Pós-vitória Trump: “Não chore, organize-se!”
Em meio ao bipartidarismo – Republicanos e Democratas – a pergunta se impõe: existe esquerda nos Estados Unidos? O Partido para o Socialismo e a Libertação (PSL) mostra que sim.
POR TATIANA CARLOTTI, enviada especial do Fórum 21 e da Fatoflix aos Estados Unidos
de Washington D.C.
Não era obrigatório, mas estava no protocolo que o atual presidente dos Estados Unidos recebesse o sucessor na Casa Branca e, na quarta-feira (13.11), Joe Biden cumpriu a tradição, devolvendo com gentileza a grosseria de Donald Trump que, em 2020, não somente se recusou a recebê-lo, fomentando as dúvidas quanto à legitimidade da vitória democrata, como partiu de Washington antes da posse, estimulando a invasão do Capitólio por uma legião convencida de que Biden havia perdido as eleições e dado um golpe.
Águas passadas, processos arquivados, sorrisos largos e os dois homens brancos, praticamente octogenários (81 e 78), autênticos representantes do status quo, saíram na foto conforme a dança das cadeiras de um bipartidarismo que vigora nos Estados Unidos, afastando qualquer possibilidade de mudança radical ou de ascensão de uma candidatura à esquerda.
Ou melhor, quase. Senador independente reeleito por Vermont, Bernie Sanders conseguiu acender as nossas esperanças em 2016, antes de passar pelas prévias democratas, onde amargou uma derrota, por 46% vs. 54%, para Hillary Clinton. Em 2020, em meio à pandemia, ele desistiu da candidatura e, semana passada, após a vitória trumpista, acusou em uma nota forte a perda de apoio da classe trabalhadora ao Partido Democrata.
“Será que os grandes interesses financeiros e os consultores bem pagos que controlam o Partido Democrata irão tirar lições desta campanha desastrosa? Irão perceber a dor e a alienação política que estão passando dezenas de milhões de americanos? Será que eles têm alguma ideia de como podemos atacar a cada vez mais poderosa oligarquia que tem tanto poder económico e político? Provavelmente não”, afirmou.
Sanders é um dos grandes denunciadores do financiamento privado de campanha, uma aberração que conseguimos nos livrar no Brasil, mas que está em vigor nos Estados Unidos desde a aprovação de uma lei de 2010, pelo Supremo Tribunal do país. A partir desta lei, restringiu-se a possibilidade de candidaturas mais modestas, com menos recursos e razoáveis. E, neste ano, com o advento dos “super PACs”, os comitês de campanha puderam receber financiamentos bilionários.
Além de Sanders, outros nomes à esquerda poderiam ser citados, como o da senadora Elizabeth Warren de Massachussetts; ou da deputada Alexandra Ocasio-Cortez de Nova York, mas ante o modus operandi democrata e o financiamento dos bilionários republicanos, quais as chances? O que levanta uma outra questão: onde está a esquerda nos Estados Unidos?
Após registrar o autoflagelo dos trabalhadores eleitores de Trump, de ver de perto o pão e circo democrata no showmício de Harris, de cobrir a reação das pessoas nas ruas da Filadélfia, eu fui atrás da esquerda por aqui, seguindo a boa pista de um amigo, professor da Universidade da Pensilvânia, que me chamou na sexta-feira (8) para uma reunião do Partido para o Socialismo e a Libertação (PSL) no número 147, da Susquehana Avenue.
POLÍTICA FEITA PELAS PESSOAS
Debate antes da live com Cláudia De La Cruz e outros na sede do PSL, na Flórida. Foto: Tatiana Carlotti.
Ali, no Philly Liberation Center, um sobrado de três andares e em meio aos cartazes de Frida Khalo, Fidel Castro, Ângela Davis, Malcom X, um grupo de jovens comentava a vitória de Trump. A moral estava baixa e até o começo da palestra, online e a primeira com as lideranças socialistas após o resultado eleitoral, cerca de 40 pessoas chegaram e se acomodaram.
