Estará a ONU preparada para uma segunda presidência de Trump?

Estará a ONU preparada para uma segunda presidência de Trump?

*Artigo publicado originalmente pela Inter Press Service (IPS) em 29 de agosto de 2024

Por THALIF DEEN

NAÇÕES UNIDAS – O Manifesto Comunista, escrito por Karl Marx e Friedrich Engels numa época passada, começa com um aviso implícito: “Um espetro assombra a Europa: o espetro do comunismo”.

Atualmente, outro espectro espreita, mas desta vez nas Nações Unidas: o espetro de uma segunda presidência de Donald Trump nos Estados Unidos a partir de janeiro de 2025.

Quando Trump tomou posse pela primeira vez, em janeiro de 2017, ele deixou de financiar, retirou-se ou difamou várias agências da ONU e instituições afiliadas, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura e o Conselho dos Direitos Humanos da ONU, entre outras.

No caso de uma segunda presidência de Trump, a ONU deve preparar-se para outro pesadelo político?

Segundo uma reportagem do]a CNN, Trump teria dito que, se voltasse a ocupar a Casa Branca, iria restabelecer e ampliar a proibição de entrada de pessoas provenientes de países predominantemente muçulmanos, suspender os reassentamentos de refugiados e deportar agressivamente aqueles que tenham o que chamou de “simpatias jihadistas”.

O ex-presidente citou os atentados de 7 de outubro contra Israel, perpetrados pelo grupo islâmico Hamas, como razão para a sua política de imigração de linha dura. Trump disse também que proibiria a entrada nos EUA de pessoas provenientes de Gaza, da Síria, da Somália, do Iémen, da Líbia “ou de qualquer outro lugar que ameace a nossa segurança”.

Segundo uma piada que circulou profusamente na sala dos delegados da ONU, ao subir pela primeira vez no púlpito da Assembleia Geral e se deparar com centenas de delegados estrangeiros de 192 países, Trump teria perguntado: “Como vocês entraram neste país?”

Também se espalharam rumores de um novo slogan para promover o turismo durante a presidência de Trump: “Visitem-nos com um único bilhete – e nós os deportamos de graça”.

Para além das piadas, entretanto, em uma reunião na Casa Branca em 2017, Trump afirmou que todos os haitianos “têm SIDA”; que os nigerianos deviam “voltar para as suas cabanas em África”; e perguntou por que razão os EUA deviam acolher pessoas de “países de merda” da África, conforme reportagem publicada naquela altura pelo The New York Times.

Ele também demonstrou a sua ignorância ao perguntar se o Reino Unido é uma potência nuclear ou se o Nepal (que ele pronunciava como “Nipple”) e o Butão (que pronunciava como “Button”) faziam parte da Índia.

Sobre uma segunda presidência de Trump, Kul Gautam, ex-subsecretário-geral da ONU e diretor-executivo adjunto do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), disse à IPS: “Sim, há um perigo potencial considerável e muita imprevisibilidade para o sistema da ONU no caso improvável de uma segunda presidência de Trump.

No entanto, acrescentou, a extensão do perigo dependerá do que acontecer no Congresso dos Estados Unidos. Se Trump ganhar e a Câmara dos Representantes e o Senado também forem “capturados” pelo Partido Republicano, a ONU poderá correr um risco mortal.

Além disso, recorde-se que, no início deste ano, os republicanos da Câmara dos Representantes “eliminaram o financiamento regular do orçamento da ONU e de mais de uma dúzia de entidades da ONU, incluindo a Unicef e a OMS”. Assim, o pior cenário para a ONU seria Trump na Casa Branca e uma maioria republicana em ambas as câmaras do Congresso dos EUA.

Mas se uma ou ambas as câmaras do Congresso estiverem nas mãos do Partido Democrata, Trump, por si só, não pode causar danos irreparáveis à ONU, disse Gautam.

Ainda assim, o fato de os EUA retirarem o financiamento a certas agências da ONU causará grandes danos a essas entidades e aos importantes serviços que prestam, disse o autor de, entre outras obras, “My Journey from the Hills of Nepal to the Halls of the United Nations”.

Stephen Zunes, professor de Política e Diretor de Estudos Internacionais na Universidade de São Francisco, nos EUA, que tem escrito extensivamente sobre a política da ONU, disse à IPS: “Sim, isto seria realmente desastroso e o financiamento da ONU para estas agências e instituições afiliadas seria realmente cortado.

