Brasil tenta recuperar a indústria com inovação e polêmicas
RIO DE JANEIRO – Sob uma chuva de críticas dos economistas ortodoxos, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva embarcou na recuperação e modernização industrial do Brasil, numa tentativa de superar a desindustrialização das últimas quatro décadas e promover o desenvolvimento econômico.
O programa prevê investimentos de 300 bilhões de reais até 2026, dos quais 90% serão em financiamento e o restante em subsídios e participação acionária nas empresas. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) será a principal fonte de recursos.
É “mais do mesmo”, a repetição de planos que fracassaram durante os governos anteriores do Partido dos Trabalhadores (PT), criticam muitos dos economistas ouvidos pela mídia sobre o novo programa do presidente, um ano depois de voltar ao poder.
Os governos anteriores de Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), atual presidente do banco dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), adotaram vários mecanismos de estímulo à produção nacional, condenados após resultarem na recessão econômica de 2015-2016, com uma perda de 6,8% do produto interno bruto.
As missões
O programa de recuperação industrial, anunciado em 22 de janeiro, estabelece seis “missões”: agronegócio; complexo industrial da saúde; infraestrutura, saneamento, habitação e mobilidade; transformação digital; bioeconomia; e tecnologia de defesa.
Esses vetores, inspirados nas ideias da economista italiana Mariana Mazzucato, buscam superar a fragmentação de políticas setoriais, articular diferentes atividades convergentes e definir as suas orientações pelos objetivos, por seus fins e não pelos meios.
O exemplo é a “missão” que engloba infraestrutura, saneamento, habitação e mobilidade, que “apontam para uma cidade melhor”, explicou Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), que considera promissora a nova estratégia industrial.
As críticas ao que programa chamado Nova Indústria Brasil (NIB) baseiam-se muito em “uma visão ideológica de macroeconomia”, que condena as políticas industriais no Brasil, embora sua atual adoção em muitos países hoje qualifique essas visões negativas, baseadas na experiência do passado recente, disse Cagnin à IPS, por telefone, de São Paulo.
É um tema cujo debate esteve bloqueado desde o fracasso da crise econômica que terminou por conduzir Rousseff ao impeachment, por decisão do Congresso Nacional em agosto de 2016. Lula o reabre enfrentando a repreensão ainda muito presente na opinião pública, especialmente entre os economistas.
Preceitos como o do conteúdo local são reiterados, favorecendo a produção nacional por alguma medida protecionista, até mesmo pelo uso das compras governamentais, dos subsídios e dos créditos favorecidos.
Tudo isso não conduz ao aumento da produtividade, que seria a grande fraqueza da indústria brasileira, nem à competitividade, apontam os críticos.
Além disso, pretende-se fomentar setores falidos, como a indústria naval. Nas últimas décadas, buscou-se aproveitar o impulso da produção petrolífera para a instalação de mais de 30 estaleiros, projetos frustrados ou em falência em sua ampla maioria. Mas são diferentes o contexto atual e a nova estratégia, de acordo com Cagnin.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao lado do presidente da Petrobras, Jean-Paul Prates, na refinaria de petróleo Abreu e Lima, no Nordeste do Brasil, no dia 18 de janeiro, durante cerimônia de retomada de sua construção, interrompida desde 2014. Imagem: Ricardo Stuckert/PR
Contexto mais favorável
“A política industrial anterior era de compensações a alguns setores. Agora foi aprovada uma reforma tributária, cujos detalhes serão discutidos nos próximos meses, que simplifica o sistema e estabelece integração entre os setores e atividades, numa convergência com a indústria”, observou o economista.
O Brasil está unificando cinco tributos no imposto sobre valor agregado, que é cobrado apenas no destino final do produto ou serviço, como já fazem dezenas de países. É o resultado de mais de três décadas de tentativas para pôr fim à irracionalidade tributária, que onera principalmente a indústria pela acumulação de impostos em sua longa cadeia de produção.
Outros fatores geram um ambiente mais propício à também chamada “neoindustrialização” brasileira, destacou o economista. O quadro macroeconômico, por exemplo. “As taxas de juros continuam elevadas, mas em trajetória de queda”, em contraste com as elevadas taxas que prevaleceram desde o início do século até 2011, lembrou.
A taxa básica do Banco Central é hoje de 11,25%, mas atingiu o seu ápice de 13,75% em julho de 2023.
A taxa de câmbio deixou de ser um grande fator de desindustrialização, como o foi desde os anos 90 até 2014, com a moeda nacional, o real, fortalecida pela grande exportação de produtos primários a bons preços.