Cada um que entrava era estimulado a se apresentar e a participar de uma dinâmica muito bem conduzida e voltada ao compartilhamento de medos e ansiedades. Havia mais jovens do que velhos, mais brancos do que negros, (aparentemente) mais estadunidenses do que imigrantes, uma boa equivalência entre mulheres e homens e entre trabalhadores e estudantes. Neste grupo, alguns se identificaram como socialistas, outros como ex-militantes comunistas e um consenso se generalizou: o presente momento, por mais duro que seja, abre uma oportunidade efetiva de mobilização das pessoas.
Em meio às falas, não faltou menção à possível escalada do racismo dos supremacistas e da polícia; ao pânico da deportação pelos imigrantes não documentados; à farra dos bilionários e aos riscos de uma caça às bruxas pelo atual governo, com restrição a acessos a direitos.
Impossível, ao acompanhar a dinâmica inclusiva e colaborativa do PSL, não lembrar das reuniões da esquerda no Brasil de 2018, após a vitória de Bolsonaro. Tempos de uma imensa necessidade de sociabilidade, de comunhão das ansiedades e, sobretudo, de presença, tão bem sintetizada no mote: “ninguém solta a mão de ninguém”.
Ciente desse movimento, nas redes sociais, o PSL convocou assim que saiu a vitória republicana: “Não chore, organize-se! Muitas pessoas se sentem incertas sobre o futuro com a reeleição de Donald Trump, mas o que temos certeza é do nosso comprometimento em continuar a luta”.
E continuar a luta é compreender que “as pessoas vão precisar de ajuda” e caberá ao partido estimular a criação dessa rede de proteção. Afinal, Trump não está brincando. Para questões relacionadas às fronteiras, está prevista a entrada de Tom Homan, conhecido por “czar da fronteira’, um ferrenho defensor da “tolerância zero” aos imigrantes, que esteve à frente do Serviço de Imigração e Alfândega quando Trump promoveu a inominável separação entre pais e filhos. Outro linha-dura é Stephen Miller, o futuro vice-chefe de gabinete para políticas, entre as quais constará o tal plano de deportações em massa.
No 147 da Susquehana, porém, o apoio será grande. Pelo menos foi esta a acolhida que presenciei neste pequeno universo da esquerda estadunidense. Uma política feita pelas pessoas comuns, de peito aberto e mãos estendidas.
A ESQUERDA QUE TIO SAM NÃO MATOU
Anúncio de cooperação entre as candidaturas.
Com vinte anos de existência, após romper com o Workers World Party (WWP), o PSL é um exemplo de como a esquerda vive dentro dos muros do Império. Com orientação marxista-leninista e uma contundente defesa do anti-imperialismo e do socialismo, o PSL ganhou projeção na onda dos protestos universitários em prol do cessar-fogo em Gaza.
Trata-se de um partido pequeno, sem qualquer chance de vitória, que como outros de esquerda, vem apresentando candidaturas próprias. Neste ano, a candidata foi Claudia De La Cruz. Nascida no Bronx em Nova York, é uma mulher negra e filha de imigrantes da República Dominicana.
Formada em psicologia forense pela John Jay College of Criminal Justice, ela tem dois mestrados, um em Assistência Social na Columbia University e outro em Teologia pela Union Theological Seminary. Ainda jovem, De La Cruz fundou a Urban Butterflies (DUB), organização voltada à capacitação de mulheres e chegou a ser pastora da igreja protestante Santo Romero de Las Américas. Na City University de New York, deu aulas sobre a história dos latinos e das latinas nos Estados Unidos.
Suas propostas de campanha?
O corte de 90% no orçamento militar dos Estados Unidos. A suspensão da ajuda financeira e militar dos EUA para Israel. O confisco de propriedades das 100 maiores empresas estadunidenses. O aumento da tributação sobre grandes fortunas. Em termos de política doméstica? Claudia defende as reparações históricas para os negros do país. A assistência médica universal. A anistia das dívidas dos empréstimos estudantis. O reconhecimento pleno da soberania dos nativos americanos. A expansão do transporte público.
