Cuba: transição socialista em economia de escassez?!
Aline Marcondes Miglioli, graduada e doutora pelo IE-UNICAMP (mestre pela UNESP), é uma das organizadoras do livro “Entre a Utopia e o Cansaço: Pensar Cuba na Atualidade”, fruto de vasta pesquisa de campo. Foi responsável pela esclarecedora entrevista, apresentada no segundo capítulo, com José Luis Rodriguez, economista, professor e ex-ministro da Economia de Cuba.
Permite conhecer as etapas da história econômica da Revolução Cubana, seus acertos, avanços e dilemas. Em 1959, praticamente não havia economistas graduados na ilha, talvez por isso tenha predominado o sonho ideológico em lugar de o enfrentamento pragmático da realidade de um país pobre.
A primeira etapa da política econômica do governo revolucionário, de 1959 a 1963, é demarcada pela mudança na estrutura da propriedade por meio de nacionalizações. Confundia-se “a criação da estrutura econômica de um país socialista” com a estatização dos meios de produção e a eliminação do mecanismo do mercado para alocação do capital, substituído pelo planejamento central.
Em uma diminuta economia primário-exportadora, sob a assessoria da CEPAL, entre 1961 e 1963, desenvolveu-se uma estratégia de industrialização substitutiva de importações. Tinha o objetivo de diversificação da produção básica do país, até então centrada no açúcar.
A dura realidade dos fatos se impôs, depois o reconhecimento de Cuba não estar preparada para se industrializar, porque não tinha os elementos mínimos para tanto. Por exemplo, a escolaridade da força de trabalho era de apenas dois anos de estudo, ou seja, não tinha mão-de-obra qualificada sequer para transferência de tecnologia, caso fosse realizadas, sendo ela incapaz de criação tecnológica.
Como consequência dessa industrialização “despreparada”, teve uma queda absoluta na produção e interrompeu essa estratégia dois anos após. Na verdade, a Crise dos Mísseis em Cuba, um confronto de 13 dias (16–28 outubro de 1962) entre os Estados Unidos e a União Soviética relacionado com a implantação de mísseis balísticos soviéticos em Cuba, abriu nova perspectiva econômica.
Com a revolução, tinha deixado de ser um país “neocolonizado” pelos Estados Unidos, mas tornou-se o mesmo diante a União Soviética. Fez um aparente bom negócio em garantir um preço fixo para exportação de seu açúcar para ela, supostamente, criando condições para a industrialização.
Essa especialização produtiva permitiu um processo de intensificação tecnológica na agricultura e o desenvolvimento da ciência. Logo, em 1965, já tinha criado o embrião do setor de biotecnologia, bastante desenvolvido atualmente.
Nos anos 70, foi feita uma revisão do sistema de planejamento. A Primeira Retificação da Direção da Economia criticou o idealismo inicial. Em 1975, o plano ainda era industrializar gradualmente a economia cubana através do estímulo ao desenvolvimento da indústria básica, do níquel, da produção de máquinas e sementes. Havia um processo de colaboração econômica intensa com a URSS.
O preço da exportação cubana era indexado ao preço da importação de produtos soviéticos, evitando a deterioração dos termos de troca. Essa etapa perdurou até 1986, quando Mikhail Gorbatchov assumiu o governo soviético e eliminou esse indexador de preços, levando à uma perda de 30% nas relações de troca até 1990.
Cuba pressentiu os efeitos da perestroika, com a adoção de mecanismos de mercado, em levar ao fim da URSS em dezembro de 1991: seu PIB caiu 35% entre 1989 e 1993. Nesse Período Especial, entrou em etapa de emergência, cuja meta fundamental era sobreviver e redesenhar a economia, pois houve até episódios de avitaminose na população por falta de comida, além de uma série de epidemias.
Diminuiu o crescimento da população (atualmente estimada em 11 milhões pessoas), a taxa de natalidade caiu e a taxa de mortalidade aumentou. Levou quinze anos para recuperar o PIB de 1989, concluindo esse Período Especial só em 2004.
Sentiu a imediata necessidade de desenvolvimento de outros setores geradores de divisas estrangeiras. Abriu-se, então, aos investimentos externos no turismo, apesar do temor do seu passado com prostituição, drogas, doenças trazidas por estrangeiros etc.
