Entrevista-memória sobre a Revolução dos Cravos

Entrevista-memória sobre a Revolução dos Cravos

Por Heloisa Toledo Machado

Neste ano de 2024, Portugal comemora os 50 anos da Revolução dos Cravos, ocorrida em 1974, quando o mundo assistiu à queda do salazarismo.

No dia 25 de abril deste ano, a avenida da Liberdade lotou. Uma das maiores passeatas da história de Portugal saudou o dia da Liberdade, um valor caro à democracia portuguesa.

Muitas comemorações estão a ocorrer, assim como lançamentos de livros, exposições, documentários, relembrando essa Revolução tão importante para o processo de redemocratização do país e que serviu de exemplo ao mundo.

Depois de décadas de fascismo, os Cravos Vermelhos saíram às ruas, ao som da música Grândola-Vila Morena, para escrever um novo capítulo da História de Portugal e também do Mundo.

Para contribuir com essas manifestações, entrevistamos dois personagens, dois portugueses, que de formas diferentes, marcaram este momento há 50 anos e que hoje nos contam suas lembranças e nos falam de suas perspectivas para que os Valores de Abril permaneçam presentes.

A seguir a entrevista-memória com José Zaluar e José Reis, realizada por mim, Heloisa Toledo Machado, com participação de Rafael Barcelos.

*Na edição desta entrevista presencial, o tom coloquial foi mantido.

Lisboa, agosto de 2024

Bloco1

Heloísa:

– Olá a todos! Nós estamos um Centro Cultural que por acaso se chama: Padaria do Povo, um lugar bem emblemático da cultura portuguesa, que tem uma ligação com o que aconteceu no  25 de abril de 1974.

Eu vou entrevistar o José Reis e o José Zaluar.

Então vamos começar o nosso assunto: a Revolução dos Cravos, uma importante Revolução que não só marcou a vida de Portugal, mas foi um exemplo para a Europa e para nós, brasileiros.

Então eu vou começar com o José Reis:

José Reis, como você participou dos movimentos no 25 de Abril de 1974?

José Reis:

– Bom! Eu na altura era militar e estava a acabar a especialidade, quando se deu o 25 de abril. Eu tinha cerca de 19 anos, estava na Escola Militar, em Paço de Arcos. Lembro-me que era cerca da meia noite.  Antes de ir para as camaratas dormir e antes de adormecer ouvíamos sempre o rádio de bolso a pilhas. Então, vi colegas que ouviam canções revolucionárias que eram, afinal, as senhas do 25 de abril. A partir dalí, começamos a acordar todos e ficamos o resto da noite a ouvir o que é que se estava a passar. Portanto ninguém mais pregou o olho até porque o quartel entrou no modo de Prevenção. Nós, alí, éramos um quartel onde havia militares dos três ramos das Forças Armadas, éramos cerca de 400 homens em camaratas enormes e foi assim que começou a nossa contribuição no 25 abril…

Heloísa:

– E na madrugada?…

Reis:

– Na madrugada…nós não éramos propriamente um quartel operacional da linha da frente, mas sim uma Escola Militar, uma escola técnica que formava técnicos, sobretudo na área de radar, que era o meu caso e na área das comunicações. Portanto, no dia seguinte, não houve aulas, ficamos à espera, a ver como é que o 25 de Abril ia evoluir, quais eram as forças que iriam vencer! Ficamos de prevenção e na expectativa.

Heloísa:

– Como foi então no dia seguinte? Você saiu à rua?

Reis:

– Essa parte foi talvez a parte mais bonita para nós. Éramos militares, éramos alunos. O quartel ficou fechado, mas depois pudemos sair. Quando o 25 de Abril estava consolidado, nós saímos para a rua quase como heróis, fardados, até porque era obrigatório sairmos fardado. Éramos levados pelas pessoas que nos ofereciam tudo e mais alguma coisa: comida, bebidas, boleias, portanto, éramos revolucionários, heróis, salvadores. Foi assim, um dia de festa, um dia de sonho, maravilhoso!

Eu confesso que fiquei sem saber nada, às vezes aquilo para mim parecia mentira, difícil de acreditar. Venho duma aldeia onde havia PIDE, onde havia perseguição política e agora estávamos livre!

Heloísa:

– É isso que eu queria te perguntar: a diferença entre essa noite, essa madrugada e o antes do 25 de abril. Como era isso antes? Vocês despertaram de qual pesadelo?

Reis:

– Sim! Antes havia medo. Lembro-me que passei a minha infância e juventude, um momento da vida nesta opressão.

O meu pai tinha na aldeia uma taberna que era uma espécie de centro cultural onde as pessoas começavam e acabavam o dia.

Trabalhava-se também e era trabalho de campo. A minha aldeia é Donas-Fundão, em que as pessoas que viviam no campo, viviam com alguma liberdade, mas no centro da aldeia, vivia-se com o medo porque havia mesmo PIDES, portanto, havia esse medo.