Durante a campanha, De La Cruz (PSL) apoiou, em algumas regiões, a candidatura de Jill Stein do Partido Verde que, por sua vez, apoiou De La Cruz em outros estados. Da mesma forma, a candidatura independente de Cornel West, ex-professor da Harvard e professor emérito de Princeton, apoiou De La Cruz. Esse circuito de apoios atua no impulsionamento da pauta de direitos, civilizatória e anti-imperialista, que vai sendo abraçada por associações e movimentos, partidos e universidades, candidaturas independentes e organizações da sociedade civil país afora.
COMO TRUMP VENCEU?
No evento online, intitulado “Why the democrats failed. How Trump Won. What is to be done?, ou em bom português, “Por que os democratas falharam. Como Trump venceu. O que devemos fazer?”, ao comentar a vitória republicana, De La Cruz mencionou o engessamento democrata e o sentimento, muito perceptível nas ruas, de que não importa quem esteja no governo, as coisas não irão mudar.
A palestra também contou com a participação dos jornalistas Jorge Torres (National Day Laborer Organizing Network – NDLON) e Eugene Puryear (Break Through News), da ativista Miriam Osman do Palestinian Youth Movement e de Brian Becker, outra liderança do PSL.
Claudia De La Cruz percorreu 64 cidades dos Estados Unidos como candidata à presidência pelo PSL.
A primeira crítica feita por De La Cruz aos Democratas diz respeito à tentativa do partido, após o resultado eleitoral, de culpabilizar os segmentos que vinham sendo apontados como decisivos, em particular, os homens negros e os homens latinos.
“Eles dizem que temos de culpar os homens negros, os homens latinos, os imigrantes. Que temos que julgar os que não saíram para votar”, mas temos de intervir sempre que ouvirmos essa história para dizer que não foram eles, mas sim “a falta de coragem do Partido Democrata que nos trouxe até aqui”.
“Foi a incapacidade do Partido Democrata de aceitar a sua responsabilidade de mudar a direção [do país] que nos trouxe até aqui. Trump venceu porque os democratas estão medíocres. Trump venceu porque os democratas não são uma oposição a ele ou a qualquer um que seja da classe dominante. Trump venceu porque os democratas falharam e traíram os trabalhadores”.
Apenas a título de exemplo do quão dominante anda a classe dominante nos Estados Unidos, o gráfico traz o valor em ações de sete grandes Big Techs americanas:
Fonte: Visual Capitalist
Somadas as ações das sete maiores Big Techs americanas, com dados de julho deste ano, o valor total atinge US$ 15,4 trilhões. O PIB dos Estados Unidos, em 2023, bateu US$ 27,36 trilhões. Ou seja, sete empresas – Apple, Microsoft, Nvidia, Alphabet, Amazon, Meta e Tesla – detém juntas mais da metade do que é produzido na maior potência econômica do mundo.
Esse é o nível de concentração de uma aristocracia financeira e tecnológica que tem em Elon Musk, um de seus expoentes. Com dois pés dentro do governo Trump, Musk também comanda todas as etapas de uma cadeia produtiva que engloba a produção aeroespacial, de satélites e de plataformas digitais, sendo capaz de chegar em cada celular através das redes que comanda. Sua missão no governo, segundo Trump, será a de enxugar o Estado, com demissões e cortes, como ele fez ao demitir 80% dos trabalhadores do Twitter.
O fato é que enquanto os ultra-bilionários avançam, sem melindres, na política, a população dela se afasta. Nas palavras de De La Cruz: “o nosso povo não é politicamente apático, tampouco é culpado por não querer se envolver com um sistema político que não se envolve com ele. E que não entrega o que promete”.
Em sua avaliação, os Democratas se transformaram em “um partido com poder econômico e político para fazer algo”, mas que “opta por não fazê-lo”. Sobre Trump, ela é categórica: trata-se de “um personagem produzido pelo sistema capitalista”, um “sintoma de uma doença real [o capitalismo] que devemos trabalhar para destruir”.
64 cidades em 13 meses
Ao relatar o que viu e ouviu nos 13 meses em que passou por 64 cidades norte-americanas – “Não visitamos apenas os estados pêndulos” –, ela mencionou ter ouvido em uma das comunidades “a garantia de que eles vão continuar a fazer este trabalho [de resistência], independentemente de quem seja o novo inquilino da Casa Branca”.
