Componente militar do levante no Brasil revive seu golpismo

Componente militar do levante no Brasil revive seu golpismo

Aos poucos, a natureza da relação entre as Forças Armadas e o ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo exposta, incluindo suas tentativas de suprimir a democracia no Brasil por meio de uma tentativa de golpe, usando seus seguidores mais radicais ou outros artifícios.

RIO DE JANEIRO – Aos poucos, a natureza da relação entre as Forças Armadas e o ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo exposta, incluindo suas tentativas de suprimir a democracia no Brasil por meio de uma tentativa de golpe, usando seus seguidores mais radicais ou outros artifícios.

Se acumulam as evidências da conspiração militar oculta contra a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, líder do esquerdista Partido dos Trabalhadores (PT), inaugurada em 1º de janeiro, após ele governar o país entre 2003 e 2010.

Mas nenhuma autoridade ousa, publicamente, acusar os generais de cumplicidade nas tentativas de golpe, o último ocorrido em 8 de janeiro com a invasão por centenas de bolsonaristas radicais da sede dos Três Poderes Democráticos em Brasília.

O quartel do Exército impediu a polícia do Distrito Federal de acabar com o acampamento dos bolsonaristas que ocupavam a área restrita em frente ao Quartel do Exército desde 1º de novembro, pedindo uma intervenção militar para impedir a posse de Lula e sua deposição.

De lá saiu a maior parte dos vândalos que invadiram e destruíram as sedes da Presidência da República, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, no dia 8 de janeiro. Nem mesmo depois dessa ação golpista os militares permitiram o despejo da turba golpista.

O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, afastado de suas funções pelo Supremo Tribunal Federal por indícios de omissão ou conivência com a violência do dia 8 de janeiro, disse que ordenou a retirada do acampamento no dia 29 de dezembro, mas o Exército bloqueou sua execução.

O ex-comandante da Polícia Militar local, Fabio Vieira, preso e afastado do cargo, corroborou o que disse o ex-chefe e declarou que suas três tentativas de expulsar os bolsonaristas foram frustradas devido ao veto dos militares, que também não permitiu a prisão de quem participou da invasão e destruição de prédios públicos.

Vídeos divulgados revelaram que um coronel do Exército impediu a prisão de invasores dentro do Palácio do Planalto, quando a Polícia Militar conseguiu conter a destruição da sede da Presidência da República e tentou prender os invasores em flagrante delito.

Vários oficiais aposentados e parentes de militares de alta patente foram identificados entre os invasores dos três poderes do Estado.

Na noite do dia 8 de janeiro, o Exército mobilizou um reforço de soldados e viaturas de combate para proteger o acampamento dos bolsonaristas, quando a polícia do Distrito Federal tentava deter as pessoas que haviam participado das invasões ali realizadas.

Flavio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública, atual homem forte do governo, de cuja ação depende a estabilidade política do Brasil, após a furiosa invasão de bolsonaristas radicais à sede dos Três Poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro, em aparente tentativa de golpe. Foto: Tom Costa/MJSP

Incubadora do golpe

Só na manhã seguinte a polícia conseguiu desarmar o que o ministro da Justiça, Flavio Dino, chamou de “incubadora de terroristas”, o acampamento que há 70 dias conspirou contra a democracia e convocou os militares a “intervir” para evitar a presidência de Lula, antes e depois de sua posse.

Um total de 1.398 pessoas foram detidas em Brasília, após a liberação dos idosos que participaram do motim.

Mas outras centenas foram interrogadas e registradas como suspeitas de atos criminosos. Os vídeos, em muitos casos gravados e divulgados pelos invasores da sede invadida, permitem a identificação de muitos deles.

Prevê-se que as denúncias, a troca de acusações e as tentativas de colocar a culpa em terceiros se intensifiquem, enquanto a Justiça, em especial o desembargador Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, tenta identificar os financiadores, os articuladores e os mandantes da tentativa de golpe de 8 de janeiro.

Autoridades de Brasília num beco sem saída

As autoridades do Distrito Federal ficaram em situação mais vulnerável, já que cabe às suas forças policiais cuidar da segurança em Brasília, principalmente nas proximidades das sedes dos três poderes democráticos.

O ex-secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, que até 31 de dezembro foi ministro da Justiça de Bolsonaro, está detido desde que voltou dos Estados Unidos em 14 de janeiro, assim como o ex-comandante da Polícia Militar. O governador foi suspenso do cargo apenas por 90 dias, mas terá que responder a várias investigações.

Mas o nó da crise política são as Forças Armadas. Eles sempre foram um componente central do poder no governo Bolsonaro, e decisivos em sua vitória eleitoral em 2018. Há uma simbiose entre a instituição e o líder da extrema direita, ele próprio capitão reformado do Exército.