Na escola, além de rezar, de cantar o hino e levarmos porrada com a régua, uma menina dos 5, 6 ou 7 anos, tinha olhos demais… havia de facto, às vezes momentos de sadismo da parte de alguns professores. Mas a verdade é que, portanto, na altura do 25 de Abril e com este passado, para mim foi o “saltar a tampa”. Foi mesmo um sonho, nem acreditava. Portanto, esse medo desapareceu, tornámo-nos revolucionários, já o éramos, mas tornámo-nos mais ainda, portanto acreditávamos na utopia.

Heloísa:

– Muito bem!

José Zaluar, para você agora. Onde você estava nessa noite do 25 de Abril? Como é que você recebeu essa notícia de que estava a acontecer uma revolução em Portugal?

José Zaluar:

– Sim, é até quase mais fácil do que a situação do José Reis porque eu tinha fugido para França em 65. Portanto eu estava há nove anos à espera que acontecesse aquilo que aconteceu. Demorou muito tempo, demorou o tempo de eu me formar academicamente, demorou o tempo de as minhas duas filhas nascerem, demorou o tempo de morrer gente na família. Eu fugi em 65 de Lisboa. Para se perceber o 25 de abril é preciso perceber o que se passou para trás. Há o papel social muito importante do Movimento Academico, desde de 1961/62, que corresponde a uma série de modificações que, em alguns casos, os historiadores chamam ou tratam do “annus “horribilis” de Salazar (como se usava o conceito também para a rainha da Inglaterra). Falavam em latim.  Eu estou ligado familiarmente a muitas das questões que se iniciaram nesse período. Era preciso perceber a História de Portugal e o Brasil acabou por estar ligado a algumas questões. Havia vários exilados antigos, os chamados republicanos anti-salazaristas que estavam no Brasil. Era um sítio onde exilados portugueses eram recebidos. Eu tinha, por exemplo, o meu tio, irmão da minha mãe, que era professor no Recife. Ele foi expulso do ensino universitário em 1947, quando se pensava que a vitória dos Aliados ia dar um resultado positivo para os fascismos, que ainda sobraram. Portanto, é derrotado o Hitler, é derrotado o Mussolini, mas sobram o Franco e o Salazar que continuam com as ditaduras porque eram úteis para o imperialismo americano.

Tenho que usar o conceito que nós usávamos. O franquismo e o salazarismo continuaram e inclusive tornaram-se mais sofisticadamente repressivos. A colaboração com as forças de informação americana e inglesa deram mau resultado e tornaram a perseguição mais radical aqui em Portugal.

Em 1961, porém, há um primeiro desvio de barco, que se chamava Santa Maria. Era um barco de recreio com umas centenas de turistas. Por acaso, tem muito a ver com a atualidade. Num porto da Venezuela, há o assalto, por um grupo Ibérico, que se chamava, Frente Ibérica de Libertação – se não era Frente Ibérica de Libertação –  com portugueses e espanhóis, entre os quais, um homem com quem colaborei muito tempo: o Camilo Mortágua, pai de duas deputadas do Parlamento. O Mortágua, mais outros amigos, assalta o navio Santa Maria e faz uma ocupação interessante, aliás, tão interessante que até transforma o barco, colocando um pano por cima do nome de Santa Maria. Passaram a chamar-lhe: Santa Liberdade. O Salazar quis inclusive bombardear o navio. No entanto, há duas atualizações que são suficientemente importantes. São aquelas que decorrem da eleição do Kennedy, nos Estados Unidos e, no Brasil, em 1961, do Presidente Jânio e de seu vice, João Goulart. Há então intervenção favorável a não repressão por parte do Salazar, de ambos os lados. Portugal precisava das solidariedades americana e brasileira, mas não as tem e os governos dos Estados Unidos e do Brasil conseguem fazer com que não haja violência e repressão do salazarismo sobre o barco.

Resumidamente: por volta de fevereiro/março, começa a luta armada em Angola. Começa, na prática, a guerra colonial e vai ser um elemento fundamental neste processo revolucionário.

Em abril, creio, há uma tentativa de Golpe de Estado. Um General, que sendo salazarista, inicialmente, percebe que o Salazar já estava velho demais e não servia aos interesses duma direita liberal, digamos assim, que podia subir ao poder em Portugal. O Salazar consegue derrotar essa tentativa de Golpe de Estado. O ano de 61 que vai culminar com o desvio do avião – uma coisa notável, aliás – “Super-Constellation”, que estava em Casa Blanca – que nós conhecemos desde os tempos de cinema porque é exatamente o mesmo que aparece no filme: Casa Blanca.

Quando o avião sai de Casa Blanca para Lisboa, é atacado por um grupo onde está exatamente o Camilo Mortágua e outros grandes amigos. Isso, tem a ver exatamente com a minha opção ideológica, quando cheguei a Paris. Foi com eles que eu fui trabalhar politicamente no dia 31 de dezembro de 1961. Na passagem do ano há o assalto ao quartel de Beja, com oitenta e tal revolucionários a tentarem imitar o assalto em Cuba, onde 86 militantes assaltam o quartel. Nesse assalto, está presente o meu irmão mais velho que vai ser preso e torturado. A violência exercida sobre ele me transforma não só num contestatário do regime fascista salazarista, mas num militante a lutar contra aqueles que tinham posto o meu irmão até quase às portas da morte.

