tipo de consequências nefastas. Em resumo, segundo a Mazzucato (2018), quatro dessas consequências se destacam.

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Em primeiro lugar, essa narrativa estimula quem apenas extrai valor do sistema financeiro e de outros setores da economia. As questões cruciais — quais tipos de atividades adicionam, de fato, valor à economia e quais simplesmente extraem valor para os vendedores — nunca são feitas e a economia permanece estagnada.

Na verdade, a inovação subjacente e o desenvolvimento tecnológico em empresas está intimamente interligado a decisões tomadas por governos eleitos e a investimentos feitos por escolas, universidades, órgãos públicos e até mesmo instituições sem fins lucrativos. Os líderes empresariais não estão dizendo a verdade quando afirmam os acionistas serem os únicos capazes de aceitar riscos reais, merecendo, portanto, a maior parte dos ganhos obtidos com os negócios.

Em segundo lugar, o pensamento de preço determinar o valor estimula as empresas a colocarem mercados financeiros e acionistas sempre como prioridades, oferecendo o mínimo às outras partes interessadas. Desvaloriza e amedronta criadores de valor reais e potenciais, fora do setor empresarial privado. Não é fácil se sentir bem consigo mesmo quando você está sendo visto como “um entulho” e/ou parte do problema…

Os atores públicos são coagidos a imitar os privados, com seu interesse quase exclusivo em projetos de retorno rápido. Quando qualquer empresa privada ganha bilhões de dólares para acionistas e muitos milhões para altos executivos, você provavelmente não vai pensar esses ganhos virem em grande parte da alavancagem do trabalho feito por outras entidades, sejam elas agências governamentais, instituições sem fins lucrativos, ou conquistas alcançadas por organizações da sociedade civil, inclusive sindicatos.

Em terceiro lugar, essa narrativa de O Mercado como Deus confunde os legisladores. Apostam nos mecanismos do mercado, enquanto políticas públicas seriam apenas uma questão de ajustes aqui e ali. O importante é ser visto como “simpático aos negócios”.

Reguladores acabam sendo pressionados pelas empresas, induzidos a endossar políticas capazes de tornar os incumbentes ainda mais ricos — aumentando lucros, mas sem efeito sobre o investimento. Por exemplo, reduzem o Imposto sobre Ganhos De Capital.

Em quarto lugar, a confusão entre lucro e rentismo aparece na forma como se mede o crescimento em si: o PIB. Se qualquer coisa com um preço é valor, então, a forma como a contabilidade nacional é feita não será capaz de distinguir criação de valor de extração de valor e, portanto, políticas voltadas para a criação de novo valor se confundem com a extração de valor existente. Trocas de propriedade privada não adicionam valor!

Para Mazzucato (2018), essa ideologia neoliberal de “maximização do valor para acionistas” pode levar à menor produção de “coisas” (mercadorias) e diminuir o PIB. No mundo das Finanças, ela acha se perder a distinção entre serviços financeiros capazes de atender à necessidade de crédito de longo prazo por parte das indústrias e serviços financeiros – na realidade, mercado de capitais – simplesmente alimentadores da ganância na compra de ativos existentes baratos para os vender mais caros.

Apenas por meio de um debate claro sobre o valor, as atividades de rentismo, em todos os setores, incluindo o público, têm possibilidade de ser identificadas de forma mais clara – e privadas de força política e ideológica. Afinal, mercados são moldados pela sociedade, como resultados de processos de agentes múltiplos em um contexto específico. São entidades profundamente enraizadas nas instituições sociais e políticas.

São resultados de processos complexos, de interações entre diferentes atores econômicos, incluindo o governo. Necessitam, atualmente, de uma reorientação.

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