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Um massacre pode salvar o futuro indígena no Brasil

Um massacre pode salvar o futuro indígena no Brasil

Julgamento do marco temporal no STF começou em 2021, com os votos de dois dos onze ministros, um contra e outro a favor. Foi suspenso a pedido do ministro Alexandre de Moraes por mais tempo para analisar a questão. Retomado em 7 de maio, justamente com o voto fundamentado de Moraes, foi novamente suspenso no…

Por MARIO OSAVA

Crianças foram arremessadas para o ar e feridas com armas brancas. O massacre que começou com tiros foi finalizado com facas, para evitar sobreviventes entre os 244 indígenas da aldeia. O massacre de 1904 marcou o povo Xokleng e pode decidir o futuro dos povos indígenas do Brasil.

É uma tragédia emblemática do genocídio sofrido pelos indígenas na história brasileira. Houve matanças mais numerosas e recentes, principalmente durante a ditadura militar de 1964 a 1985, mas esta encontra-se no centro de um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que vai determinar o andamento das demarcações dos territórios indígenas no país.

O julgamento tem uma causa específica: a reivindicação do governo de Santa Catarina, feita em 2016, por meio do Instituto do Meio Ambiente (IMA), de uma parte da terra demarcada dos xokleng, para destiná-la a uma reserva biológica.

Mas o STF reconheceu em 2019 que esse processo tem repercussão nacional, para todas as demarcações de terras indígenas, porque a demanda alega a tese do “enquadramento provisório”, pela qual os povos originários só têm direito às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a atual Constituição brasileira que outorga as atribuições territoriais.

O julgamento começou em 2021, com os votos de dois dos 11 ministros do STF, um contra e outro a favor do marco temporal. Foi suspenso a pedido do ministro Alexandre de Moraes por mais tempo para analisar a questão. Retomado somente agora, em 7 de maio, justamente com o voto fundamentado de Moraes e voltou a ser suspenso na quarta-feira, 7 de junho.

O massacre de 1904 é parte dos argumentos de Moraes contra o marco temporal, como exemplo da espoliação pela violência a que os indígenas foram submetidos. Seria “injusto” exigir sua presença em suas terras tradicionais em uma data precisa. Os xokleng foram “forçados a deixa-las para não morrer”, salientou.

O ministro Alexandre de Moraes (C), do Supremo Tribunal Federal, é a grande estrela do Judiciário no Brasil. Ele emitiu um voto que pode ser decisivo para o futuro dos indígenas em suas terras. Ele também preside a Justiça Eleitoral e conduz investigações que podem condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro à inelegibilidade ou à prisão por espalhar desinformação e agir contra a democracia. (Foto: Alejandro Zambrana / Secom -TSE).

Violências variadas

A Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ , onde vivem hoje 2.300 pessoas, quase todas dos povos xokleng e algumas famílias guarani e kaingang, foi demarcada em 2003, com 37.000 hectares reconhecidos como território indígena pelo governo de Santa Catarina em 1926, conforme documento oficial em poder dos indígenas.

Entretanto, em 1965, a ditadura militar fixou seu território em apenas 14.000 hectares. Além disso, dez anos depois, ordenou a construção de barragens na bacia do rio Itajaí, que corta a região, para conter enchentes nas cidades e fazendas rio abaixo.

Em consequência disso, inundou as terras xokleng e reduziu ainda mais a área onde vivem os indígenas, sua agricultura e suas estradas, agravando o isolamento de seus povos. Nos anos 1990, um estudo antropológico sugeriu a expansão do território para os anteriores 37.000 hectares, questionados pelo governo local e pelos fazendeiros que invadiram parte das terras.

O quase extermínio desse povo originário foi divulgado no livro do antropólogo Silvio Coelho dos Santos, Indígenas e brancos no sul do Brasil: a dramática experiência dos xokleng, que inclui o registro do massacre de 1904 do jornal Novidades.

Essa tragédia histórica tem muitos casos semelhantes no Brasil, mas ser conhecida e documentada, de modo inquestionável, enfraquece o marco temporal, defendido por muitos políticos e latifundiários como fator de segurança jurídica e redução de conflitos no campo, mas em evidente desacordo com a Constituição.

“A inconstitucionalidade básica é que os artigos (sobre os indígenas) não tratam do marco temporal e reconhecem como ´originários´ os direitos territoriais indígenas. Conforme a Constituição, não há indígena sem-terra, explicou à IPS Marcio Santilli , ex-presidente da governamental Fundação Nacional do Índio (Funai) e fundador do não governamental Instituto Socioambiental.

Graças ao mandato da Constituição, foram demarcadas até agora, e sem o marco temporal, 496 terras indígenas, o equivalente a 13% do território nacional. E estão em diferentes fases desse processo outras 238 áreas, algumas já identificadas como indígenas, outras ainda em estudo, segundo o Instituto Socioambiental, que possui um importante banco de dados sobre o assunto.