Eu tinha um tio exilado no Brasil que não podia voltar, professor universitário. Ele tinha sido expulso. E havia o meu irmão mais velho preso e capturado na polícia. A partir daí, começo a militar politicamente num grupo de estudantes, contestadores. Surge a guerra colonial e são os estudantes que vão ser incluídos na Guerra Colonial, perdendo um direito que tinham, como garantido. Era o direito de espera, que era a necessidade de formação académica adequada. Os estudantes estavam dispensados de ir para a tropa e fazer a vida militar até acabarem o curso. Normalmente, entravam na tropa depois como oficiais. Ora, há uma pressão que se exerce sobre os estudantes que ocupam a Cidade Universitária e decretam greve. Portanto, aquilo que se conhece politicamente como o maio de 68 em França, – desculpem a vaidade portuguesa – nós começamos a fazer maios de 68 em Lisboa 6 anos antes e isso vai ser um elemento fundamental para perseguições etc.

Em 65, eu tenho de fugir porque perdi os meus direitos todos, o meu irmão continua preso, o meu tio exilado e eu, então, fujo para França, onde vou receber as notícias do 25 de Abril. Vai demorar ainda 9 anos até chegar ao 25 de Abril.

Heloísa:

– Nós vamos continuar, mas, neste momento, vamos encerrar um primeiro Bloco e abrir outro, para uma melhor organização da entrevista.

Bloco 2

Heloísa:

– Então vamos iniciar o 2º Bloco.

Eu vou perguntar ao Zé Reis: como foi o pós-25 de abril? E as experiências artísticas? O Zé Reis pode explicar? Eu queria saber como aconteceu a vinda do Boal, de outros artistas, do Zé Celso e de outras pessoas que vieram para cá, para Portugal, que se transformou num lugar interessantíssimo para a arte e para os revolucionários do mundo inteiro. Como foi esse pós-25 abril? O que você vivenciou?

Reis:

– Eu, a seguir ao 25 de abril e depois de acabar a especialidade, fui mobilizado para Moçambique, aliás, para a Guiné, depois Moçambique e Angola. Acabei por não ir para nenhuma delas. Estive quase um ano com a mala feita para partir, mas, entretanto, ia-se dando a independência da Guiné. Primeiro deu-se a independência da Guiné…depois, desmobilizaram-me, mobilizaram-me para Moçambique e depois para Angola. Acabei por não ir. Estive um ano com a mala pronta. Vou nesse ano, vou amanhã e o fato é que eu estava num quartel em frente ao Grupo de Teatro de Carnide. Resolvi entrar, até porque já tinha o “bichinho do teatro” apanhado na Mocidade Portuguesa – porque éramos obrigados, na escola, a pertencer à Mocidade Portuguesa.  Apesar de tudo tinha algumas atividades culturais. Portanto, aproveitei esse período em que estava sempre de partida… a qualquer dia, a qualquer momento podia partir… mas fui parar ao Teatro de Carnide que era ali pertinho, próximo do Lumiar, onde eu me encontrava. Comecei, então, com o grupo de Teatro de Carnide. Comecei a envolver-me com o teatro. Do teatro passei para a dança. Entretanto, quando conheci alguns intelectuais sul-americanos, sobretudo, uma pessoa que teve uma influência grande na minha formação artística e não só, que foi o Jorge Reys Frias, um exilado político do tempo do Pinochet. Ele veio para Portugal com a família, mulher e filhas. Cruzei-me depois com ele no IFST, Instituto de Formação Social do Trabalho, no Marques de Pombal, onde se faziam várias atividades artísticas, mas também sociais e até políticas. Um dia, eu estava no quartel e um colega meu disse:

– “Eh pá! Vamos dar um salto até Lisboa? 

– “Agora?! Eh pá, vamos lá, vou ter com umas amigas. Vai ser giro…

– “Anda lá? Vamos embora!”

– “Bom, então vamos lá!”

Aí vou eu e quando entro no IFST, que era num 5º Andar, no Marques de Pombal, vejo: Animação pelo Livro, Animação pelo Disco, Animação…  fiquei ali a ver os programas enquanto o meu colega segue para o bar e, depois, então, essa coisa da animação despertou-me e fui até a secretaria:

– “Olhe! O que é isto, uma animação?”

– “Entre naquela sala lá ao fundo e pergunte lá…”

Ora, eu entrei na sala, uma sala grande como esta, cheia de pessoas, sobretudo, professores, professoras que estavam a fazer apresentações. Eu fiquei ali parado, sob a porta e, enfim, pensei que era bonita a forma da sala, alguns à espera de fazer alguma pergunta…depois de se apresentarem, viram-se todos para mim: então e quem és? Quem, não és?…e eu apresentei-me também. No fim, inscrevi-me. O meu colega nunca mais lá o vi. Mas, eu andei por lá durante 3 anos, passei de aluno a professor, entretanto, cruzei-me com o tal grande professor e mestre das artes de Expressão Dramática, o Jorge Reys Frias e trabalhei com ele. Durante três anos acabei por fazer os cursos todos e depois formamos um grupo.

Na altura, com o 25 de Abril vieram para Portugal imenso artistas, sobretudo, encenadores brasileiros e outros da América Latina. Isto foi muito interessante porque trouxe a Portugal uma dinâmica artística, uma mais valia incrível.