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A grande vantagem de Bolsonaro no triunfo eleitoral de 2018, com 57,8 milhões de votos, e os 58,2 milhões obtidos no segundo turno, em outubro de 2022, com discurso francamente favorável à ditadura militar de 1964-1985 representaram, para as Forças Armadas, uma redenção.

Foi o resgate de uma dignidade ofendida durante mais de três décadas de redemocratização, o triunfo de ressentimentos acumulados.

Mas os militares têm uma forma atávica de exercer o poder, sempre com ambiguidades. É o “Poder da Camuflagem”, título do livro do jornalista Fabio Victor, publicado em novembro, sobre a atuação política dos militares desde o fim da ditadura, em 1985.

Quase nunca exercem poder ou assumem cargos abertamente. Seus manifestos são sempre ambíguos, disfarçados. Tentam contornar as restrições à sua participação política, para evitar punições disciplinares, expressando-se por meio de colegas aposentados, por meio de discursos codificados.

O turbulento governo de Bolsonaro os obrigou a correr riscos muitas vezes. Assim, milhares de militares ocuparam cargos no governo e um general assumiu o Ministério da Saúde no pior momento da pandemia de covid-19, missão temerária para quem não tem conhecimento de epidemiologia.

Pior para as Forças Armadas, que sofreram os efeitos do desastre na gestão da saúde, agravados por se tornarem compradores e distribuidores da cloroquina, o remédio que só charlatães recomendavam para combater a covid-19.

Nas eleições de outubro, o Exército teve de assumir um papel totalmente inapropriado para os militares, o de questionar a credibilidade do sistema eleitoral brasileiro, eletrônico desde 1996, respeitado internacionalmente e que nunca registrou sequer suspeita de fraude.

Incluído entre as instituições que avaliaram o sistema, o grupo de oficiais do Exército começou por deturpar, não divulgando nenhuma avaliação após o primeiro turno de 2 de outubro, ao contrário de outras organizações convidadas. Deixou de divulgar suas conclusões para depois do segundo turno, causando tensões com ele.

Ao final, emitiu uma nota inconclusiva, afirmando que não foi possível identificar a fraude, mas que o sistema é vulnerável. Assim, deixou a janela aberta para os bolsonaristas continuarem atacando a vitória de Lula como fraudulenta e justificando os atos golpistas e os acampamentos da conspiração em frente aos quartéis.

O novo comandante da Marinha, Almirante Marcos Sampaio Olsen, durante sua posse em cerimônia singela para hábitos militares, juntamente com o Ministro da Defesa, José Múcio Monteiro. O comandante anterior não quis participar do ato. A transferência do comando nos três ramos das Forças Armadas tornou-se um ato de rebelião, porque os comandantes cessantes não quiseram cumprimentar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foto: Marinha do Brasil / Fotos Públicas

Matriz de extrema-direita

As Forças Armadas são a matriz da extrema-direita, especialmente pelo poder exercido durante a última ditadura, em que o Brasil vivia um acelerado processo de crescimento econômico, urbanização e multiplicação das classes médias.

Ele consolidou um profundo anticomunismo no imaginário popular, crença que hoje se estende a qualquer política social, de luta contra injustiças ou desigualdades. Até hoje os generais comemoram o golpe de Estado de 1964 como um marco da democracia, a derrota do comunismo.

Uma rejeição absoluta a Lula, justificada pelo escândalo de corrupção que levou o presidente a 580 dias de prisão entre 2018 e 2019, disfarça a intolerância para qualquer esquerdista. Pode haver exceções, assim como em relação à simpatia por Bolsonaro, mas é um sentimento geral, cultivado em quase dois séculos de história militar.

No Brasil, as Forças Armadas já estavam politizadas e realizavam golpes e atentados contínuos. A própria República nasceu de um golpe militar em 1889. Desde então, os grupos políticos dentro dos quartéis proliferaram, até a unificação da extrema-direita após o golpe de 1964.

Bolsonaro representou a oportunidade para que as forças que levaram a ditadura voltassem ao poder. A tentativa de exercê-la em um quadro institucional democrático produziu a tragédia atual e a dos últimos quatro anos.

A dificuldade é como desarmar essa bomba construída há mais de um século, que se acostumou a não ser um poder moderador, mas uma força de último recurso, historicamente antidemocrática, ao contrário das Forças Armadas dos Estados Unidos, para quem a democracia é vital para a nação e sua projeção internacional.

Ainda que em nome da liberdade tenham cometido muitas atrocidades no mundo, inclusive impondo ditaduras. Mas que força teriam os Estados Unidos sem democracia interna?

Publicado originalmente em IPS

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