Entrevista | Noam Chomsky: O significado da tentativa de golpe no Brasil

Entrevista | Noam Chomsky: O significado da tentativa de golpe no Brasil

“A Insurreição da extrema direita no Brasil teve fortes ecos do 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos. Ambos os casos revelam como as democracias representativas se tornaram frágeis – e talvez não tenhamos visto o último de tais eventos”, aponta Noam Chomsky, em entrevista ao Truthout, com tradução exclusiva do Fórum-21.

Entrevista de Noam Chomsky concedida ao jornalista C.J. Polychroniou (Truthout)

C.J. PolychroniouNoam, em 8 de janeiro, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram edifícios do Estado brasileiro porque não aceitavam a derrota de seu líder fascista. A insurreição levantou muitas questões dentro do país, assim como no exterior, sobre o papel da polícia brasileira, o fracasso dos serviços de inteligência em alertar Lula sobre o que iria acontecer e quem orquestrou os tumultos. Esta foi sem dúvida uma tentativa de golpe, assim como a insurreição de 6 de janeiro na capital americana, e deveria servir como mais uma lembrança de como as frágeis democracias liberais se tornaram na era neoliberal. Você pode comentar esses assuntos?

Noam Chomsky – Frágeis de fato. A tentativa de golpe de 6 de janeiro poderia ter sido bem sucedida se algumas pessoas tivessem tomado decisões diferentes e se Trump tivesse conseguido substituir o alto comando militar, como ele aparentemente estava tentando fazer em seus últimos dias no cargo. O 6 de janeiro (nos EUA) não foi planejado e o líder foi tão tomado pela raiva narcisista que ele não conseguiu direcionar o que estava acontecendo. O dia 8 de janeiro (no Brasil), claramente modelado em seu predecessor, foi bem-planejado e financiado. Inquéritos iniciais sugerem que poderia ter sido financiado por pequenas empresas e talvez por interesses agrícolas preocupados com a possibilidade de que seu livre arbítrio para destruir a Amazônia seria violado. Foi bem divulgado com antecedência. É impossível que os serviços de segurança não estivessem cientes dos planos. Em Brasília propriamente dita – território pró-Bolsonaro – eles praticamente cooperaram com os saqueadores. O exército assistiu ao golpe que estava sendo bem organizado e equipado em acampamentos muito próximos das instalações militares.

Com impressionante unidade, ausente nos EUA, os líderes politicos e as elites brasileiras condenaram a revolta bolsonarista e apoiaram as ações decisivas do recém-eleito presidente Lula para reprimi-la. Não há nada parecido com o movimento negacionista norte-americano em altos cargos. A revolta em si foi selvagem e indiscriminada, como amplamente retratado na extensa cobertura de TV. A intenção aparente era criar um caos suficiente para que os militares tivessem um pretexto para assumir e restabelecer a ditadura brutal que Bolsonaro tanto admirava.

Chomsky: “Segundo o bem informado analista político brasileiro Liszt Vieira, o Presidente Biden, embora não admirador de Lula, ‘enviou 4 diplomatas para defender o sistema eleitoral brasileiro e enviar uma mensagem aos militares: Nada de golpe’! (Fórum 21,16 de janeiro)”

A oposição internacional à insurreição também foi imediata e enérgica, sendo a mais importante, é claro, a de Washington. Segundo o bem informado analista político brasileiro Liszt Vieira, o Presidente Biden, embora não admirador de Lula, “enviou 4 diplomatas para defender o sistema eleitoral brasileiro e enviar uma mensagem aos militares: Nada de golpe”! (Fórum 21,16 de janeiro). Seu relatório é confirmado por John Lee Anderson [The New Yorker, 30 de janeiro] em um relato criterioso dos acontecimentos em curso.

Se a tentativa de golpe de 6 de janeiro tivesse sido bem sucedida, ou se sua cópia tivesse ocorrido durante uma administração republicana, o Brasil poderia ter voltado aos anos sombrios da ditadura militar.

Duvido que tenhamos visto o fim disso nos EUA ou em “nossa pequena região aqui perto” como a América Latina foi chamada pelo Ministro da Guerra Henry Stimson ao explicar porque todos os sistemas regionais deveriam ser desmantelados na nova era de hegemonia americana do pós-guerra, exceto o nosso próprio.