Eu aprendi muito na altura.  Havia o Conservatório de Teatro. Havia muitos cursos no Teatro da Trindade, no âmbito do INATEL, cursos intensivos, sei lá… um dos cursos que fiz e adorei decorreu durante 7 fins-de-semana seguidos, a começar de manhã e acabar domingo à noite. Todos os que se inscreveram naquele curso, naquela formação durante 7 fins-de-semana seguidos, estavam lá de sexta a domingo, o dia todo. No final, fomos pelo país afora pregar o teatro e as artes e ainda pregar o espírito do 25 de Abril. Na altura, eram as campanhas de alfabetização, campanhas do MFA, onde estive envolvido.

Heloísa:

–  Zé Reis, como foi a participação das artes? Então você entrou no teatro e foi para a dança. Como é que ocorreu a participação do 25 de abril nas artes? Como as artes participaram no 25 de Abril? Qual foi essa evolução cultural e estética que aconteceu em Portugal?

Reis:

– Havia uma…vontade grande nas tais campanhas de alfabetização, não só da revolução. Mas da tal da utopia, o PREC. Foi um sonho, uma coisa linda! Lembro-me que andávamos na rua fardados e éramos agarrados, abraçados, muitas vezes acabávamos no Rossio em conversas com pessoas que não conhecíamos de lado nenhum. Chegávamos ali e conversávamos. Havia um espírito de fraternidade e uma grande confiança. Nós acreditávamos que que era o momento de mudar. Eu cheguei a acreditar nesse mundo. Era assim…a gente acreditava mesmo e, assim, eu acreditava em todos esses movimentos, como as ocupações, também nos artistas da altura e neste grupo com quem eu estive a fazer formação no Teatro da Trindade. Eram cerca de 25 artistas. Saímos dali e fomos espalhados pelo país a fora, de Braga ao Algarve e todos eles formaram companhias e grupos. Foi este espírito revolucionário de transformação que criou uma dignidade. Foi assim uma coisa espontânea, porque era assim:

– “Eh pá vamos embora!?… Vamos!”

Os grupos de teatro foram grandes motores para cimentar a revolução, sobretudo, o teatro amador. O teatro amador era muito forte. Estamos a falar numa época em que a televisão era a preto e branco, não havia internet, não havia nada. O que havia eram associações locais, como esta aqui, a Padaria do Povo. Aliás, eu aqui estive a fazer uma formação, há muitos anos, exatamente com o Jorge Reis Frias. Era fácil mobilizar as pessoas para esta causa, fosse para o teatro, fosse para outras artes. Foi esse movimento todo muito emocional, era tudo muita emoção.  Não havia segundas ou terceiras intenções, havia uma primeira intenção, um abraço, um sorriso…

Heloísa:

– Ótimo! Vamos, então, terminar este bloco e fazer outra pergunta para o Zé Zaluar no outro bloco Certo? Até já!

Bloco 3

Heloísa:

– Estamos agora no terceiro bloco. Eu vou perguntar ao José Zaluar: como foi o pós-25 de Abril? Você estava em França. Como foi a volta e que ambiente político você encontrou?  Quais as diferenças cruciais em relação ao período anterior que você notou nos acontecimentos de então?

Zaluar:

– Bom, eu não vim logo no 25 de abril para Portugal. Eu estava em França. Como dizia um cantor muito meu amigo, que morreu há dois anos, tinha coisas começadas numa mão e continuei com essas coisas. Isso tem a ver com o fato da minha chegada a Paris. Mas, depois, já aqui, eu tive a sorte de encontrar gente que culturalmente era marcante. Houve uma reorganização cultural pós-revolucionária. Como o José Reis disse há pouco, o PREC, o Processo Revolucionário em Curso, que teve muito de cultural e é talvez a questão mais importante desse processo revolucionário. Eu fui amigo desde a primeira hora de um grande cantor chamado José Mário Branco. Acompanhei outro grande cantor que felizmente está vivo, Luís Cília. Fui também amigo, desde 67, de um homem que tenho a ver e ao qual você se referiu: o Boal. Um homem que foi responsável pela vinda do Boal para cá e pelo trabalho conjunto com ele num grupo de teatro, ao qual estou ligado, A Barraca, é o Helder Costa.  Antes de se reconstituir, na Barraca, havia um grupo em Paris, em maio de 68, que vai organizar, digamos, um teatro operário, indo buscar uma série de atividades que têm a ver com a história de Portugal e que vão sendo encenadas. Tenho que me referir ao nome do Helder Costa, que é um grande amigo, pois é exatamente ele que traz o Boal, que vai  trabalhar inicialmente na Barraca. E, portanto, esses contactos, resumidamente, com gente que canta, com gente que faz teatro, vão ser, digamos, a minha prática de resistência no exílio.

         Eu nunca pertenci a partido nenhum daqueles chamados partidos importantes, nunca fui membro do Partido Comunista, que era o único partido organizado que, então,  atuava. Fui membro de um partido que nem era organizado como partido e que não tinha cotas, não tinha listas. Fazíamos uma ação direta muito importante, que culminou em 1967, com o assalto ao Banco da Figueira da Foz, no qual roubamos vários milhões. Mas, algumas notas estavam marcadas. Foi difícil depois ir comprar as armas de um país – que na altura, se chamava Checoslováquia – para as nossas atuações políticas ou militares. Esse grupo se chamava LUAR, Liga da União e Ação Revolucionária.  E eu fiquei sempre ligado a esse grupo até voltar para Portugal.

