Estagnação global induzida pelo Fed dos EUA agrava a crise da dívida
O Sistema da Reserva Federal (Fed) começou a aumentar as taxas de juro no início de 2022, atribuindo a culpa da inflação à escassez do mercado de trabalho. Com a subida acentuada dessas taxas, a dívida tornou-se mais onerosa. Imagem: bandeira do Fed.
POR JOMO KWAME SUNDARAN
KUALA LUMPUR – Há tempos, a maioria das instituições financeiras multilaterais insta os países em desenvolvimento a contrair empréstimos comerciais, mas não a China. Agora, os países endividados estão presos em armadilhas de dívida com poucas perspectivas de escapar.
Mais dívida e menos crescimento desde 2008
Na última década e meia, assistimos a uma estagnação global prolongada, com algumas economias e pessoas se saindo muito pior do que outras.
A crise financeira mundial de 2008 e a Grande Recessão foram recentemente agravadas pela pandemia de Covid-19, pelo aumento das taxas de juro impulsionado pela Reserva Federal dos EUA, o Fed, e pela escalada da guerra econômica geopolítica.
Na sequência das reduções fiscais, inspiradas pelo Presidente Ronald Reagan (1981-1989), aparentemente para induzir mais investimento privado, os déficits orçamentais aumentaram. Em vez de permitir uma recuperação rápida, exige-se agora uma maior austeridade fiscal, como na década de 1980.
Após a expansão orçamental ter evitado o pior em 2009, as políticas monetárias não convencionais, principalmente a flexibilização quantitativa (QE), assumiram o controle. O Banco Central Europeu (BCE) seguiu o exemplo da Reserva Federal dos EUA durante mais de uma década.
As taxas de juro mais baixas da flexibilização quantitativa incentivaram a contração de empréstimos, uma vez que o crédito se tornou mais acessível e econômico. Com os países ricos oferecendo menos financiamento em condições favoráveis, os países em desenvolvimento não tiveram outra opção do que recorrer aos mercados para obter empréstimos.
As despesas contracíclicas numa recessão exigem empréstimos públicos, que a flexibilização quantitativa tornou mais acessíveis e mais baratos. O aumento do endividamento daí resultante voltou a assombrar as economias desde 2022-2023, altura em que as taxas de juro dispararam.
Aumentar a dívida
Slogans do Banco Mundial, como “bilhões para trilhões”, instaram os governos do Sul em desenvolvimento a pedir mais empréstimos em condições de mercado para atender às suas necessidades de financiamento para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), clima e pandemia.
Com as contas de capital abertas, muitos investidores privados procuram segurança no estrangeiro. Mas, quando surgiram oportunidades lucrativas de investimento direto, por exemplo na Índia, parte da fuga de capitais regressou sob a forma de investimentos estrangeiros, geralmente privilegiados e protegidos pelos governos dos países de acolhimento e por tratados internacionais.
O aumento da disponibilidade de crédito em condições quase favoráveis, graças à flexibilização quantitativa, permitiu uma maior financeirização, muitas vezes inovadora. O financiamento misto e outras inovações do gênero prometiam reduzir o risco do investimento privado, especialmente do estrangeiro.
Apesar de o endividamento bancário ser mais baixo do que na década de 1970, o endividamento aumentou com mais dívida baseada no mercado. No entanto, este endividamento não fez crescer muito a economia real, apesar da grande inovação tecnológica privada.
Endividamento amargo
O Fed começou a aumentar as taxas de juro no início de 2022, atribuindo a culpa da inflação à escassez do mercado de trabalho. Com a subida acentuada das taxas, a dívida tornou-se mais onerosa.
Assim, o endividamento público em todo o mundo tornou-se mais apertado quando era mais necessário. O aumento das taxas de juro reduziu a procura, incluindo a despesa pública e privada em investimento e consumo.
Mas, as recentes contrações econômicas se devem principalmente a choques de oferta. A segunda Guerra Fria, a pandemia de Covid e as agressões econômicas geopolíticas perturbaram as linhas de abastecimento e a logística.
O aumento das taxas de juro atenua a procura, mas não resolve os choques de oferta. As políticas inadequadas não ajudaram, uma vez que essas medidas anti-inflacionistas reduziram o emprego, os rendimentos, as despesas e a procura em todo o mundo.
Pior para alguns
Após a eclosão da crise financeira mundial em 2008, os sucessivos presidentes dos EUA conseguiram manter o pleno emprego. Todos os bancos centrais estão empenhados em garantir a estabilidade financeira, e o Fed tem também um segundo mandato, quase único, para manter o pleno emprego.
Atualmente, os países do Sul enfrentam muito mais restrições em relação ao que podem fazer. A maioria está fortemente endividada e tem pouca margem de manobra. Com mais financiamento do mercado, a tendência pró-cíclica é mais pronunciada.
Os países em desenvolvimento vulneráveis acreditam que não têm outra opção além de se render ao mercado. A pobreza nos países mais pobres não diminui há quase uma década, enquanto a segurança alimentar não melhora há ainda mais tempo.
E pior: a geopolítica exerceu uma grande pressão sobre o Sul global para que gastasse mais com o setor militar. Mas a maioria dos recentes aumentos dos preços dos alimentos deveu-se à especulação e à escassez artificial e não real.
Os pobres são os mais afetados
A probabilidade de dificuldades aumenta com o peso da dívida. A pressão da dívida aumentou enormemente nos últimos dois anos, especialmente nos países em desenvolvimento que estão fortemente endividados nas principais moedas ocidentais.
Embora as razões aparentes para os bancos centrais aumentarem as taxas de juro sejam raramente citadas, essas taxas não baixaram e os fundos não voltaram a fluir para os países em desenvolvimento.
Desde há pelo menos uma década, os EUA têm avisado cada vez mais os países em desenvolvimento para não contraírem empréstimos da China, apesar de suas baixas taxas de juro em comparação com a maioria das outras fontes de crédito, exceto o Japão.
Consequentemente, os empréstimos da China aos países em desenvolvimento, especialmente na África Subsariana, diminuíram desde 2016. Em 2022, os países mais pobres tinham contraído muito mais empréstimos junto a fontes comerciais. Mas esse capital privado fugiu para os Estados Unidos e outros mercados ocidentais que oferecem rendimentos elevados com mais segurança.
Seguiu-se a fuga de capitais dos países do Sul, especialmente dos mais pobres, e muito menos dinheiro fluiu para os países em desenvolvimento mais pobres através dos mercados. Com menos opções de financiamento, estes países têm sido os mais vulneráveis.
Negociar com vários credores privados nos mercados, em vez de o fazer mediante acordos intergovernamentais, tem sido muito mais difícil. Com muito mais financiamento privado nos mercados, estes financiadores não aceitarão instruções dos governos, a menos que sejam forçados a fazê-lo.
Assim, há pouco horizonte que ofereça uma esperança real de um alívio significativo da dívida, para não falar de uma recuperação forte e de melhores perspectivas de desenvolvimento sustentável no Sul global.
Artigo publicado originalmente na Inter Press Service.
Jomo Kwame Sundaram é professor de economia e antigo subsecretário-geral das Nações Unidas para o Desenvolvimento Econômico.