Agora o governo dispõe de órgãos para conter os custos de produção, a insegurança jurídica e outros obstáculos à nova industrialização, acrescentou Cagnin.
Além disso, a concepção de política industrial mudou. Há mais clareza sobre objetivos e diretrizes, as “missões” permitem superar o risco anterior de favorecimento de setores mais organizados, com uma visão mais sistêmica, intersetorial.
A política de fomento anterior favorecia com créditos do BNDES, mais baratos que os do mercado, os chamados “campeões nacionais”, as empresas ou grupos empresariais escolhidos como os de maior competitividade e possibilidades até de disputar mercados externos.
“As missões diluem as assimetrias”, freiam a captura de benefícios por empresas específicas e permitem ao governo arbitrar pela melhor solução, pelas alternativas que oferecem melhores resultados, considerou Cagnin.
O NIB surge também atualizado em relação ao ambiente e à mudança climática. A descarbonização é um de seus eixos, junto com a inovação tecnológica – uma área fraca no Brasil –, o aumento da produtividade e das exportações.
“O principal desafio dessa política industrial é a coordenação e a governança. São muitos ministérios envolvidos e não foi definida uma coordenação hierarquicamente superior, que poderia ser a presidência ou a Casa Civil, uma autoridade que pode arbitrar conflitos inerentes a um processo de transformação”, disse Cagnin.
Também falta um Observatório para o acompanhamento permanente e avaliações periódicas de como anda a política industrial, tarefa que poderia ser incumbida ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) que tem a vantagem de ser composto por 14 membros do governo e 14 da sociedade civil, entre empresários, trabalhadores e acadêmicos, sugeriu o economista.
O presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, e o vice-presidente, Geraldo Alckmin, em 2 de fevereiro, durante sua visita à fábrica de automóveis da Volkswagen em São Bernardo do Campo, símbolo da antiga industrialização brasileira. O foco agora está na promoção de uma nova indústria que visa, entre outras metas, produzir 70% dos medicamentos consumidos no país, em comparação com os atuais 42%. Imagem: Ricardo Stuckert/PR
Drenagem financeira
Mas o sucesso de qualquer política econômica, incluindo a industrial, depende de conter o “dreno” dos recursos da sociedade pelo sistema financeiro, argumenta Ladislau Dowbor, professor de economia na Universidade Católica de São Paulo.
A taxa básica do Banco Central, agora em 11,25%, representa um custo de 700 bilhões de reais por ano para o Estado, quatro vezes o orçamento de 2023 do Bolsa Família, o programa de transferência de renda para 21 milhões de famílias vulneráveis, comparou.
Pelo impacto das taxas de juros excessivas, o Brasil tem sua economia empobrecida e praticamente estagnada desde 2014, com um crescimento anual médio de apenas 1 ou 2%.
As pessoas físicas pagam 55,8% ao ano, em média, por seus empréstimos, contra cerca de 4% na Europa, enquanto as empresas industriais estão sujeitas a 23% para obter crédito nos bancos, detalhou Dowbor à IPS, também de São Paulo.
Ao capital já não interessa produzir bens e serviços, mas em se reproduzir pela renda financeira. É um capital improdutivo, rentista, destacou.
Como resultado, cerca de 70 milhões de brasileiros, mais de um terço dos 203 milhões de habitantes do país, estão em dificuldade financeira devido às suas dívidas. O governo lançou o programa Desenrola, para tirá-los dessa situação, mas atendeu a pouco mais de 11 milhões.
Com tanta gente endividada e afastada do crédito por conta das altas taxas de juros, a demanda que poderia impulsionar a indústria é reduzida. “Apenas mudanças estruturais poderão estancar a drenagem e reduzir a pobreza. A economia só cresce, mas pouco, porque o governo consegue ‘trabalhar nas fissuras’ do sistema”, concluiu Dowbor.
*Imagem em destaque: O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 22 de janeiro, em Brasília, durante o evento de lançamento do programa da Nova Indústria Brasil, com o qual seu governo busca a recuperação industrial do país, repetindo assim a tentativa frustrada de seus dois governos anteriores (2003-2010), quando a desindustrialização avançou no Brasil, apesar do crescimento econômico do país, baseado na agricultura e na indústria extrativa. Imagem: Cadu Gomes/VPR
**Publicado originalmente em IPS – Inter Press Service | Tradução de Marcos Diniz
É correspondente da IPS desde 1978, e está à frente da editoria Brasil desde 1980. Cobriu eventos e processos em todas as partes do país e ultimamente tem se dedicado a acompanhando os efeitos de grandes projetos de segurança, infraestrutura que refletem opções de desenvolvimento e integração na América Latina.