“Essa não é a atitude dos liberais ou dos democratas, mas da classe trabalhadora. Ouvimos essas pessoas nas suas comunidades afirmarem que estão se organizando em torno de salários dignos. Trabalhadores das redes de fast food, da Amazon, de restaurantes que denunciaram o congelamento do salário-mínimo” que em certas regiões “não aumenta desde 2009”, complementou.
Vale destacar que, diferentemente do Brasil, cada um dos 50 estados da república norte-americana possuiu autonomia, o que significa ter leis próprias e valores locais para o salário-mínimo. De La Cruz também contou sobre o cenário desolador de cidades abandonadas pelo poder público, ou melhor, de “comunidades abandonadas tanto pelos republicanos quanto pelos democratas” que se transformaram em “cidades fantasmas, onde as pessoas continuam tentando ganhar a vida”.
Mencionou ainda a violência e o surgimento de cidades policiais pelo país afora. “Fomos a comunidades que estavam se organizando contra a brutalidade policial e o encarceramento em massa”, disse, ao registrar o aumento de mortes pela polícia contra os civis desarmados.
Por fim, De La Cruz cobrou a responsabilidade histórica e atual “de se acabar com a máquina de guerra dos EUA”. Em sua avaliação, “é inconcebível que os Estados Unidos da América tenham um trilhão de dólares alocados para os militares, quando o país vive uma destruição da educação, da assistência à saúde, sem que as pessoas consigam pagar ou tenham acesso a creches”.
Pichação debaixo de viaduto na Filadélfia. Foto: Tatiana Carlotti.
“Nosso pessoal está acordado. Eles sentem [essa realidade] todos os dias e estão esperando por uma alternativa, uma orientação, uma ferramenta”, afirmou, ao destacar que essa situação não vai parar com Donald Trump, mas pode se agravar com ele.
“Ficamos parados e o observamos a consolidação dessa agenda? Ficamos parados e o observamos desencadear todos os tipos de ataques a países e a comunidades historicamente marginalizadas?”, questionou.
MINORIA RICA vs. MAIORIA DA SOCIEDADE
“As pessoas têm lutado e se organizado, mobilizadas contra os ataques em várias frentes. Oque foi intencionalmente quebrado e desmembrado pelo sistema capitalista foi a nossa capacidade de construir um movimento de massa capaz de reunir todas as diferentes lutas”, apontou.
Para ela – e vários analistas que se manifestaram ao longo da semana –, “a verdadeira divisão da sociedade americana não é entre democratas e republicanos. Na verdade, há um partido com dois nomes, duas facções do governo”.
“A divisão não é Trump ou Harris, que contavam com os mesmos doadores. E a minha avó me ensinou que quem paga as contas, pode escolher e decidir qual será a agenda”, ironizou.
“A verdadeira divisão é a minoria capitalista mais rica e a maioria da sociedade. Uma minoria que impõe sua hegemonia e violência contra nós”.
E arrematou: “Não há nada que tenhamos recebido como benevolência da classe dominante. Sempre tivemos que lutar e se há algo em que o Partido Democrata tem sido muito eficaz é em intervir na nossa capacidade de construir o poder popular. Eles têm organização política e nos dizem que não precisamos disso”.
“Eles têm o Congresso, têm o Senado, têm o FBI, a CIA, o Pentágono, a filantropia. Eles estão organizados. A história nos ensina que somente as pessoas organizadas na luta podem salvar outras pessoas. A classe dominante nunca fará isso por nós”.
“Trump está divulgando a sua agenda, que será uma agenda para a classe dominante. Precisamos estar prontos para apresentar a agenda da classe trabalhadora e o que estamos dispostos a defender, a proteger e a lutar”.
Confira aqui a íntegra da live – se necessário, vá em Configurações e acione legendas traduzidas automaticamente para o português.
FOTO DE CAPA: Presidente Joe Biden encontra o presidente eleito Donald Trump na quarta-feira (13.11) no Salão Oval. (Foto: Cameron Smith – Casa Branca).
Repórter do Fórum 21, com passagem por Carta Maior (2014-2021) e Blog Zé Dirceu (2006-2013). Tem doutorado em Semiótica (USP) e mestrado em Crítica Literária (PUC-SP).