Assalto ao poder: o integralismo de 1938 e o bolsonarismo de 2023
A História não se repete, mas frequentemente rima
(Mark Twain)
A Intentona Integralista foi o assalto ao Palácio da Guanabara, onde residia o então presidente Getúlio Vargas, promovido pela Ação Integralista Brasileira (AIB) em movimento contra o Estado Novo. A invasão do palácio ocorreu no Rio de Janeiro, em 11 de maio de 1938 e tinha como objetivo a deposição do Presidente da República, Getúlio Vargas, que extinguiu as agremiações políticas em todo o país, inclusive a AIB.
A ação visava prender o Presidente dentro de sua residência, através da invasão ao palácio e das movimentações por parte de diversos militares. O levante fracassou e terminou com cerca de 1.500 encarceramentos e o exílio de Plínio Salgado, líder máximo dos integralistas, para Portugal.
No site Memorial da Democracia, encontramos algumas informações sobre a invasão integralista do Palácio da Guanabara que merecem ser relembradas à luz da invasão bolsonarista que vandalizou as três sedes do Poder da República no domingo 8 de janeiro passado.
O ataque integralista foi comandado pelo tenente Severo Fournier e começou por volta da meia-noite. Quando os rebeldes chegaram ao palácio, o chefe da guarda, o tenente fuzileiro naval Júlio do Nascimento, também integralista, abriu o portão externo aos invasores, que cercaram o prédio e cortaram luz e telefones. Uma linha, porém, continuou funcionando, e Alzira Vargas conseguiu pedir ajuda.
Getúlio comandou pessoalmente a resistência, organizada inicialmente por alguns parentes e poucos auxiliares, armados unicamente de revólveres. Durante quase cinco horas, houve intenso tiroteio, sem que nenhum tipo de ajuda chegasse para defender o presidente e sua família.
O ataque só terminou horas depois, quando Fournier resolveu fugir com seus homens. Às cinco horas da manhã, o coronel Cordeiro de Farias chegou ao palácio Guanabara, acompanhado de policiais. Depois vieram Eurico Gaspar Dutra (ministro da Guerra) e Góis Monteiro (chefe do Estado-Maior do Exército).
Depois do ataque ao palácio Guanabara, em 11 de maio, a repressão policial seria implacável. Cerca de 1.500 pessoas seriam detidas. Cinco dias depois do cerco, o governo baixaria um decreto reduzindo os julgamentos do Tribunal de Segurança Nacional a ritos sumários, com o mínimo de prazos e testemunhas. No dia 18, um novo decreto instituiria, entre outras medidas, a pena de morte.
Muitos integralistas seriam presos e torturados, e vários outros se refugiariam em embaixadas. Plínio Salgado e Gustavo Barroso, seus principais líderes, seriam excluídos do processo por falta de provas. Plínio seria dado como desaparecido, embora continuasse morando em endereço conhecido pelas autoridades, em São Paulo. Preso no final do ano, só ficaria encarcerado por três dias. Somente um ano depois é que Getúlio decretaria seu exílio. O historiador Edgar Carone escreveria depois que, durante todo o tempo em que esteve em Portugal, Plínio Salgado recebeu do governo brasileiro uma “mesada”.
Anos depois, Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha do presidente, escreveria em seu livro de memórias: “Góis Monteiro me disse nada poder fazer, porque também estava cercado em seu apartamento… Francisco Campos transmitia palavras de solidariedade admirativa e passiva… O chefe de polícia (Filinto Müller) confirmou o prévio envio de tropas e espantou-se de que não houvessem chegado ao seu destino… Não fiquei sabendo como nem por que o general Eurico Gaspar Dutra foi o único membro do governo que conseguiu atravessar a trincheira integralista. Não pude apurar também o que aconteceu depois que se retirou com um arranhão na orelha novamente transpondo o cerco do inimigo”.
Ressalvadas as diferenças históricas, que são muitas, é curioso observar alguns pontos em comum. Primeiro, o chefe da guarda abriu o portão para os invasores integralistas, exatamente como ocorreu agora na invasão bolsonarista do Palácio do Planalto. Em segundo lugar, os militares do Alto Comando do Governo Vargas sumiram e só apareceram de manhã, após a retirada dos invasores. Não é difícil supor que simpatizavam com o movimento integralista, como hoje os militares simpatizam com o bolsonarismo.
