Operação Condor: por que as vítimas da repressão que assolou a América do Sul continuam lutando por justiça
Exposição de 2010 sobre os desaparecidos após o golpe de 1973 no Chile. Foto: Marjorie Apel/Wikimedia Commons
Principais alvos da Operação Condor eram ativistas políticos (40%), seguidos por integrantes de grupos guerrilheiros (36%). Argentina foi o principal lugar das operações: 69% das vítimas sofreram ataques naquele país. A maioria das vítimas (48%) é de cidadãos uruguaios.
POR FRANCESCA LESSA
OXFORD, Reino Unido – Entre 1976 e 1978, as ditaduras sul-americanas realizaram uma brutal campanha de repressão contra os dissidentes e exilados políticos que se manifestavam contra a violência interna e o regime militar.
O Plano Condor, como ficou conhecida essa operação, desde então inspirou romances, peças de teatro e exibições, e até série na HBO, com base no romance Las cenizas del cóndor (2014), do escritor uruguaio Fernando Butazzoni, que conta a história de um jovem cujos pais fugiram do Uruguai durante a ditadura militar.
Em 1992, cerca de 700.000 documentos foram descobertos em uma delegacia de polícia em Assunção, no Paraguai. Chamados de Arquivos do Terror, os documentos registravam exaustivamente as atividades da polícia secreta paraguaia durante a ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989). Desde então, acadêmicos e jornalistas no Chile, Argentina e Estados Unidos têm investigado a rede terrorista transnacional.
Entre 2017 e 2020, eu compilei o primeiro banco de dados sobre violações transfronteiriças de direitos humanos na América do Sul. E registrei pelo menos 805 vítimas de sequestros, torturas, violência sexual, roubo de bebês, além de execuções extrajudiciais e desaparecimentos ocorridos entre 1969 e 1981.
Um grupo de juízes majoritariamente feminino preside o veredicto de apelação de 2019 no julgamento de Condor em Roma. Foto: Janaina Cesar
Como surgiu o Plano Condor
Como explico em meu novo livro, The Condor Trials [Les Juicios del Cóndor], o novo processo aberto contra o oficial da Marinha, o cidadão ítalo-uruguaio Jorge Néstor Tróccoli, constitui a 48ª investigação criminal sobre esses anos de terror desde os anos 1970. A primeira audiência foi realizada em Roma em 14 de julho de 2022.
Tróccoli é acusado dos assassinatos na década de 1970 de três pessoas: uma cidadã italiana, Rafaela Filipazzi, uma uruguaia, Elena Quinteros, e um argentino, José Potenza.
Minha pesquisa mostrou que a maioria das vítimas do Condor (48%) eram cidadãos uruguaios. A Argentina foi o principal teatro de operações, já que 69% de todas as vítimas foram atacadas lá. Além disso, os principais alvos foram ativistas políticos (40%), seguidos por integrantes de grupos guerrilheiros (36%).
As investigações costumam situar o começo da Operação em 1974-1975. Entretanto, minha pesquisa mostrou que, desde 1969, refugiados brasileiros no Uruguai, Argentina e Chile foram perseguidos e, em muitos casos, mortos.
No contexto geopolítico da Guerra Fria se formulou a doutrina da segurança nacional nos Estados Unidos, com base na ideia de que a consecução da segurança nacional estava acima de qualquer outra preocupação governamental. Os líderes militares da América do Sul se inspiraram nessa doutrina para levar adiante golpes de estado contra governos civis.
O golpe de Estado em1954 no Paraguai, em que o governo do presidente Federico Chávez foi derrubado pelo exército, foi o primeiro. Seguiram-se golpes no Brasil (1964), Bolívia (1971), Uruguai, Chile (1973) e Argentina (1976).
As ditaduras militares estabelecidas reprimiram brutalmente todas as formas de oposição política. Milhares de prisões ilegais aconteceram. A tortura e a violência sexual eram frequentes. Sequestros, roubos de bebês e execuções extrajudiciais foram cometidos. A violência fez com que cidadãos de toda a América do Sul fugissem de seus países de origem.
Os brasileiros buscaram refúgio no Uruguai e no Chile a partir de 1968, quando a repressão interna no Brasil se intensificou. Eles foram os primeiros a serem atacados.