Em 1969, nasce minha filha mais velha, em Paris. Eu continuo muito ligado a essas pessoas e, entretanto, vou estudando, coisa que não fiz nos primeiros anos.  Andava muito militante político e não estudei nada.

Veja Também:  Netanyahu na ONU reafirma práticas genocidas e terroristas. Ouça o Podcast.

Heloísa:

– O que você estudou lá?

Zaluar:

– Inicialmente estudei Economia, mas a paixão foi pela via da Economia/Sociologia.  Estudei também História e transformei-me numa espécie de aprendiz. Hoje, se me perguntarem, sou historiador. Trabalhei a parte da História política, da História social e, inclusive, fui convidado por um professor, Pierre Salama, para ser seu assistente. Eu trabalhei na Sorbonne como monitor dele. Portanto já tinha uma vida profissional organizada e quando volto para Portugal foi muito mais fácil. Era professor em França, foi mais fácil vir para Portugal, como professor.

Heloísa:

– De História?

Zaluar:

– De História e de Economia. Faltava muito aprendizagem em Economia. Era uma economia muito conservadora que se fazia aqui. Eu tinha aprendido economia em França de uma maneira muito progressista, graças, aliás, a muitos brasileiros de quem fui amigo. Podemos falar de alguns professores brasileiros, ou citá-los, que foram meus professores e que foram fundamentais na minha formação. Eu fiz economia do desenvolvimento e tive dois professores que foram fundamentais. Um, Fernando Henrique Cardoso, que era professor de Sociologia do Desenvolvimento, e outro, Celso Furtado, que era professor de Economia do Desenvolvimento. Estavam um semestre em Paris e outro semestre em Oxford. De maneira que tive essa sorte de aprender com eles. Estudamos muitas coisas a partir de textos brasileiros. Inclusive eu fui introdutor dos textos brasileiros de uma senhora portuguesa que viveu em São Paulo e que morreu agora há um mês e meio, Maria da Conceição Tavares. Portanto, estou a estudar a sério e acontece o 25 de abril.  

Já tinha havido um prenúncio de tudo a 16 de março de 74. Havia amigos que me tinham dito – já havia telefones em casa e isso era uma coisa relativamente rara –  e que me anunciaram:

– “Deixa estar, não vieste agora, mas em breve vais vir, porque isto não vai parar agora”.

E na realidade, não parou. Entre 16 de Março, em que há o primeiro movimento militar e o 25 de Abril, passou um mês e meio, menos de um mês e meio e há o levantamento militar. Há uma história muito engraçada em relação ao meu 25 de Abril: é que a minha filha mais velha estava com 4 anos e meio e a minha mulher estava gravidíssima da segunda. A minha filha mais nova nasce a 28 de Abril de 1974. Eu quando estou zangado com ela, digo-lhe que é sua culpa de não ter eu ido logo para Portugal.

Eu estava às 6 da manhã de Portugal, 7 da manhã de Paris, acordado, a preparar-me, a vestir-me, enquanto a minha mulher prepara a filha mais velha que eu levava ao infantário. E ouvia sempre a rádio, que era no hall da casa, na entrada da casa, um rádio portátil que estava sempre sintonizado, que dava notícias de 15 em 15 minutos, o que era uma coisa notável! E de repente, ainda não eram 7 da manhã e eu ouço a notícia que há um movimento militar em Portugal. Estou a ficar arrepiado.

(Zaluar aqui, fica emocionado)

Atrasei-me a preparar a minha filha, fiquei a ouvir as notícias e fiz dois telefonemas para Lisboa. Um para a minha casa. O meu pai estava a dormir e a dormir continuou. Como era hábito, estava a minha mãe acordada e veio atender o telefone. Logo a seguir, telefonei para o meu irmão, que tinha estado preso e que estava livre nessa altura. A minha cunhada levanta-se, atende e vai falar com o meu irmão. Vem uma resposta do meu irmão que diz:

– “Então é hoje”!

Portanto, ele sabia alguma coisa, como militante revolucionário, que tinha estado preso. Então, eu soube que havia um movimento que era a continuação do 16 de Março e não parei mais de ouvir notícias.

Heloísa:

E você volta quando?

Zaluar:

– Eu volto três meses depois.

Heloísa:

– E o que você encontrou aqui?

José Zaluar

-Encontrei cravos! Há imagens fabulosas da chegada dos primeiros exilados. E há essa descoberta dos cravos. Eu conheço a senhora que, por acaso, transformou a revolução na Revolução dos Cravos. Um soldado queria comer ou queria cigarros, ela disse:

– “Não tenho, mas tenho cravos”.