Deve-se notar, no entanto, que Biden já eliminou o financiamento dos EUA para a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA) e ameaçou eliminar o financiamento para qualquer organização que tenha a Palestina como membro pleno. Embora Kamala Harris tenha sido geralmente menos hostil às normas legais internacionais do que Biden, não vi nenhuma indicação de que ela reverteria essas políticas, disse Zunes.

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“Dado o desrespeito de Trump pelas leis e instituições nacionais, não é surpreendente que ele tenha um desprezo semelhante pelas leis e instituições internacionais”, complementou.

Samir Sanbar, ex-secretário-geral adjunto da ONU e chefe do antigo Departamento de Informação Pública (DPI), disse à IPS que, além de receber altos funcionários da ONU na Trump Tower, em frente à sede da ONU, o ex-presidente dos Estados Unidos também gostou de estar sentado à mesa principal no almoço de chefes de Estado na abertura da sessão da Assembleia Geral.

Sob uma presidência de Trump, no entanto, há um sério risco dele bloquear os pagamentos para certas Agências e Fundos da ONU, particularmente a UNRWA, que oferece assistência a refugiados palestinos e defende seu direito de retorno. Além disso, a OMS e possivelmente a UNICEF enfrentariam cortes, particularmente para sua assistência em Gaza, avaliou Sanbar.

“Eu li em algum lugar que o genro de Trump, Jared Kushner, preferia limpar Gaza dos seus dois milhões de seres humanos para transformá-la em um resort turístico”, comentou Sanbar, embora a informação não seja oficial.

Ao comentar sobre a ameaça intermitente dos EUA de cortar fundos para as Nações Unidas, Gautam apontou que uma “bênção disfarçada” do drástico corte de financiamento dos EUA seria a ONU se ver obrigada a explorar seriamente um mecanismo alternativo de financiamento de longo prazo mais robusto, e reduzir a sua forte dependência do financiamento dos EUA.

Para evitar a perpétua ameaça e chantagem dos EUA e, ocasionalmente, de alguns outros estados-membros de retirar o financiamento da ONU, “sou totalmente a favor de ressuscitar, reconsiderar e reformular uma proposta muito criativa apresentada pelo ex-primeiro-ministro sueco Olof Palme, em 1985.

Social-democrata, Palme foi primeiro-ministro da Suécia por dois mandatos, entre 1969 e 1976 e entre 1982 e fevereiro de 1986, até ser assassinado quando passeava com sua mulher após sair do cinema.

Ele propôs que “nenhum país deveria ser solicitado ou autorizado a contribuir com mais de 10% para o orçamento da ONU.” Isto significaria uma redução significativa da quota-parte dos EUA no orçamento da ONU, de atuais 25% para 10%, exigindo apenas um aumento modesto da contribuição da maioria dos outros países.

“Sou a favor da proposta de Palme para reduzir a dependência excessiva da ONU em relação a um punhado de grandes doadores e, consequentemente, reduzir a influência indevida desses países na nomeação de seus altos funcionários e em outros processos de decisão”, afirmou Gautam.

Ele recordou que, atualmente, “muitas atividades da ONU se beneficiam de contribuições voluntárias de governos, do setor privado e de fundações filantrópicas”.

“Creio que devemos explorar seriamente mais possibilidades inovadoras, incluindo as receitas dos bens comuns globais e o imposto Tobin (um imposto sobre o movimento de capitais) para libertar a ONU da ameaça perpétua de cortes arbitrários e de desfinanciamentos por parte dos principais doadores”, afirmou.

Vale lembrar que, no contexto mais amplo das finanças internacionais, em uma economia mundial de US$ 103 trilhões e orçamentos militares globais de US$ 2,4 trilhões por ano, o orçamento anual regular da ONU é inferior a US$ 4 bilhões, e a totalidade do orçamento do sistema da ONU para assistência humanitária, cooperação para o desenvolvimento, operações de manutenção da paz, assistência técnica e outras funções normativas essenciais, equivale a menos de US$ 50 bilhões por ano.

“Trata-se de um montante modesto para responder aos enormes desafios que as Nações Unidas têm de enfrentar e ajudar a resolver. Para colocar em perspectiva, o gasto total anual de todo o sistema da ONU é muito menor do que o gasto de um mês dos EUA em defesa, e menor do que a ajuda militar dos EUA a Israel ou Ucrânia.”

Com investimentos semelhantes, ajuda bilateral e orçamentos nacionais de proporções muito maiores, dificilmente seria possível alcançar resultados comparáveis ​​aos que a ONU e as instituições financeiras internacionais alcançam, declarou Gautam.

Na imagem, Trump discursa na Assembleia Geral da ONU em 2017 / Reprodução


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