É sabido que os generais de Getúlio simpatizavam com o nazifascismo e queriam ficar na guerra do lado da Alemanha. Foi o caso do general Dutra e do general Góes Monteiro que chegou a visitar a Alemanha de Hitler. Consta que a habilidade diplomática de Vargas e de seu embaixador em Washington, Osvaldo Aranha, negociou apoio aos aliados EUA/Grã-Bretanha em troca de financiamento para a indústria, destacando-se a Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda, ponto de partida da industrialização brasileira.
A situação internacional hoje é bem diferente. A hegemonia de um único país, os EUA, perde terreno para a multipolaridade, com outros centros de poder econômico, político e militar. Os militares brasileiros se alinharam, há muitas décadas, à posição norte-americana de combate ao comunismo durante a guerra fria. Ocorre que a guerra fria acabou, o Muro de Berlim caiu em 1989, a União Soviética desmoronou em 1991, e é hoje um país capitalista. Mas a ideologia anticomunista perdurou e traz proveitos em campanhas eleitorais e tentativas de golpe de Estado. Com o uso em larga escala da comunicação eletrônica nas redes sociais, as “fake news” tornaram o comunismo um fantasma onipresente que assombra e amedronta as famílias bolsonaristas.
O capitão que presidia o Brasil até 1o de janeiro deste ano se tornou fiel apoiador do ex-presidente Trump, com quem partilha suas ideias neofascistas. Por ironia do destino, Bolsonaro apoia Trump que apoia Putin, por diversas razões, entre as quais ambos querem o enfraquecimento da Europa. Ora, Trump e Putin são dois inimigos do presidente Biden. Não é difícil concluir que, para Biden, Lula é o mal menor. Daí, mandou 4 diplomatas para defender o sistema eleitoral brasileiro e dar recado aos militares: Nada de golpe!
Apesar disso, os militares brasileiros parecem sempre enamorados de um golpe para implantar a ditadura militar. A tradição do Exército é travar uma guerra interna para reprimir o povo, seu grande inimigo. A pressão, tanto internacional como dentro do país, em favor da democracia imobilizou os militares, o que explicaria sua divisão interna em relação ao que fazer a respeito do governo Lula.
Após o terrorismo bolsonarista do dia 8/1, o presidente Lula tem agido de forma enérgica, rejeitando a tutela militar, em que pese a atitude conciliatória de seu Ministro da Defesa. A questão militar explodiu na conjuntura política logo no início do governo. O vandalismo bolsonarista, que contou com o apoio da PM de Brasília e de militares que abrigaram terroristas no acampamento frente ao QG do Exército e lhe deram fuga, não gerou a intervenção militar, como era esperado.
Ao contrário, foi um fracasso desastroso, e a correlação de forças tornou-se agora nitidamente favorável à democracia. Ressalte-se a atitude rápida e decisiva do Presidente Lula e do Ministro Flavio Dino decretando a intervenção na Segurança Pública de Brasília e driblando a GLO que seria o veículo da intervenção militar. No dia seguinte, o Ministro do STF Alexandre de Moraes determinou o afastamento do Governador do Distrito Federal.
A hora é de avançar. É necessário defender a democracia contra a barbárie e prender todos os que apoiaram o vandalismo bolsonarista que destruiu as sedes dos três poderes da República. Isso exige a punição dos agentes diretos, dos financiadores, dos estrategistas, dos parlamentares e ministros que apoiaram a invasão, bem como dos policiais e militares que apoiaram o vandalismo e impediram a prisão dos criminosos, ajudando inclusive a dar fuga aos terroristas logo após a invasão e destruição do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF.
Dificilmente, todo esse objetivo será alcançado. A tradição brasileira de conciliação sempre fala forte. A batalha mais difícil será travada contra os militares golpistas que, com armas na mão e, na cabeça, ideias retrógradas do século passado, irão certamente resistir ao enfraquecimento da tutela militar a que estão acostumados.
Liszt Vieira é integrante da Coordenação Política e Conselho Editorial do Fórum 21 e do Conselho Consultivo da Associação Alternativa Terrazul. Foi Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92, secretário de Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro (2002) e presidente do Jardim Botânico fluminense (2003 a 2013). É sociólogo e professor aposentado pela PUC-RIO.