A negação da vida e o culto da morte

A negação da vida e o culto da morte

Quando o general fascista espanhol José Millán-Astray interrompeu a palestra do poeta e filósofo Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, aos gritos de “abajo la inteligencia, viva la muerte”, não bradava apenas um impropério ou fazia mera provocação política. Era o princípio da sangrenta guerra civil e a frase do general enunciava uma…

Essa arraigada crença da extrema direita perdura até hoje no seu negacionismo, expresso nos recentes movimentos anti-vacina e mesmo na ação de alguns governantes. Assim como foram as constantes declarações e atitudes do presidente brasileiro que hoje se encontra felizmente em seus últimos dias no cargo.

 Em várias capitais da Europa, dezenas de milhares de neofascistas, neonazistas e extremistas de direita em geral manifestaram-se desfilando suas turbas em protesto contra as medidas impostas pelas autoridades na prevenção do contágio do coronavírus. Significavam a adoração nazifascista da morte.

Em Berlim, um ajuntamento reuniu 18 mil pessoas, segundo contagem da polícia, que interrompeu a manifestação por desrespeitar as recomendações de proteção sanitária. A marcha foi – ironicamente –  autodenominada “festival de liberdade e paz” e liderada pelos “pensadores livres”, ativistas antivacina, partidários de teorias de conspiração e simpatizantes da extrema direita em geral. Atiraram pedras e garrafas contra a polícia. Sentaram-se no chão e gritaram “resistência” ou “nós somos o povo”, slogan de extrema direita atualmente em uso. A Alemanha contabilizava na ocasião cerca de 1.500 casos de contágio todos os dias.

Depois da manifestação, militantes tentaram invadir o Palácio do Reichstag, onde funciona a câmara baixa do Parlamento alemão. O presidente Frak-Walter Stanmeier condenou o ataque. “Bandeiras nazis e obscenidades de extrema direita frente ao Bundestag alemão são um ataque insuportável ao coração da nossa democracia. Nunca o aceitaremos”, disse ele.

Em Londres, quando se registrava uma média de 1.100 casos diários, milhares de pessoas de todo o país concentraram-se em Trafalgar Square para protestar contra as medidas impostas pelo governo e rejeitar as campanhas que promoviam a vacinação em massa. Eles negavam a existência de algo chamado coronavírus e exigiam o fim da “tirania médica”.

Na França, quando contava mais de seis mil casos diários, cerca de trezentas pessoas protestaram na Place de la Nation contra a obrigatoriedade de uso da máscara em toda a cidade de Paris imposta pelo governo. Houve protestos idênticos em Copenhague.

Na manifestação de Bruxelas, além de protestos contra as máscaras, havia surpreendentes cartazes com mensagens de condenação à rede 5G. Outras mensagens, nos protestos da Europa, afirmavam que “o vírus não existe” e “a máscara mata”. A belga Marie Peltier, especialista nas teses difusas das teorias de conspiração, disse que se tratava de facções fortemente estruturadas por redes de extrema direita que se aproveitavam de grupos menos politizados. No seu imaginário antissistema, a máscara seria um elemento imposto pelo sistema político e mediático e a sua recusa seria um ato de resistência.

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Estavam presentes também adeptos da teoria da conspiração Qanon surgida nos Estados Unidos e que aparecia pela primeira vez na Europa. Trata-se de uma teoria da conspiração de extrema direita detalhando um suposto plano secreto de autoria de um “estado profundo” (deep state) contra o então presidente Donald Trump e seus apoiadores.


A revolta da vacina

No princípio do século XX, a febre amarela dizimava a população do Rio de Janeiro, todos os anos, durante os dias de verão. Os mais ricos refugiavam-se nas montanhas e veraneavam no agradável clima de Petrópolis, Teresópolis e Friburgo. O restante da população convivia com a vizinhança da morte numa cidade onde havia muito calor e a febre dizimava a população. Orientado pelo sanitarista Oswaldo Cruz, o presidente Rodrigues Alves decretou a vacina obrigatória contra a febre amarela, o que desencadeou uma série de agitações e motins populares contra a medida. Chegou até a ser ensaiado um golpe militar anti-vacina liderado por Lauro Sodré. A revolta foi reprimida às vezes com violência e só terminou com a suspensão da vacina obrigatória.

Para registro, nunca é demais repetir a resposta de Unamuno ao General Millán Astray:

“Todos vocês estão aguardando minhas palavras. Vocês me conhecem e sabem que eu sou incapaz de permanecer em silêncio. Há momentos em que ficar em silêncio é mentir. Pois o silêncio pode ser interpretado como aquiescência.

 “Agora mesmo ouvi um grito necrófilo e insensato, ‘Viva a morte’. Eu devo dizer-lhes que considero este esdrúxulo paradoxo repelente. O General Millán Astray é um aleijado, que isso seja dito sem nenhuma condescendência. Ele é um inválido de guerra.(O general usava um tapa-olho e havia perdido um dos braços) Cervantes também era. Infelizmente há demasiados aleijados na Espanha agora. Entristece-me pensar que o general Millán Astray venha ditar o padrão da psicologia de massas. Um aleijado que não possui a grandeza espiritual de um Cervantes acostuma-se a buscar alívio causando mutilados em volta dele.”

“Estamos no templo do intelecto. E nele eu sou o sumo sacerdote. São vocês que profanam esses espaços sagrados. Vocês vão vencer, porque têm mais que o necessário de força bruta. Mas vocês não convencerão. Pois para convencer é preciso persuadir. E para persuadir vocês necessitarão o que não têm: razão e justiça na luta. Eu considero fútil exortá-los para que pensem na Espanha. Eu o fiz.”

Unamuno morreu em dezembro de 1936, ano em que eclodiu a Guerra Civil na Espanha.

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