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Turquia continua bombardeando civis no nordeste da Síria

Turquia continua bombardeando civis no nordeste da Síria

Em outubro de 2023, instalações básicas de eletricidade, gás e petróleo foram atingidas por ataques aéreos, causando extensos danos na economia e infraestrutura que agravaram a já frágil situação humanitária no nordeste da Síria.

POR JEWAN ABDI e ARKAN SLOO

QAMISHLI, Síria – Os Ramsys, um casal de agricultores do nordeste da Síria, nunca pensaram que gastariam quase todas as suas poupanças em painéis solares. “Pagamos 1.700 dólares. Não podíamos suportar a escuridão e permanecer desligados do mundo exterior”, explica Najma Ramsy em sua residência em Keshka, uma pequena aldeia curda a 750 quilômetros a nordeste de Damasco.

A agricultora de 55 anos admite que ainda não se familiarizou com o novo dispositivo que reflete o céu do telhado da sua casa. É também o lembrete de uma ameaça constante.

“É horrível. Os turcos nos bombardeiam quase diariamente. Nunca esquecerei como a nossa casa tremeu quando uma refinaria próxima foi atacada”, lembra a mulher em conversa com a IPS em sua casa, a cerca de 70 quilômetros a leste de Qamishli, a principal cidade do nordeste da Síria que fica a cerca de 700 quilômetros da capital síria.

A imprensa mal os bombardeiros, e eles não deixaram de se repetir nesta região nos últimos anos.

Um relatório publicado em Janeiro pelo Centro de Informação de Rojava (RIC) – uma organização independente e voluntária – denuncia uma “campanha de ataques aéreos periódicos conduzidos pela Turquia contra infraestruturas civis no nordeste da Síria”. Centenas de civis teriam morrido conforme esse relatório.

De acordo com o RIC, os bombardeios começaram quando Ancara lançou um ataque transfronteiriço à região curda síria de Serekaniye em 2019, fornecendo apoio aéreo às milícias islâmicas.

“O principal objectivo desta campanha de bombardeamento é desestabilizar a região curda da Síria e mudar a sua demografia”: Abdulkarim Omar.

Os bombardeios se intensificaram após o ataque em Istambul, em 13 de novembro de 2022, no qual seis pessoas morreram e dezenas ficaram feridas. Ancara culpou os curdos, mas tanto o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) como as Forças Democráticas Sírias (SDF), predominantemente curdas, negaram envolvimento no ataque.

Os bombardeios, porém, continuaram e ganharam ainda mais força.

Em outubro de 2023, instalações básicas de eletricidade, gás e petróleo foram atingidas por ataques aéreos, causando extensos danos na economia e infraestrutura que agravaram a já frágil situação humanitária no nordeste da Síria.

A agricultora Najma Ramsy junto ao painel solar que teve de instalar no telhado da sua casa, consumindo todas as suas poupanças. A família passou um mês no escuro depois de a central eléctrica ter sido atingida por um ataque aéreo turco, perto de Keshka, a pequena aldeia curda no norte da Síria onde vivem. Foto: Arkan Sloo/IPS.

Um mês depois, a Turquia realizou novos ataques aéreos, na sequência de operações do PKK contra bases militares turcas nas montanhas da região do Curdistão iraquiano, onde vários soldados turcos foram mortos.

Em retaliação, instalações médicas, fábricas de materiais de construção, zonas industriais e complexos agrícolas, incluindo silos e moinhos de cereais, foram atacados no nordeste da Síria.

“Nos últimos cinco meses, não tivemos acesso à água potável e a nossa única fonte de eletricidade vem de geradores comunitários. Só podemos pagar três horas de eletricidade por dia”, disse à IPS Gulsin Malla, uma mulher de 50 anos, em sua casa, nos arredores da cidade de Qamishli.

Ao contrário dos Ramsys, Malla não pode comprar um painel solar. “Seria como um salário de três anos!”, desabafa a mulher curda.  Além disso, o gás também ficou muito caro.

Em meados de janeiro, pelo menos sete funcionários ficaram gravemente feridos num ataque ao complexo energético de Suwadiyah, 780 quilômetros a nordeste de Damasco e 85 quilômetros a sudeste de Qamishli.

A infraestrutura da qual depende quase um milhão de pessoas foi destruída quatro vezes nos últimos dois anos.

“Há mais de um mês que cozinhamos com lenha”, explica Malla. Ele diz que a escassez do gás multiplicou o seu preço por 10. “Adicionem os medicamentos à longa lista do que nos falta e compreenderão porque digo que é como uma ‘morte lenta’ para nós”, afirma.