No início de 1974, milhares de brasileiros, bolivianos, chilenos, paraguaios e uruguaios viviam na Argentina. Ativos na denúncia dos crimes contra a humanidade que vinham sendo cometidos em toda a região, eles foram alvo da violência cada vez maior de suas respectivas ditaduras.
Em 25 de novembro de 1975, representantes das forças de segurança da Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai foram convidados pelo chefe da polícia secreta chilena para uma reunião nacional de trabalho de inteligência em Santiago, Chile. Assim nasceu o Plano Condor.
O sistema Condor era composto por quatro elementos. Primeiro, o sistema secreto de comunicações Condortel, que permitia que seus membros compartilhassem informações. Em segundo, Condoreje abrangia o eixo operacional e incluía um escritório de comando avançado, localizado em Buenos Aires, que supervisionava as operações no terreno, especialmente na Argentina.
Em terceiro lugar, um banco de dados em Santiago do Chile centralizou as informações de inteligência compartilhadas. E quarto, a unidade secreta Teseu, encarregada de realizar ataques contra alvos esquerdistas na Europa.
Como as mulheres lutaram por justiça
Um grupo de ativistas por justiça – sobreviventes, famílias de vítimas, ativistas, profissionais do direito e jornalistas – há muito se dedica a expor essas violações de direitos humanos. Muitas delas são mulheres, mães, avós, esposas, irmãs e filhas que tiveram suas vidas atingidas pela Operação Condor. Como me disseram os promotores argentinos, essas pessoas “promovem absolutamente todas as investigações que foram realizadas: sem elas nada teria acontecido”.
O jornalista americano Jack Anderson usou o termo “Condor” pela primeira vez em agosto de 1979 , em um artigo no Washington Post. No entanto, já em 1976 e 1977, o jornalista uruguaio Enrique Rodríguez Larreta e o ex-sindicalista Washington Pérez testemunharam perante a Anistia Internacional e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre as provações sofridas em Buenos Aires e Montevidéu.
As eleições gerais argentinas de 1983 marcaram o gradual retorno da democracia e do regime constitucional à América do Sul. Brasil e Uruguai seguiram o exemplo em 1985, depois Paraguai em 1989 e Chile em 1990.
Em países como Chile e Brasil, o regime cessante tentou garantir sua própria impunidade com novas leis de anistia. Em outros, como Argentina e Uruguai , os novos parlamentos democráticos tentaram impedir o retorno do regime militar com leis semelhantes. Como resultado, todas as investigações criminais sobre atrocidades passadas foram encerradas.
Apesar desses contratempos, várias investigações criminais sobre as atrocidades da Operação Condor estão em andamento desde o final dos anos 1970. Trinta desses casos já foram condenados, quatro julgamentos estão em andamento, três foram arquivados e 9 estão em fase de investigação.
Até o momento, 112 oficiais militares e civis sul-americanos, incluindo ex-ditadores e ministros do governo, foram levados à justiça. Provavelmente, esse número representa apenas uma parte dos culpados. Embora não haja uma estimativa oficial do número total deles, é provável que cheguem aos milhares.
Este processo é importante para as vítimas, suas famílias e as sociedades mais amplas que sofreram no passado. Também é crucial evitar que tais atrocidades aconteçam no futuro.
Além disso, a repressão transnacional de exilados e dissidentes continua sendo um problema premente em todo o mundo. Segundo o think tank americano Freedom House, apenas em 2021, aconteceram 85 casos desse tipo. A justiça contra os crimes do Plano Condor se erige em clara advertência aos estados autoritários de hoje.
Artigo republicado em espanhol na IPS e originalmente publicado no The Conversation.
VR: GE
Francesca Lessa é professor de Estudos e Desenvolvimento Latinoamericano na Universidade de Oxford. É autora de Memory and Transitional Justice in Argentina and Uruguay: Against Impunity (2013) e The Condor Trials: Transnational Repression and Human Rights in South America. Entre 2016 e 2020, ela ganhou a prestigiada bolsa Marie Skłodowska-Curie da Comissão Europeia, para conduzir um projeto sobre a repressão estatal transnacional na América do Sul dos anos 1970 e as tentativas contemporâneas de obter justiça para essas atrocidades transfronteiriças.