Allende: Yo pisaré las calles nuevamente

Allende: Yo pisaré las calles nuevamente

Por Emiliano José

Meio século passado.

E a voz de Allende ressoa.

As últimas palavras dele, as palavras, quem sabe, de um herói trágico.

Ou mais: de um revolucionário consciente, capaz de imolar-se para deixar uma lição imorredoura.

Ouvida pelo povo chileno na última eleição.

Quando um passo foi dado.

E logo depois, houve sinais contraditórios, a demonstrar os caminhos sinuosos da luta pela democracia e pelo socialismo.

Caminhos sempre lembrados por Allende, a serem percorridos pelas veredas acidentadas da democracia.

Aquela recusa de abandonar La Moneda é o momento da celebração da dignidade de um homem diante da história.

E de lá, da Rádio Magallanes¸ ouvimos, nítida, a palavra dele, parte final de um discurso histórico:

– Dirijo-me ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, àqueles que serão perseguidos porque no nosso país o fascismo já esteve muitas horas presente: nos atentados terroristas, voando as pontes, cortando as linhas férreas¸ destruindo os oleodutos e os gasodutos¸ contra o silêncio dos que tinham a obrigação de se pronunciar.

Assassinos de Víctor Jara condenados

Não, não seria ele a silenciar diante do fascismo. E ele sentenciava:

– A História irá julgá-los.

Sabia disso.

Os fascistas, no Chile, continuam a ser julgados, tardiamente seja.

No dia 29 de agosto, tem poucos dias, o Ministério Público chileno informou: o general da reserva Hernán Chacón cometeu suicídio momentos antes de ser preso por crimes cometidos durante a ditadura militar.

Aos 85 anos de idade, Chacón foi condenado juntamente com outros militares reformados – Raúl Jofre, Edwin Dimter, Nelson Haase, Ernesto Bethke e Juan Jara – a 15 anos de prisão pelo assassinato do cantor e compósitor Víctor Jara, e mais 10 anos pelo sequestro do artista, ocorrido cinco dias após o golpe de estado de Augusto Pinochet, de 11 de setembro de 1973. Jara foi morto com ao menos 45 disparos.

A polícia foi à casa de Chacón para levá-lo a cumprir a sentença. Ele pediu para ir ao quarto para buscar remédios, e então se matou.

– Certamente, a Rádio Magallanes será calada e o metal tranquilo da minha voz não chegará até vocês. Não importa. Continuarão me ouvindo. Estarei sempre junto com vocês. Minha memória será a de um homem digno, de um homem que foi leal.

Até hoje, essa é a memória cultivada de Allende.

Capaz de olhar para o povo com sabedoria e compaixão.

– O povo deve defender-se, mas não sacrificar-se.

Não queria o massacre, não pretendia murros em ponta de faca.

Mas não queria também um povo submisso:

– O povo não deve deixar-se arrasar nem abater, não pode humilhar-se.

Fazia questão de manter a esperança:

– Trabalhadores da minha pátria: tenho fé no Chile, no seu destino. Outros homens superarão este momento cinzento e amargo onde a traição pretende se impor.

Outra vez, o profeta, o político revolucionário, a conclamar o povo:

– Continuem vocês. Sabendo que muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde o homem livre passará para construir uma sociedade melhor. Viva Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores!

Proclamava:

– Estas são minhas últimas palavras.

Tinha consciência do papel, do significado do sacrifício dele, inevitável salvo se pagasse o preço da rendição:

– Tenho certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que será pelo menos uma lição moral que punirá o crime, a covardia e a traição.

Gente do Partido Socialista chega ao La Moneda cercado para perguntar a Allende o que fazer, e ele responde secamente:

– Eu sei qual o meu lugar e o que tenho de fazer.

Andava irritado com os partidos da Unidade Popular, de modo especial com o Partido Socialista. Haviam se oposto à convocação do plebiscito, com o qual pretendia aliviar tensões, desanuviar o ambiente político.