A fragilidade das democracias ao longo da era neoliberal é bastante evidente, começando pelas mais antigas e mais bem estabelecidas, Inglaterra e os EUA. Também não é uma surpresa. O neoliberalismo, pretextos e retórica à parte, é basicamente uma guerra de classes. Isso remonta às raízes do neoliberalismo e de seu primo próximo austeridade após a Primeira Guerra Mundial, um tema discutido num recente trabalho muito esclarecedor de Clara Mattei, [The Capital Order: how economists invented austerity and paved the way to fascism, 2022].

Assim, um princípio central é isolar a política econômica da influência e pressão públicas, seja colocando-a nas mãos de especialistas profissionais (como nas democracias liberais) ou pela violência (como ocorre sob o fascismo). As modalidades não são muito distintas. A organização dos trabalhadores deve ser eliminada porque interfere com a “economia sólida” que transfere riqueza para o muito rico setor empresarial. Os acordos de direitos do investidor mascarados de “livre comércio” deram uma importante contribuição. Uma série de políticas, legislativas e judiciais, deixaram os sistemas políticos ainda mais nas mãos do capital privado concentrado do que o usual, enquanto os salários estagnaram, os benefícios sociais diminuíram, e grande parte da força de trabalho se deslocou para a precariedade, vivendo de salário eventual com muito pouco de reserva.

Naturalmente, o respeito às instituições declinou – e com razão – e a democracia formal se desgastou, exatamente como desejado pela guerra de classe neoliberal.

Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

C.J. PolychroniouO Brasil, assim como os Estados Unidos, é uma nação profundamente dividida, praticamente à beira de uma guerra civil. Dito isto, acredito que Lula tem uma tarefa muito difícil à sua frente em termos de unir a nação e impulsionar uma nova agenda política baseada em valores progressistas. Devemos então nos surpreender se o seu governo ficar aquém de realizar reformas radicais, como muitos parecem esperar de um presidente de esquerda?

Não vejo nenhuma perspectiva de reformas radicais, nem no Brasil nem nos países vizinhos, onde recentemente houve uma nova “maré cor de rosa” de vitórias políticas de esquerda. A liderança política eleita não está comprometida com mudanças institucionais radicais e, se estivesse, enfrentaria a poderosa oposição de concentrações internas de poder econômico e forças culturais conservadoras, muitas vezes moldadas pelas igrejas evangélicas, juntamente com o poder internacional hostil – econômico, subversivo, militar – que não abandonou sua tradicional vocação de manter a ordem e a subordinação em “nossa pequena região aqui perto”.

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O que se pode esperar realisticamente no Brasil é levar adiante os projetos dos primeiros mandatos do Presidente Lula, que o Banco Mundial em um estudo sobre o Brasil chamou de sua “década de ouro”, com forte redução da pobreza e expansão significativa da inclusão em uma sociedade dramaticamente desigual. O Brasil de Lula também pode recuperar a posição internacional que alcançou durante seus primeiros mandatos, quando o Brasil tornou-se um dos países mais respeitados do mundo e uma voz efetiva para o Sul Global, tudo isso perdido durante a regressão bolsonarista.

Alguns analistas especializados ainda são mais otimistas. Jeffrey Sachs, após intensas discussões com o novo governo, concluiu que as perspectivas de crescimento e desenvolvimento são favoráveis e que o desenvolvimento e o papel internacional do Brasil poderiam “ajudar a reformar a arquitetura global – incluindo finanças e política externa – em benefício do desenvolvimento sustentável”.

De suma importância, não apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro, seria retomar e ampliar a proteção da Amazônia que foi um dos destaques dos primeiros mandatos de Lula, e que foi revertida pelas políticas devastadoras de Bolsonaro ao possibilitar a destruição pela mineração e o agronegócio que já estavam começando a transformar partes da floresta em savana, um processo irreversível que transformará um dos maiores sumidouros de carbono do mundo em um produtor de carbono. Com a dedicada ambientalista Marina Silva agora encarregada das questões ambientais, há alguma esperança de salvar este precioso recurso da destruição, com conseqüências globais assustadoras.