Os cravos eram da inauguração do café onde ela trabalhava e então ela os distribuiu. E desde aí, a revolução passou a ser a Revolução dos Cravos. Encontrei cravos! Toda a gente que vinha do exílio, tinha direito a cravos quando chegava. Eu demorei 3 meses, mas tive, na chegada, a minha mãe, os meus irmãos, os meus sobrinhos, os meus amigos mais antigos. Era um sonho acordado que foi uma coisa linda! Era impossível…

(Emociona-se)

Passaram-me 50 anos, mas ainda é impossível esquecer a maravilha que foi chegar e encontrar aquela gente que tinha deixado marcas em mim. Cheguei a casa, comi, fui aos cafés, visitei, comecei a encontrar pessoas, fui à sede da LUAR , que era na Avenida João XXI, encontrei gente amiga e comecei a militar. Entretanto, tinha havido uma substituição.

Heloísa:

– Em qual grupo você continuou a militância?

Zaluar:

– Deixei de militar na LUAR, porque tenho a noção e muitos da LUAR têm essa noção, que a LUAR só tinha sentido para lutar, para fazer a luta armada contra o fascismo. O fascismo tinha acabado há três meses, não tinha mais sentido. Havia os militares que garantiam a salvaguarda da vitória da Revolução. Não era preciso, na minha perspectiva, não era preciso haver grupos políticos que continuassem com a luta armada. Havia gente ligada a LUAR, que dizia que tinha no quintal, debaixo de algumas árvores, algumas metralhadoras guardadas. Mas eu achei que não tinha mais nada a fazer na LUAR. E, politicamente, nós não tínhamos mais sentido. Nós tínhamos sentido como um movimento armado contra o fascismo. Derrotado o fascismo, era preciso salvaguardar a vitória da revolução e contávamos com os militares. Aliás, coisa impensável, uns meses antes. Eu nunca fui militar, eu não conhecia militar nenhum, a não ser os exilados que tinham sido desertores e, de repente, descubro mais militares. Entre os quais, os da 5ª Divisão, que começaram também a ir ao estrangeiro. Ainda sou muito amigo hoje do Duran Clemente, que era um dos homens da 5ª Divisão e que me vai entrevistar alí, a Paris, para falar ainda dos exilados, antigos desertores que estavam por lá. Tenho aliás uma fotografia lindíssima em que eu estou a falar, com o cabelo assim até aqui, a camisa toda aberta, pois estava muito calor. Foi uma vez em que o Duran Clemente foi com vários outros, inclusive com o Zeca Afonso, que não está nessa fotografia, mas que foi cantar à malta que ainda estava em Paris. Zeca Afonso, o grande cantor da Revolução, o homem da Grândola,,Vila Morena. Portanto, o meu encontro de abril de 74 é chegar a casa, é encontrar a minha casa.

Heloísa:

– Que maravilha!

Zaluar:

– É isso.

Heloísa:

– Nós vamos então encerrar aqui o terceiro bloco.

Bloco 4

Heloísa:

– Vamos iniciar o quarto bloco dessa entrevista com uma pergunta sobre a atualidade da política portuguesa. Eu gostaria de perguntar aos dois como vocês enxergam hoje a influência, a herança, desse momento histórico do 25 de Abril. Agora, neste momento em que nós estamos no meio de duas guerras, um momento em que Portugal está inserido na Comunidade Europeia e na Nato e nós estamos vivendo num sistema econômico neoliberal. Qual a possível herança e exemplo do 25 de Abril hoje? O que deve ser resgatado hoje, José Reis?

Reis:

– Eu penso que, de lá para cá, nesses 50 anos, essa herança, esse espírito, que poderia ter evoluído nas novas gerações… apesar deste ano termos tido uma manifestação fantástica, fabulosa, talvez a segunda maior a seguir ao primeiro de maio…mas…a verdade é que as novas gerações… por que em geral não se fala mais do 25 de abril, não é? Este 25 de abril foi muito importante para os pais, os avós, mas, de fato, os netos estão noutra onda. Hoje já temos as redes, já temos a internet, já temos as tecnologias, o digital, e a História do 25 de Abril, infelizmente, quase não foi transmitida, não foi contada, não foi divulgada, sobretudo, nas escolas e até nas famílias. Ou seja, os valores agora são outros, os interesses, as motivações para a juventude, para as crianças há outros interesses. O 25 de Abril agora é apenas uma coisa, se calhar, simbólica, que se vai diminuir. É como as conquistas de D. Afonso Henriques.

Zaluar:

– Estou a sorrir com este comentário, não sei se será como as conquistas de D. Afonso Henriques, mas se calhar não é um erro usar isso como comentário. Eu tive a sorte, tenho a sorte. A sorte, às vezes, muitas vezes, depende de nós próprios, não é? Ter sorte ou não ter. Eu tenho a sorte de, para a minha juventude, para a minha adolescência, para a minha fase jovem, eu ter uma família que era uma família de antifascistas. Aliás, desde há muito tempo. Falar do exílio é uma coisa normal para a minha família. Desde as invasões francesas, que temos gente que se exibiu. O meu trisavô, que foi o primeiro Zaluar, já que  foi ele quem inventou o nome, foi para o Brasil com a Família Real. E logo, mal chegou, acabou por ter problemas, foi despromovido na tropa. Ele era Major, passou a Capitão, foi mandado para a frente, para a guerra no Uruguai, como é que se chamava?

Heloísa:

– Cisplatina.

