Aceleração da crise impulsiona comércio de usados na Argentina

Aceleração da crise impulsiona comércio de usados na Argentina

Queda na qualidade de vida se acelerou desde que o economista de extrema-direita Javier Milei assumiu o governo, liberalizando completamente os preços que estavam regulados ou contidos pelo Estado e dobrando a inflação, que chegou a 25,5% ao mês, segundo o último dado oficial.

POR DANIEL GUTMAN

BUENOS AIRES – Deitadas em uma grade, cerca de 40 pessoas com sacolas grandes aguardam pacientemente, sob o implacável sol do verão austral de Buenos Aires. De vez em quando, elas olham para o outro lado da grade, na esperança de detectar um espaço vazio entre as mantas e lonas dispostas no chão, onde diversos objetos são oferecidos, a maioria deles com muitos anos de uso.

“Na feira, somos 200 famílias fixas. E aqueles que estão na fila são os visitantes aguardando que alguém saia e apareça um lugar para vender. Antes, eles eram poucos, mas agora são cada vez mais, e às vezes 50 pessoas se reúnem e esperam o dia inteiro, sem conseguir entrar”, conta Julio Arancibia, um dos líderes do espaço, à IPS.

“Está aumentando o número de pessoas que vêm vender e também aqueles que vêm comprar. Eles procuram, por exemplo, um par de sapatos para as crianças ou material escolar, porque logo começam as aulas e os preços nas lojas estão impossíveis. Estive em feiras toda a minha vida e nunca vi uma crise como esta”, acrescenta gentilmente, com um sorriso amargo.

O Parque Centenário é um dos espaços verdes mais conhecidos e frequentados de Buenos Aires, devido à sua localização estratégica. Fica na fronteira entre três dos bairros mais densamente povoados da outrora próspera e hoje empobrecida classe média da capital argentina: Caballito, Almagro e Villa Crespo.

Em seus 12 hectares, possui um lago artificial com patos e gansos, um grande anfiteatro para espetáculos e um pequeno observatório astronômico.

No entanto, nos fins de semana, o Parque está se tornando cada vez menos um espaço de recreação e esporte e cada vez mais um grande mercado ao ar livre. Tradicionalmente, eram oferecidas artesanatos, depois passaram a oferecer produtos novos e hoje as pessoas oferecem qualquer coisa que tenham em casa, que alguém lhes deu ou que conseguiram para revenda.

Pode-se encontrar desde um abridor de garrafa levemente enferrujado até livros escolares usados; de uma raquete de tênis dos anos 70 a moedas em desuso há décadas; de uma mesinha de cabeceira desgastada a lápis usados pela metade do tamanho original. “O preço é você quem decide”, anunciam alguns vendedores em cartazes escritos com marcador em pedaços de papelão.

A Argentina está submersa numa crise econômica que já dura pelo menos 12 anos, caracterizada por uma inflação altíssima que tem corroído persistentemente o poder de compra dos salários.

No entanto, a queda na qualidade de vida de amplos setores da população se acelerou nos últimos dois meses, desde que o economista de extrema-direita Javier Milei assumiu o governo, liberalizando completamente os preços que estavam regulados ou contidos pelo Estado e dobrando a inflação, que chegou a 25,5% ao mês, segundo o último dado oficial.

Assim, a Argentina está entrando em uma recessão profunda, da qual começam a surgir os primeiros dados concretos. Em janeiro, as vendas no varejo dos negócios formais caíram 28,5%, em termos reais, em comparação com o mesmo mês de 2023, informou a Confederação Argentina da Média Empresa (Came).

Os mais afetados são um crescente número de argentinos que não conseguem cobrir suas necessidades básicas. Isso porque o colapso das vendas no primeiro mês de 2024 foi ainda mais pronunciado nos setores mais sensíveis: alimentos e bebidas (37,1%) e farmácia (45,8%).

“Alguns empresários apontaram que os números de janeiro parecem os de um mês em que ninguém ficou doente”, afirma um comunicado da Came.

Mirta Trinidad trabalhava limpando casas de família, mas foi demitida durante a pandemia de covid e agora vende sapatos e roupas usadas na praça do bairro El Jagüel, um subúrbio de Buenos Aires próximo ao Aeroporto Internacional de Ezeiza. (Foto: Daniel Gutman / IPS)

Quase tudo usado

A feira de itens usados do Centenário começou nas calçadas do perímetro e, após negociações com os agentes responsáveis pela manutenção do espaço público, foi transferida para o cimento do amplo estacionamento do Marie Curie, o hospital público do Parque Centenário, onde são atendidos os pacientes oncológicos de todo o país.