Passou a manter boas relações comerciais com o governo da Venezuela, trocando petróleo a preço de mercado por cooperações nas áreas de saúde, assistência social, educação etc. Ele pagava em dólares por essas cooperações.
Devido aos recursos, entre 2000 e 2009, período chamado de Batalha de Ideias, priorizou a retomada dos níveis de educação, saúde e alimentação da população. Com a GCF-2008, percebeu sua dependência danosa de divisas estrangeiras, devido a não ter recursos para pagar seu endividamento externo.
Em 2009, elaborou uma nova estratégia, colocando como prioridade a necessidade de equilíbrio financeiro do balanço de pagamentos com a sustentabilidade da dívida externa, atraindo investimento estrangeiro e fazendo uma reforma fiscal. Essa Atualização do Modelo foi aprovada em 2011, mas só cumpriu 1/5 da proposta de taxa de investimento de 25% e taxa de crescimento de 5%.
Houve restabelecimento da relação diplomática com os Estados Unidos, em 2014, com o governo de Barack Obama, apesar do bloqueio não ter promovido a “mudança de regime para um governo democrático”. Algumas medidas dele foram removidas gradualmente até quando, em julho de 2017, Trump acrescentou uma série de 241 medidas adicionais ao bloqueio, fechando as redes financeiras ao classificar Cuba como “terrorista”. Provocou um forte efeito recessivo.
O bloqueio e a pandemia reduziram o PIB em quase 11% em 2020. O processo de ajuste exigiu a mudança do regime de dualidade monetária, implementado desde 1993, quando uma parte da economia funcionava com peso cubano e outra com peso conversível em divisas, ou seja, dólar. O plano inicial era manter essa dualidade durante cinco anos. Apesar da dificuldade de “manejar uma economia” com uma parte em peso e outra em dólar, vinte anos depois ainda não sabia como fazer a unificação sem perdas para os trabalhadores do setor estatal. O custo da desvalorização cambial do peso faria dispararem os preços na moeda nacional.
Em 1º. de janeiro de 2021, implementou uma mudança completa no sistema monetário. Com a unificação, a cotação de um para um saltou para 24 pesos por um dólar. Ajustou o salário-mínimo ao novo preço da cesta básica (1.528 pesos), mas em agosto de 2021 ela já custava 3.250 pesos! Oficialmente, a inflação naquele ano foi de 77,3%, mas há estimativa da inflação real ter atingido 152%.
Quando o financiamento externo desapareceu, houve um choque inflacionário pela queda da oferta. Pior, agravou-se pela inflação importada do resto do mundo.
Para aumento da obtenção de divisas, houve a abertura do mercado cambial. Primeiro, abriu-se a compra estatal da moeda estrangeira, depois, em meados de 2022, permitiu-se a venda de divisas ao público, isto é, a Pessoas Físicas, excluídos os trabalhadores autônomos e as pequenas e médias empresas já dolarizadas.
Por as Pessoas Jurídicas não poderem comprar dólares, a taxa de câmbio informal disparou de 130 pesos para 200 pesos por dólar até outubro de 2022. Não se conseguiu controlar o mercado informal ou paralelo de dólares.
José Luis Rodriguez lista o necessário ser feito. Como Cuba precisa de aportes de capital estrangeiro, é preciso pagar as dívidas passadas em condições renegociadas. Necessita equilibrar o mercado interno, porque o coeficiente de Gini era 0,25 em 1992 e hoje está superior a 0,45, desigualdade próxima da norte-americana. Tem de priorizar o investimento na produção de alimentos, senão importá-los, porque é politicamente insustentável um nível de consumo tão baixo. Tem o desafio de ultrapassar os cortes de fornecimento de energia elétrica, prejudiciais não só às pessoas, como também às fábricas.
Não é possível seguir com 35% dos investimentos no turismo (principalmente hotéis), enquanto a agricultura está com 4% dos investimentos. É urgente produzir alimentos, inclusive para os turistas!
A combinação de escassez e encarecimento recorde dos bens e serviços tem tornado o cotidiano insuportável com perdas de horas em filas para comprar o pouco permitido por habitante. Cuba chegou à conclusão de uma coisa é o objetivo desejado e outra coisa é o possível. Recomendo a leitura deste oportuno livro a respeito do choque entre o sonho da abundância socialista e a realidade da escassez de uma economia bloqueada justamente por causa daquele sonho…
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].