Há também alguma esperança de resgatar os habitantes indígenas das florestas. Uma das primeiras ações de Lula ao recuperar a Presidência foi visitar comunidades indígenas que haviam sido submetidas ao terror desencadeado pelo ataque de Bolsonaro contra a Amazônia e seus habitantes. As cenas de miséria, de crianças reduzidas a esqueletos virtuais, de doença e destruição, estão além das palavras para descrever, pelo menos as minhas. Talvez estes crimes hediondos cheguem ao fim.

Estas não seriam pequenas conquistas. Elas poderiam ajudar a estabelecer uma base mais firme para a mudança institucional mais radical que os brasileiros precisam e merecem – e não apenas o Brasil. Uma base já existe. O Brasil é o lar do maior movimento popular de esquerda do mundo, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que assume terras não utilizadas para formar comunidades produtivas, muitas vezes com cooperativas florescentes – certamente, não sem luta dura e amarga. O MST está estabelecendo vínculos com um grande movimento popular urbano de esquerda, o Movimento dos Trabalhadores Pela Moradia. Sua figura mais proeminente, Guilherme Boulos, está próxima a Lula, representando tendências que podem ser capazes de forjar um caminho além das melhorias materiais que são extremamente necessárias em si mesmas.

C.J. PolychroniouA Esquerda, não importa onde chegue ao poder, parece ficar aquém das expectativas. De fato, muitas vezes, ela acaba realizando a própria agenda política neoliberal à qual ela se opõe enquanto está na oposição. Será porque o neoliberalismo é um inimigo tão poderoso, ou porque a esquerda de hoje carece tanto de uma estratégia quanto de uma visão além do capitalismo?

Noam Chomsky – Há muito tempo existe uma cultura de esquerda viva na América Latina, com a qual o colosso do norte pode aprender. As barreiras internas e externas, que vão muito além de sua encarnação neoliberal, têm sido suficientes para restringir as esperanças e expectativas. A América Latina muitas vezes parecia estar prestes a se libertar dessas restrições. Talvez o faça agora. Isso poderia ajudar a impulsionar as ações em direção à multipolaridade que é visível hoje e que poderia, simplesmente, abrir o caminho para um mundo muito melhor. O poder entranhado, no entanto, não se derrete por si só.

C.J. PolychroniouFalamos de crise política, crise econômica, e uma crise ecológica e climática, entre outras, mas me parece que também deveríamos falar de uma crise humanitária. Com isso, quero dizer que crenças e valores há muito tidos como princípios sólidos, como os associados à Era do Iluminismo, estão perdendo terreno em muitas partes do mundo. Podemos estar de fato à beira da aurora de uma era anti-Iluminista, com o capitalismo e a irracionalidade em movimento frenético, fora do controle, e estando na raiz dessa, digamos, transição ontológica. Você tem alguma idéia a compartilhar sobre este assunto? Estamos diante da possibilidade do surgimento de uma era anti-Iluminista?

Noam Chomsky – Devemos ter em mente que o Iluminismo não foi exatamente um mar de rosas para a maior parte do mundo. Ele contribuiu para desencadear o que Adam Smith chamou de “a injustiça selvagem dos europeus”, um ataque horrível e violento contra a maioria do mundo. As sociedades mais avançadas, Índia e China, foram devastadas pela selvageria européia, em seus últimos estágios pela mais impressionante escroqueria de narcotráfico do mundo, que devastou a Índia para cultivar o ópio que foi enfiado garganta abaixo da China por bárbaros liderados pela Inglaterra, com suas ramificações norte-americanas não muito atrás, e com a adesão de outras potências imperiais ao que a China chama de século da humilhação. Nas Américas e na África a destruição criminosa foi muito pior, em condições demasiado conhecidas para relatar.

Houve ideais elevados, com alcance limitado, embora significativo. E é verdade que eles têm sido alvos de ataques severos.

O capitalismo desenfreado é uma sentença de morte para a humanidade e isso não pode mais ser escondido com palavras suaves. A violência imperialista, o nacionalismo religioso e as patologias que a acompanham estão em franca expansão. O que está evoluindo diante de nossos olhos levanta, de forma cada vez mais evidente, a questão que deveria nos ter empolgado com uma fúria cega há 77 anos: Podem os seres humanos fechar a brecha entre sua capacidade tecnológica de destruir e sua capacidade moral de controlar este impulso?

Não é apenas uma pergunta, mas a pergunta final, na medida em que, se não receber uma resposta positiva e breve, ninguém se importará por muito tempo com nenhuma outra.

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