Que não tivessem dúvida: iria enfrentar o golpe até as últimas consequências. Do La Moneda, só o tirariam morto. 

Ainda, pouco depois das nove horas da manhã daquele 11 de setembro de 1973, dirige-se novamente ao povo chileno pela Rádio Magallanes.

– Pode ser que nos destruam. Que saibam, no entanto, que aqui estamos pelo menos com nosso exemplo, que neste país há homens que sabem cumprir com a obrigação que têm.

Um homem, ele dirá, a cumprir um mandato conferido pelo povo.

– Mandato consciente de um Presidente que tem a dignidade do cargo a ele entregue pelo seu povo em eleições livres e democráticas.

Não vacila, insiste:

– Pagarei com minha vida a defesa dos princípios que são caros a esta pátria.

Nos céus, os aviões.

La Moneda, implacavelmente cercado por tanques.

Golpistas passarão à história como assassinos

O general Ernesto Baeza, secretário do Exército, fala com Allende: quer dele rendição imediata.

Acrescida da oferta de um avião, no qual podiam sair do país ele e a família.

Outra e mais uma vez, não hesita:

– A responsabilidade é de vocês. Passarão à história como assassinos do presidente da República.

Antes do final do discurso dele à Rádio Magallanes, revelado no início desse texto, Allende, na fala dele, dirá serenamente:

– A Força Aérea bombardeou as torres da Rádio Portales e da Rádio Corporación. Minhas palavras não têm amargura, senão decepção. E serão elas o castigo moral para os que traíram o juramento feito por soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se se autodesignou comandante da Armada, o senhor Mendonza, general indigno, que ontem manifestava fidelidade e lealdade ao [nosso] governo, e se denominou Diretor dos Carabineiros.

Reafirmava:

– Não vou renunciar. Colocado em um trânsito histórico, pagarei com minha vida a lealdade ao povo. Eu lhes digo: tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser ceifada de modo definitivo.

Confiança na luta do povo:

– Os processos sociais não se detêm nem com o crime nem com a força. A História é nossa. E é feita pelos povos.

Antes do final do discurso, Allende agradece à lealdade dos trabalhadores, agradece à confiança depositada “em um homem que só foi intérprete de grandes anseios de justiça”:

– Que empenhou sua palavra de que respeitaria a Constituição e a lei¸ e que assim o fez.

Analisa:

– O capital estrangeiro, o imperialismo unido à reação, criou o clima para que as Forças Armadas rompessem a tradição delas, assinalada por Schneider, reafirmada pelo comandante Araya.

Allende rechaçou intransigentemente a oferta do avião para ir embora para o exterior com a família.

Na última tentativa dos golpistas, foi categórico ao responder ao general-aviador Gabriel van Schowen:

– O presidente do Chile não aceita avião. Que os militares saibam comportar-se como soldados, que eu saberei agir como presidente da República.

Ouviam-se os disparos de metralhadoras, artilharia pesada, movimentação de tanques em volta do La Moneda.

Allende conversa pelo telefone com o almirante Patrício Carvajal, coordenador das operações militares, chefe do Estado-Maior.

Pede: autorizasse a saída das pessoas que estavam no La Moneda.

Obteve dois minutos de trégua, isso mesmo: dois minutos.

Allende força a saída das filhas Isabel e Beatriz, das jornalistas Verônica Ahumada, Frida Modack e Cecília Tormos, e algumas outras mulheres, além do pessoal de serviço e cozinha.

Teve de esforçar muito para a saída do assessor Joan Garcés: por ser espanhol, corria risco duplo, se preso. Golpe vitorioso, e haveria uma combinação explosiva com o franquismo, ainda vigente em Espanha. Garcés, a muito custo, convencido.

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Depois, forçou todas as pessoas não comprometidas a lutar, aquelas sem armas ou sem capacidade de disparar, portadoras de alguma enfermidade ou deficiência física ou qualquer problema a impedi-las de combater – todas deviam abandonar o palácio, e se salvar.

Ordenou aos militares, ajudantes de ordem dele: saíssem de La Moneda e voltassem às suas instituições.