Um dia no mercado de Qamishli, principal cidade do nordeste da Síria, na região curda do país, na fronteira com a Turquia. A região abriga cinco milhões de pessoas, uma das quais é deslocada internamente devido à guerra. (Foto: Jewan Abdi/IPS)

Ameaça jihadista

Um relatório da Human Rights Watch de outubro de 2023 relatou que os ataques de drones turcos em áreas controladas pelos curdos no nordeste da Síria danificaram infraestruturas críticas e causaram cortes de água e eletricidade a milhões de pessoas.

Veja Também:  Cerca de 76 milhões de pessoas vivem como deslocadas em todo o mundo

“Os moradores da região, que já enfrentam uma grave crise hídrica, também são os mais afetados pelo aumento dos bombardeios. A Turquia deve parar urgentemente de atacar infraestruturas críticas necessárias para garantir os direitos mais básicos e o bem-estar dos residentes, incluindo estações de energia e água”, enfatiza a HRW.

A IPS contatou representantes do Crescente Vermelho Curdo que apontaram “crimes de guerra”, descreveram a situação como “insuportável” e acusaram a Turquia de “vandalizar a região”.

“Estamos testemunhando um aumento no deslocamento de seus habitantes. Muitos deles estão tentando sair da região, principalmente em direção à Europa”, revelaram dois dirigentes de ONGs.

A versão de Ancara é completamente diferente. Em discurso transmitindo em 16 de janeiro, o presidente turco Recep Tayyip Erdoğan prometeu “expandir as operações militares contra grupos ligados a militantes curdos no Iraque e na Síria”. Altos responsáveis ​​turcos têm afirmado repetidamente que a campanha de ataques aéreos tem como alvo “grupos terroristas” curdos.

“São declarações que não têm credibilidade”, disse à IPS o assessor de imprensa das Unidades de Proteção Popular (YPG), Siyamend Ali, em seu escritório no centro de Qamishli.

“A maioria das vítimas foi civis e a maioria dos alvos continua a ser infraestruturas civis. Quase dois milhões ficaram sem eletricidade, para não falar das deficiências no abastecimento de água e nos cuidados de saúde”, acrescentou o representante do principal contingente armado curdo sírio.

Ele também alertou sobre outros riscos.

“Ao atacarem as nossas infraestruturas básicas, estão sufocando o nosso povo, mas também fornecendo oxigênio ao Estado Islâmico para novas operações”, sublinhou Ali.

Os curdos da Síria têm sido os principais aliados da coligação internacional liderada pelos EUA na guerra contra o Estado Islâmico jihadista. Mais de 10 mil de seus combatentes morreram lutando contra o fantasma jihadista.

A destruição massiva na fábrica de Suwadiyah, no nordeste da Síria. A única estação que fornece gás de cozinha a toda a região foi atingida por ataques aéreos turcos pelo menos quatro vezes nos últimos dois anos. (Foto: RIC)

Numa conversa telefônica com a IPS, Abdulkarim Omar, representante da Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria na Europa, afirmou que o principal objetivo da campanha de bombardeios de Ancara é “desestabilizar a região curda da Síria e mudar a sua demografia”.

O alto funcionário curdo baseado em Bruxelas também destacou que dois distritos curdos sírios, Afrin e Serekaniye, ainda permanecem sob ocupação por grupos islâmicos apoiados pela Turquia, desde 2018 e 2019, respectivamente.

“A nossa administração não é apenas ‘curda’, mas também vivem entre nós árabes, sírios, armênios, chechenos… Há quase cinco milhões de pessoas, entre as quais há um milhão de deslocados internos devido à guerra na Síria”, lembrou Karim.

Acontece que as ameaças aparentemente estão se acumulando para todos eles.

Fahad Fatta, um empresário agrícola de 43 anos, pensou em se mudar com a mulher e os três filhos para uma pequena área que possui nos arredores de Qamishli, perto da fronteira com a Turquia. Mas eles não se atrevem mais a ir para lá porque foram alvejados em território turco.

“A situação da segurança está piorando a cada dia que passa. Estamos sempre preocupados com nossos filhos, especialmente quando estão na escola ou brincando na rua com os amigos”, disse Fatta à IPS em seu apartamento em Qamishli.

O fato de os postos de controle da polícia curda terem desaparecido da estrada principal devido a ataques aéreos também não é tranquilizador. Todos sabem que o Estado Islâmico ainda está ativo e Fatta teme que os jihadistas aproveitem a lacuna de segurança.

“Não temos eletricidade nem gás em casa. Mal podemos comprar alguns amplificadores do gerador comunitário, mas temo que tudo isso possa ser a menor das nossas preocupações hoje”, afirma o empresário curdo.

Publicado originalmente na Inter Press Service.


Imagem em destaque: Uma refinaria próxima a Rumilan, no noroeste da Síria, destruída por trones turcos. O petróleo é uma das principais fontes de atração sobre a região curda naquele país. Imagen: Jewan Abdi / IPS

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