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Várias incertezas bloqueiam o direito à terra indígena no Brasil

Várias incertezas bloqueiam o direito à terra indígena no Brasil

O presidente Lula prometeu homologar 14 terras indígenas que já estavam demarcadas e prontas para homologação final, mas quatro ainda não foram demarcadas. O Brasil tem 533 destes territórios já formalizados, enquanto 263 encontram-se em diferentes estágios de demarcação.

POR MARIO OSAVA

RIO DE JANEIRO – Uma batalha sem fim ameaça os direitos indígenas que pareciam definidos e seguros no Brasil, até o surgimento da extrema-direita em 2018, com uma força que desafia os avanços civilizatórios previstos na Constituição nacional.

Após três décadas de avanços na demarcação de seus territórios e outras conquistas, os povos indígenas do Brasil sofreram retrocessos desde o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). Agora que o governo é simpático às suas demandas, eles enfrentam um inimigo insidioso: o prazo.

“Não vejo perspectivas de uma solução favorável”, confessou Maurício Terena, advogado e coordenador do departamento jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que reúne as sete principais organizações indígenas do país.

“Estamos preocupados, com expectativas que não são nada boas”, concorda Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental, uma organização não-governamental indígena e ambientalista.

Ambas se referem ao processo de conciliação convocado pelo ministro decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, em busca de um acordo sobre as terras indígenas, entre os próprios indígenas e os parlamentares que conseguiram aprovar no Congresso Nacional a lei que impõe o marco temporal.

“Os direitos da minoria indígena são a parte negociável, numa negociação maior para acalmar a suposta crise democrática. Mas conceder um sanduíche para amenizar a crise alimenta o monstro que o STF quer devorar”, Juliana Batista.

Esse marco, uma norma que limita o direito dos povos indígenas apenas às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição, é a arma de uma ofensiva ultradireitista que tem semeado incertezas e retrocessos entre os povos indígenas.

Em 21 de setembro de 2023, o STF considerou esse quadro inconstitucional, após anos em que esse conceito, abraçado por alguns juízes, impediu diversas demarcações. A Constituição assegura aos povos indígenas “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, o que é o oposto da fixação de uma data.

Mas o Congresso se rebelou contra essa decisão e, seis dias depois, aprovou uma lei que estabelece o marco temporal e alterações que enfraquecem a autonomia indígena e a proteção de seus territórios.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou a maioria das medidas, inclusive o marco. Mas, três meses depois, o Congresso derrubou o veto, desafiando abertamente o presidente, o STF e a Constituição.

Douradina (MS) 06/08/2024 – Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, delimitado pela Funai em 2011, onde ocorreu um ataque armado de fazendeiros que deixou 10 indígenas Guarani-Kaiowá feridos. Foto: Bruno Peres/Agência Brasil.

Os riscos para os indígenas

“Não faz sentido conciliar uma tese que o Supremo Tribunal Federal já julgou inconstitucional. Parece um movimento de autopreservação do Supremo em suas disputas com o Congresso”, analisou Terena à IPS, referindo-se ao agravamento de vários conflitos entre os poderes que sacodem a política brasileira nos últimos cinco anos.

As batalhas do STF, outrora mais frequentes com o poder executivo por causa dos abusos de autoridade e mentiras de Bolsonaro, inclusive em relação à pandemia de Covid-19, são agora mais frequentes com o poder legislativo, onde a extrema-direita se fortaleceu, apesar da derrota de Bolsonaro na sua candidatura à reeleição em 2022.

O juiz Mendes estaria tentando flexibilizar a disputa, principalmente com os “ruralistas”, a bancada do agronegócio, a maior do Congresso, que ficou irritada com a decisão do STF, considerando-a hostil à propriedade rural e um fator de insegurança jurídica para o poderoso setor rural.

Para isso, ele criou uma Comissão de Conciliação, série de audiências quando um assunto é particularmente controverso e pode degenerar em conflito. Neste caso, composta por 24 membros, na sua maioria legisladores e representantes do governo.

A Apib tem apenas seis membros e sente que foi levada a uma escolha dramática.

Os Terena fazem parte deste grupo indígena que se sente em desvantagem e ameaçaram se retirar das negociações na primeira audiência, em 5 de agosto, frente as regras adversas aos povos indígenas ditadas por Mendes, como relator dos processos do marco temporal no STF.

O juiz decidiu, após essa audiência, consultar as comunidades indígenas antes de tomar suas decisões. A segunda audiência será no dia 28 de agosto.

Indígenas protestam em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília, no dia 3 de março de 2024, contra a lei que restabeleceu um marco temporário para a demarcação de terras de povos originários, considerado inconstitucional pelo mesmo tribunal superior, mas que continua em vigor, estimulando conflitos. Imagem: Rafa Neddermeyer / Agência Brasil.

Contradições enfraquecem o papel do Supremo Tribunal Federal

Entre as regras propostas, uma estabelece que a saída de uma das partes não interrompe a negociação. Outra diz que as resoluções podem ser adotadas por maioria de votos. Nenhuma conciliação é possível sem uma das partes interessadas, nem é imposta por uma votação, argumentou Terena em entrevista à IPS por telefone, de Brasília.