Era a postura de um líder, de um comandante, salvar a todos aqueles que pudessem ser salvos.

Ao final, restavam no La Moneda, lado a lado com Allende, em torno de 40 pessoas, dispostas a matar e morrer, fidelidade incondicional, só possível de ser testada em horas como aquela.

Um ou outro médico, um pequeno grupo de militantes do Partido Socialista e membros do GAP – Grupo de Amigos Pessoais -, guarda pessoal constituída pelo Partido Socialista do Chile, mantida entre 1970 e 1973 para proteção do presidente.

Allende ordenou ao general José Sepúlveda, leal a ele até o fim, entregasse armas a todas as pessoas capazes de defender La Moneda.

Cubanos lotados na Embaixada de Cuba entraram em contato com Allende: queriam combater ao lado dele.

Na embaixada, havia um grande depósito de armamentos em um subterrâneo de 120 metros quadrados, ao lado de uma sala de operações, tudo preparado para um combate considerado inevitável por eles. Jamais acreditaram ser possível implantar o socialismo com “vino e empanadas”, como diziam.

Oferta recusada: não interviessem em um conflito considerado estritamente chileno por ele.

A disparidade de forças, absurda.

Apesar da palavra-de-ordem da Unidade Popular de não oferecer resistência, combates ocorriam em toda Santiago.

Franco atiradores do GAP operavam em frente ao La Moneda.

A Junta Militar golpista decretou lei marcial: fosse pegado com armas nas mãos, morto impiedosamente.  

Generais golpistas fizeram um outro ultimatum: Allende se rendesse ou abandonasse La Moneda.

Allende rechaça o ultimatum.

O presidente toma conhecimento de bombardeios sobre as populações da periferia de Santiago. Golpistas já haviam metralhado o acampamento Che Guevara e o Hospital Barros Luco e as poblaciones La Legua e La Victoria.

Só, não se rende, e prefere imolar-se

Allende ainda faz um esforço para evitar a matança.

Queria salvar vidas: envia os ministros Daniel Vergara, Fernando Flores e o secretário particular Osvaldo Puccio para parlamentar com os militares. Cessassem os bombardeios e se constituísse um governo com civis e respeito às conquistas sociais.

Os emissários foram presos.

Golpistas só aceitavam rendição incondicional.

Novamente repelida.

Allende não acreditava que as Forças Armadas determinassem o bombardeio do La Moneda.

Estava enganado.

Ao meio-dia, 60 minutos após o prazo dado para a rendição, os aviões Hawker Hunter sobrevoaram o La Moneda e lançaram duas bombas de 50 quilos, estremecendo a terra, estraçalhando vidraças e fazendo lustres despencarem do teto.

Durante meia hora, o bombardeio prosseguiu, implacável.

La Moneda em chamas.

O fascismo em fúria, sedento de sangue.

Viva a morte! – ecos de um tempo considerado morto: estava ali, vivo.

Às 12,30, La Moneda ardia em chamas.

E à frente do palácio, 14 tanques, dezenas de canhões, bazucas, morteiros, metralhadoras e fuzis disparavam sem cessar.

Inferno.

Importava ao golpe tirar Allende da frente, a qualquer custo.

Impor a rendição incondicional.

Ou matar todos no La Moneda.

Que se pagasse qualquer preço.

Augusto Olivares, notável jornalista, assessor de imprensa de Allende, diretor da Televisão Nacional do Chile durante o governo da Unidade Popular, ao dar-se conta da impossibilidade de resistência, é o primeiro a se imolar.

Suicida-se.

Allende, de modo a evitar mais mortes, considerando a fuzilaria incessante, massacre em andamento, determina de modo vigoroso a saída e a rendição dos militantes do GAP e de todas as demais pessoas presentes no La Moneda.

Ordem para todos.

Ele ficaria.

Na cabeça, o suicídio de Getúlio, episódio de que sempre se lembrava.

Ele agora só, no La Moneda.

Irremediavelmente só.