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No Brasil, segundo o Censo de 2022, existem 1,65 milhão de indígenas, um aumento de 84% em relação ao censo de 2010, embora representem apenas 0,8% da população nacional. No país, existem 305 povos indígenas que falam 174 idiomas, segundo a Funai.

Moraes condenou o marco temporal, mas seu voto preocupou lideranças indígenas ao propor “indenização plena” aos proprietários “de boa-fé” que ocupam as áreas demarcadas. Até agora, apenas as benfeitorias fornecidas foram indenizadas e não o próprio terreno, considerado produto da usurpação.

Indígenas da região metropolitana de São Paulo bloqueiam rodovia com fogueiras, em protesto contra o quadro temporário, que limita drasticamente a demarcação de territórios das comunidades nativas. Os legisladores estão tentando dar à medida status legal, enquanto a Suprema Corte adiou uma decisão sobre o assunto pela segunda vez, em 7 de junho. Imagem: Rovena Rosa / Agência Brasil.

Conciliação rechaçada

“Moraes quer uma indenização prévia, pagar primeiro aos fazendeiros e depois demarcar a terra indígena, o que pode levar 10 anos. Eles buscam um grande acordo, de médio prazo, para satisfazer aqueles que se apropriam ilegalmente das terras”, protestou Mauricio Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

“Por que os nossos direitos são sempre reduzidos? Sempre o meio-termo para nossos direitos, sempre nossas as perdas”, limitou-se a dizer aos indígenas presentes em Brasília para acompanhar o julgamento do STF.

Cerca de 1.500 “parentes” de todo o país acamparam na capital e houve manifestações de “não ao marco temporal” em dezenas de cidades e rodovias do país, informou o Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib .

Moraes também propôs que, em caso de dificuldades praticamente intransponíveis, como a existência de cidades em área reconhecida como indígena, se recorra a compensações, ou seja, substituição por terras em outros locais, caso a comunidade indígena aceite.

“Nossos territórios não são negociáveis. Nossa relação com eles é profunda, é onde caíram nossos ancestrais”, rebateu Terena.

Sua reclamação também se deve à nova interrupção do julgamento. Outro juiz, André Mendonça, ex-ministro da Justiça do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro (2019-2022), pediu mais tempo para reflexão. Ele tem até 90 dias para dar a conhecer seu voto e permitir a retomada, mas prometeu fazê-lo antes.

“Eles precisam de tempo. Saímos daqui sem resposta”, lamentou Terena. O processo já dura mais de sete anos, e o prazo serve de justificativa para invasões e violência contra as terras indígenas.

De qualquer modo, “foi positivo o voto de Moraes”, por reconhecer a inconstitucionalidade do marco, avaliou Megaron Txucarramãe, cacique do povo kaiapó, que vivem na região da Amazônia Oriental.

“Voltaremos a Brasília quando recomeçar o julgamento, continuaremos na luta para garantir a Constituição e a terra para nossos netos”, disse à IPS, por telefone, do acampamento indígena criado nos arredores do STF, o cacique Megaron Txucarramãe, reconhecido líder do povo kayapó, da Amazônia Oriental. Foto: Cortesia de Megaron Txucarramãe.

Deputados contra indígenas

Sua batalha não se limita à frente judicial. A Câmara dos Deputados aprovou no dia 30 de maio, em caráter de urgência, um projeto de lei que estabeleceria o marco temporal, por uma maioria de 283 votos contra 155. A aprovação final desse projeto agora depende do Senado.

“Os processos caminham em paralelo e se influenciam. Se o STF declarar a inconstitucionalidade do regime temporário, o projeto perde o sentido, mas aumenta o custo para o Supremo”, disse à IPS, de São Paulo, Oscar Vilhena, diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas.

O custo se refere ao aumento da pressão política dos parlamentares da direita ligados aos latifundiários, conhecidos como “ruralistas”, que há muito tempo atacam o STF por supostamente se intrometer em questões legislativas.

Além disso, caso se imponha a inconstitucionalidade da norma proposta, “a Câmara dos Deputados poderá retomar as deliberações sobre uma emenda constitucional já aprovada no Senado”, alertou Santilli por telefone de Brasília.

A proposta, que estava esquecida na Câmara desde 2015, quando foi recebida do Senado, estabeleceria justamente o pagamento de indenização pela posse da terra, não apenas por benfeitorias, aos proprietários afetados pela demarcação dos territórios indígenas, desde outubro de 1988, ou seja, durante a vigência da atual Constituição.

Artigo originalmente publicado na Inter Press Service.
Tradução: Tatiana Carlotti

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