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“Não nos permitem montar barracas, então colocamos as mantas no chão. Somos ambulantes”, afirma Arancibia, ao explicar: “Pode aparecer algum produto novo de alguma loja que fechou e o deixou no lixo, mas quase tudo o que é oferecido aqui é usado. Muitas pessoas estão deixando o país devido à crise, e elas vendem ou simplesmente abandonam suas roupas e utensílios de cozinha na rua. Sempre há coisas”.

Marcelo, um vendedor que prefere não revelar seu sobrenome, conta à IPS que trabalha durante a semana em um estacionamento de carros, e nos fins de semana vende no Parque Centenário porque o que ganha não é suficiente.

“Cheguei aqui através de um conhecido que vem há muito tempo e me disse que é possível ganhar algum dinheiro. Geralmente vendo livros usados que compro em grandes quantidades, às vezes trago um pouco de roupa. Ocasionalmente também vendo algumas coisas de cozinha, que são da minha casa”, relata.

“Aqui vêm complementar seus rendimentos zeladores de prédios, encanadores ou eletricistas, mas também há pessoas que não têm outro emprego. Esses são os que se angustiam quando chove e a feira é suspensa, porque então não têm como ganhar um centavo durante toda a semana”, acrescenta.

A crise econômica argentina vem transformando, cada vez mais, os espaços públicos de Buenos Aires em mercados ao ar livre, onde podem ser oferecidos desde utensílios domésticos em desuso até antigas bolas de tênis. Foto: Daniel Gutman / IPS

Roupas e alimentos

Assim como o Parque Centenário, grande parte dos espaços verdes de Buenos Aires e seus arredores – um conglomerado urbano de quase 14 milhões de habitantes – está tomada hoje pela venda informal.

“É trazido o que se pode, o que se compra a bom preço ou o que se encontra em algum lugar”, explica à IPS Cristina, que fornece apenas seu nome e exibe suas mercadorias em uma prancha com cavaletes numa praça de El Jagüel, um bairro de trabalhadores do subúrbio, perto do aeroporto internacional de Ezeiza.

É sábado de manhã, choveu a noite toda e a praça está enlameada e quase deserta, mas ela decidiu ir mesmo assim, porque tem quatro filhos e precisa de dinheiro. Além de roupas usadas, ela exibe em sua barraca alguns pacotes de macarrão seco por 900 pesos (um dólar), que comprou em um supermercado atacadista por 750.

Durante a semana, Cristina visita outras das muitas feiras que existem no município de Esteban Echeverría, porque esse é o seu trabalho.

Segundo dados oficiais, a Argentina, com uma população de 46,2 milhões de pessoas, tem uma taxa de desemprego de apenas 6,2%, mas na Pesquisa Permanente de Lares realizada pelo Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec), apenas 47% dos assalariados contam com benefícios sociais e descontos previdenciários. Do restante, 27% afirmaram receber de forma informal e 22% trabalham por conta própria, a maioria com baixo nível de qualificação e baixos rendimentos.

As previsões para a economia este ano são muito negativas, não apenas entre os economistas argentinos, mas também entre os organismos internacionais.

O Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, estima uma queda de 2,8%, em um contexto de severas medidas de ajuste fiscal e de liberação de preços impostas por Milei, um ultraliberal que despreza qualquer tipo de controle e de medidas de proteção para os setores mais vulneráveis. A inflação, que em 2023 chegou a 211%, será ainda maior este ano, atingindo 250%, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

“Eu trabalhava limpando casas de família, mas fui demitida durante a pandemia e não consegui mais emprego”, conta Mirta Trinidad, que também vende sapatos usados na praça do bairro El Jagüel e já se acostumou a viver dia após dia. “Acho que não haverá mais trabalho com salário fixo. Agora, temos que nos virar com isso”, resigna-se.

Artigo publicado na Inter Press Service.


Foto em destaque: Julio Arancibia é um dos líderes do mercado informal de roupas e diversos objetos usados que opera no estacionamento de um hospital, no Parque Centenário de Buenos Aires. Foto: Daniel Gutman/IPS

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