Zaluar:

– E é marginalizado…só quando morre a Dona Maria, é que ele volta para o Rio de Janeiro e o Dom João VI, um grande rei, recebe-o e novamente o promove. Desde que veio a independência do Brasil, voltou para Portugal e estava sempre a ser preso. Eu tinha uma tia-bisavó, que eu nunca conheci, claro, mas de quem se falava na minha família. Ela passava a vida a dizer, quando a polícia batia a porta de casa, que era aqui ao pé, aqui em Campo de Ourique, dizia ela:

– “Prendam-me, prendam-me, que ele é pedreiro.”

Sem perceber muito bem, ela dizia que o oficial do exército era pedreiro, mas pedreiro político. Ela era meia doida, chamavam-lhe: a doida, a louca, um bocado como a Dona Maria também.

Heloísa:

– E hoje, então?

Zaluar:

– Hoje, o meu passado tem a herança da família. Sempre tive gente a lutar e, perdoem-me a arrogância intelectual, a lutar pelas boas causas. Nunca tive essa grande dificuldade de ter pais ou irmãos ou avós, do outro lado. Estávamos sempre do mesmo lado. Hoje, tenho a sorte de ter duas filhas e netos. O Zé Reis estava a referir uma coisa que eu tenho que referir também do meu lado, é que os 50 anos de 25 de Abril foram uma festa única. Talvez equivalente a esse 1º de Maio que ele referiu. Eu ainda passei em França o meu 1º de Maio livre, em Paris. Mas há uma coisa que é certa nesta manifestação do 25 de Abril dos 50 anos: foi talvez uma grande manifestação e cheia de gente jovem! O que foi dito muitas vezes: os jovens não ligam, não é verdade! Estiveram lá, quando foi preciso, já que a extrema-direita anda por todo o lado. Eu desfilei com os meus netos. Não lhes disse para virem comigo. Mas eles vieram ter comigo. Estiveram comigo, eu subi ao palco com uma representante de um grupo. 30 pessoas estavam no palco. Digamos, as lideranças. E é um privilégio eu ter os meus netos a fotografarem-me, felizes e com a honra de ver o avô ao lado dos militares de Abril.

Há a questão da militância e os princípios do 25 de Abril aí reencontram-se. Agora o Zé Reis falou que esteve aqui nesta Padaria do Povo a fazer atividades culturais. Neste momento, eu estou aqui a preparar a minha recandidatura, depois de não sei quantos anos à frente desta Padaria do Povo, desta cooperativa, deste centro cultural. Estou a preparar a minha candidatura para um novo mandato de 4 anos, onde há condições para voltar a fazer coisas que são fundamentais e para ter o apoio da Junta de Freguesia, da Câmara de Lisboa, que é de outra cor ideológica da minha, mas que tem que apoiar, ter a responsabilidade de apoiar as coletividades, a cultura e as recreações. E de certa maneira, é um reencontro, depois de 50 anos, com aquilo que marca os espaços onde a população tem que vir trabalhar, viver. E, portanto, a minha tarefa, agora que já sou um reformado – aliás, ainda dou aulas, mas na Universidade Sénior – tenho mais ocupações do que tinha quando dava as aulas, antes da reforma. Isso porque estou a lidar com outras coisas, na verdade, do mesmo gênero. Falámos ainda há bocado do teatro, da Barraca.  Tenho tido uma série de atividades de caráter teatral, com a Maria do Céu Guerra e o Hélder Costa. Tenho estado a fazer teatro. Até alguns brincam a dizer: agora viraste um artista teatral e mais não sei o quê. Não terei a qualidade que o Zé Reis tem, mas temos feito muito trabalho teatral e continuo a frequentar todas as atividades que têm a ver com uma coisa que todos os anos se festeja em Grândola, simbolicamente em Grândola, que é a questão do festival da música de protesto, da canção de protesto. Nós recuperamos as coisas e todos os anos temos três dias em que vamos buscar documentação e informação, etc…e vamos buscar cantores e cantoras além de informações que têm a ver exatamente com aquilo que me marcou a mim, em Paris desde 65, quando conheci os grandes cantores. Em especial faço referência ao José Afonso, da Grândola Vila Morena e a todos os outros que vieram a seguir e que se tornaram importantes como divulgadores do 25 de Abril. Portanto, teatro, música de protesto, atividades culturais, são o meu trabalho hoje. O meu trabalho!

Heloísa:

– Muito bem!

Eu gostaria de abrir um parentese para poder agradecer, aqui, ao Rafael Barcelos, assistente de produção desta entrevista. Quer falar alguma coisa, Rafael?

Rafael Barcelos:

– Olá, pessoal. Está sendo um prazer, uma honra enorme participar desta entrevista tão importante.

Heloísa:

Obrigada! Rafael, você quer fazer alguma pergunta?

Rafael:

– Sim, a minha pergunta, na verdade, é um recado que eu queria dos dois. Sabemos que os jovens gostam de atuar, indo nas manifestações, o que é muito importante, mas às vezes falta a motivação para irem votar e eu acho isso muito importante. Eu queria um recado de vocês para os jovens portugueses.

Heloísa:

– Sim! Qual é o recado que vocês dariam aos jovens hoje?