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A decisão deve ser adiada porque há muitas lideranças a serem ouvidas e “há muitos riscos em se retirar e permanecer na comissão”, disse o membro do povo Terena, um dos mais numerosos do Brasil, que vive no estado de Mato Grosso do Sul, no centro-oeste do país.

“Acho que os riscos são maiores com a nossa presença, porque significaria aceitar essas regras e legitimar um processo de conciliação sem sentido”, defendeu o advogado.

Além disso, os indígenas, a parte mais afetada nessa questão, são minoria na comissão que pode votar resoluções, acrescentou Batista.

Os danos aos direitos indígenas são prolongados e se acumulam.

O STF levou dois anos para concluir o julgamento dentro do prazo e não suspendeu a validade da lei, embora seu principal preceito seja inconstitucional de acordo com a mais alta corte do país, apontou a advogada do ISA.

“Essa contradição enfraquece a autoridade do STF. Mendes adotou uma posição mais política do que jurídica, para não confrontar os interesses econômicos de um setor forte”, o agronegócio, analisou também por telefone de Brasília.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu em Brasília, no dia 10 de agosto, lideranças do povo Guarani-Kaiwoá, que vivem em territórios muito pequenos ou lutam pela demarcação de suas terras, às vezes sob ataques armados de latifundiários. Imagem: Ricardo Stuckert/PR.

Em detrimento da minoria

Batista alertou que “os direitos da minoria indígena são a parte negociável, em uma negociação maior para acalmar a chamada crise democrática. Mas conceder um sanduíche para amenizar a crise alimenta o monstro que o STF quer devorar”.

Por seu lado, Terena sublinhou que, uma vez que parece inviável defender a constitucionalidade do marco temporal, “o objeto da negociação” dos ruralistas é a indenização dos latifundiários pelas terras que perderão com a restauração dos direitos indígenas, e pela exploração econômica, mineira, agrícola ou outra, do território demarcado.

Até agora, os ocupantes de terras reconhecidas como indígenas apenas têm direito à indenização pelas benfeitorias e obras com que contribuíram para o território, onde as atividades econômicas se tornam restritas e sujeitas à aceitação indígena.

Também é do interesse das forças anti-indígenas criar obstáculos à demarcação das reservas, para atrasar o processo. A indenização para quem tem títulos legítimos da terra, pela medida já aprovada no STF, pode inviabilizar muitas demarcações para um governo com severas restrições fiscais, apontou Batista.

“O que acontece com os indígenas que não recebem a terra que precisam e sobre a qual têm direito? A assimilação forçada pela sociedade no entorno e muitas mortes, inclusive em conflitos por terra e suicídios dos que não são assimilados”, alertou.

A conciliação pretendida deve priorizar a obtenção de “terras para indenizar e reassentar os ocupantes de territórios sob demarcação” e para a crescente população indígena, disse Marcio Santilli, sócio-fundador do ISA, em artigo publicado pela organização.

Genocídio

A população indígena, que chegou a ser de três a oito milhões de pessoas quando os portugueses chegaram ao Brasil em 1500, segundo várias estimativas, caiu para 294.131 no censo oficial de 1991, que contabilizou pela primeira vez os que se declararam indígenas. Anteriormente, eles eram incluídos entre os mestiços.

O genocídio histórico voltou a ocorrer durante a ditadura militar, de 1964 a 1985. Mas foi justamente nesse período que a resistência se manifestou na reafirmação da identidade indígena e na luta por direitos, reconhecidos na Constituição de 1988, pelo menos em relação aos seus territórios.

Três décadas de democracia e direitos constitucionais impulsionaram um renascimento dos povos indígenas refletido no censo de 2022: um total de 1.693.535 pessoas declararam-se indígenas, 5,7 vezes a população de 1991.

A Constituição incentivou a demarcação de 451 terras indígenas, 84,6% do total existente no Brasil, nas três décadas seguintes à ditadura militar, segundo dados do ISA, que acumula um extenso banco de dados sobre os povos indígenas.

Mas esse avanço foi interrompido durante o governo Bolsonaro, representante das mesmas forças que apoiaram os militares. O atual governo retomou as demarcações e outras políticas indigenistas, mas com as limitações impostas pelo poder da extrema-direita no Congresso e em setores agrários e religiosos.

O presidente Lula prometeu homologar 14 terras indígenas que já estavam demarcadas e prontas para homologação final, no começo do seu governo, em janeiro de 2023, mas quatro ainda não foram demarcadas. O Brasil tem 533 desses territórios já formalizados, enquanto outros 263 estão em diferentes estágios de demarcação.

Artigo publicado originalmente na Inter Press Service


Foto de capa: Indígenas reunidos em Brasília, durante o Acampamento Terra Livre que acontece todos os anos em abril na capital, manifestam-se contra a lei de bases provisórias, que pretende restringir ao mínimo a demarcação de terras indígenas e abrir as já demarcadas a atividades econômicas prejudiciais à sua população e ao ambiente, com o edifício do Congresso Nacional ao fundo. Imagem: Gustavo Bezerra / IndiBSB.

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