Por escolha.

Entre escombros, fogo, muita fumaça, explosões.

Escuridão.

O belo La Moneda, um breu.

Ele e seu destino.

Ouvira, pelo telefone interceptado do Estado-Maior, a palavra do general Baeza, com quem falara várias vezes:

– Teremos que matá-los como formigas. Que não reste nem rastro de nenhum deles, em especial de Allende.

Por que dar aos golpistas o gosto de matá-lo como a um cão, como a uma formiga?

Não daria.

Às 14 horas, o general Javier Palacios, comandante do cerco ao La Moneda, dá ordens à tropa de entrar no palácio.

O general depara no segundo andar, Salão Independência, com Allende morto.

Jazia sobre dois almofadões, num sofá vermelho.

Na parede, o quadro a óleo de Fray Pedro Subercaseaux: representava o momento da proclamação da independência do Chile, em 18 de setembro de 1810.

Sobre o corpo, um AK-47, fuzil com o qual combatera durante todo o cerco.

Recupero palavras de Luiz Alberto Moniz Bandeira, base das lembranças dos últimos momentos de Allende:

“Salvador Allende era uma alma forte e generosa. E como um homem ético, tornou-se um herói trágico. Havia renunciado a si mesmo para expressar o geral, e imolou-se como um cavaleiro da fé, ao ver a ‘via chilena’ para o socialismo em ruínas, destroçada pelas Forças Armadas.”

Penso no gesto. Na nitidez do gesto. Tão consciente do significado. A certeza, exposta em seus discursos pela Radio Magallanes, de que as palavras e o gesto, combinados, haviam de marcar a história chilena, e inegavelmente marcou.

As comparações históricas, devido às singularidades das situações, são sempre complicadas. Ele, Allende, estava em Xangai quando das comemorações do quinto aniversário da Revolução Chinesa, e confidenciou ao jornalista Flávio Tavares o quanto o suicídio de Getúlio o impressionou, especialmente a carta-testamento face ao conteúdo fortemente anti-imperialista dela. Muito provavelmente, Getúlio lhe veio à mente na solidão do La Moneda.

Meio século depois, o exemplo de Allende, as palavras dele soam como absolutamente atuais. Havia afirmado a implacável marcha da história, com o La Moneda cercado. As massas voltariam a ocupar las calles.

Pablo Milanés eternizou Allende, a partir das palavras dele, e nós seguiremos cantando com ele, nesse 11 de setembro de 2023, Yo pisaré Las Calles Nuevamente:

Yo pisaré las calles nuevamente

De lo que fue Santiago ensangrentada

Y en una hermosa plaza liberada

Me detendré a llorar por los ausentes

Yo vendré del deserto calcinante

Y saldré de los bosques y los lagos

Y evocaré en un cerro de Santiago

A mis Hermanos que murieron antes

Yo unido al que hizo mucho e poco

Al que quiere la pátria liberada

Dispararé de las primeras balas

Más temprano que tarde sin reposo

Retornarán los libros, las canciones

Que quemaron las manos asesinas

Renacerá mi pueblo de su ruina

Y pagarán su culpa los traidores

Un ñino jugará en uma alameda

Y cantará com sus amigos nuevos

Y ese canto será el canto del suelo

A una vida segada en La Moneda

Yo pisaré las calles nuevamente

De lo que fue Santiago ensangrentada

En uma hermosa plaza liberada

Me detendré a llorar por los ausentes

As ruas de Santiago, e de todo o Chile, jamais se esquecerão de Allende.

Allende, presente!

Referências

MILITAR chileno comete suicídio ao ser preso por morte na ditadura. Terra.com.br, 29/08/2023.

MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Fórmula para o caos: ascensão e queda de Salvador Allende (1970-1973) / Luiz Alberto Moniz Bandeira. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, 640 p. (517-543).

TAVARES, Flávio. O dia em que Getúlio matou Allende e outras novelas do poder / Flávio Tavares. – 6ª edição. – Rio de Janeiro: Record, 2004.

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