Zaluar:

– Os meus netos estão numa espécie de autoexílio. Não estão a fugir a um regime político, como o avô, que fugiu, mas estão a viver politicamente e socialmente, num outro país. Eu vou ser muito crítico quanto à Europa. Esta Europa, francamente, não é a minha Europa. Não tenho nada a ver com esta Europa. Estou farto de ver gente na Europa que não tem nada a ver com a minha geração e com as lutas que nós tivemos. Eu tenho os meus netos. O mais velho tem 26 anos e está em Bruxelas. A irmã tem 18 anos e está a viver em Paris, a estudar. Quando chegam cá, uma das atividades é desfilar com o avô no 25 de Abril. O meu neto formou-se cá em Ciência Política e Relações Internacionais. De vez em quando, ele escreve – e estou muito contente – criticamente sobre a situação política. Escreve para o Expresso. Nós temos na família, sobretudo do lado feminino, uma herança judaica. Somos judeus, digamos assim. E ao sermos judeus, sobretudo o meu neto, que é filho de uma judia, minha filha – é pelo lado feminino que o judaísmo se propaga –  explicou tudo claramente num artigo que escreveu para o Expresso, que, aliás, continua a ser um grande jornal semanal. Eu o deixei de comprar, confesso, mas não deixa de ser um grande jornal. O meu neto escreveu a dizer que é judeu e não tem nada a ver com Israel. Eu não tenho nada a ver com Netanyahu, nem com estas canalhices violentíssimas que se instalam em Israel. Israel é Israel, eu como judeu tenho uma cultura, tenho uma vida familiar que me faz ser judeu, mas não é por aí que eu me reconheço como judeu. Ele escreveu também sobre a juventude, sobre o 25 de Abril. A minha neta, com os seus 18 anos, escreveu nas redes sociais, uma coisa muito bonita, que eu postei na minha página. Isso tem a ver exatamente com os 18 anos dela e a maneira como ela denuncia aquilo que foi um determinado passado, que olhava para o 25 de Abril só para cantar, para desfilar com bandeiras, como, desculpem o termo que eu vou usar, como uma chatice, como um frete, que a cansava, que não a mobilizava. Neste ano ela teve problemas na Universidade, tinha um exame, teve que sair mais cedo de Lisboa e escreveu um texto fabuloso a dizer que agora sentiu como era importante desfilar no 25 de Abril, mas que, justo neste ano, não pôde desfilar. Teve que ser assim. Escrever foi a sua maneira de festejar o 25 de Abril. Mas, anteontem, estivemos a comemorar o aniversário do José Afonso e foi uma maravilha porque ela cantou as canções todas do José Afonso. Já as conhece…

Heloísa:

– Então está carregando a herança do avô, não é?

Zaluar:

– Exato e, portanto, a questão da juventude é uma questão que, sim, é importante e não há razão para contestarmos determinadas coisas. Quando os alunos chegam à Universidade, já deviam ter uma formação, já deviam ter feito uma escolha, que não tinham feito antes porque no Liceu, na parte do ensino secundário, não aprenderam a História de Portugal como deveriam aprender. Programas impensáveis! Sabem uma série de coisas, mas nunca tinham chegado à era contemporânea. E muitas vezes assistem as conferências que gente como eu, se calhar, o Zé também, vamos fazendo nas escolas – porque os antigos alunos que tivemos nos convidam para ir falar do 25 de Abril, da repressão, do fascismo, da guerra colonial – e ficam espantados quando eu conto e mostro fotografias e documentos sobre o que foi o fascismo. Não acreditam, mas não acreditam porque também não aprenderam enquanto estudantes. Há uma ignorância relativamente grave provocada por quem tem a responsabilidade de educar essa gente na juventude.

Heloísa:

– Certo!

E você, José Reis?

Reis:

– Eu gostava muito que a juventude tivesse utopia! Foi um tempo de sonho, de emoção, de criatividade, de transformação e faltam hoje essas causas, essas bandeiras. Portanto, hoje estamos, de certo modo, colonizados pela Europa, estamos colonizados pela, sei lá…por este neoliberalismo. Isto é complicado!

Zaluar:

– Desculpa, deixe-me dizer só uma coisa: pelo pensamento único. Imposto pela Europa também.

Reis:

– Gostava de ver, de fato, uma juventude pensante, com massa crítica, livre, liberta, rebelde. E é preciso! Agora, é importante que a juventude não seja a continuidade, mas seja uma alternativa, de certo modo disruptiva deste marasmo, desta massificação. É preciso sair da massificação! Encontrar sonho, encontrar bandeiras, encontrar causas, encontrar energia, encontrar pessoas! Tem que gostar muito das pessoas, gostar de vocês.

Heloísa:

– Ótimo! Muito bem!

Então podemos encerrar aqui essa linda entrevista, com essas mensagens importantes para este momento difícil em que se encontra toda Europa, inclusive, Portugal. Que fique a mensagem desses dois testemunhos do 25 de Abril!

À Revolução dos Cravos!

Muito obrigada!

Na imagem, arte sobre capa ’25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos’, de Lincoln Secco – Companhia Editora Nacional / Reprodução

Tagged: , ,