Revisão de teses da esquerda diante do pobre de direita

Revisão de teses da esquerda diante do pobre de direita

Desde as revoltas da chamada “Geração de 68”, o marxismo foi atingido pela “crise dos paradigmas”, com críticas à sua ênfase em categorias totalizantes como “capitalismo como modo de produção”. Intelectuais pós-modernos como Michel Foucault, questionaram “as metanarrativas marxistas”, argumentando elas obscurecerem as experiências e as lutas de grupos marginalizados, como mulheres, negros e povos colonizados. Hoje, são chamadas de lutas identitárias.

A ênfase se deslocou para o particular, o microhistórico e o cultural, em detrimento das categorias universais e dos processos macrohistóricos. O fim do Socialismo Realmente Existente (SOREX), substituído pelo Mercado Realmente Existente (MERDEX), com  a ascensão do neoliberalismo, a mudança na estrutura do capitalismo em direção à predominância do setor de serviços, devido à urbanização e à Economia do Conhecimento, também contribuíram para a crise do marxismo.

Críticos marxistas da virada pós-moderna dizem ela refletir a derrota da esquerda e a ascensão do neoliberalismo. Criticam a “inversão da dialética” do pós-modernismo ao dissociar a cultura e as ideias das estruturas socioeconômicas.

Atualmente, alertam para “o racismo cultural” nas sociedades europeias pós-modernas. Toda essa crítica pós-moderna, em defesa de lutas identitárias e ambientalistas dispersas, marginaliza a visão holística da sociedade, dificultando a construção de alternativas globais e de grandes coalizões populares.

Por exemplo, para Michel Foucault, a luta política deveria se concentrar na crítica e no ataque às instituições disciplinares, da punição, do poder disciplinar sobre o corpo e das cadeias como formas de aplicação da disciplina. Ele rejeitava a ideia de definir um modelo ideal de sociedade futura antes de desmantelar as relações de poder existentes, abandonando a busca por um outro mundo em favor de múltiplas batalhas contra os micropoderes existentes no mundo atual.

Contribuiu para a crítica às concepções totalizantes da história e a ênfase na fragmentação dos saberes e na descontinuidade estrutural. Hoje, a esquerda lúcida critica a ênfase unilateral nos micropoderes sem a articulação com os macropoderes e as estruturas de dominação global.

A obra de Nancy Fraser busca adaptar o marxismo às transformações do capitalismo, incorporando os insights do feminismo, da teoria cultural, do pós-colonialismo e da ecologia. Ela define o capitalismo como “uma ordem societal institucionalizada”, capaz de articular e hierarquizar diferentes esferas: economia, Estado, reprodução social, colonialismo e imperialismo.

Para ela, a lógica da economia capitalista tende a “canibalizar” as demais esferas. Ela propõe o conceito de “crises de fronteira” para designar as tensões geradas pela expansão da lógica mercantil sobre as esferas da política, da reprodução social e da ecologia. Entre Estado e Mercado o “terceiro incluído” é a Sociedade Civil, mas ela inclui outras “fronteiras”: Comunidades. Naquela, os indivíduos têm relações impessoais, nesta, relações identitárias.

Alguns pós-marxistas criticam Fraser por não analisar as hierarquias entre as esferas do capitalismo, impedindo-a de explicar a dinâmica histórica do sistema e o peso relativo de cada esfera nas suas transformações. Permanecem defendendo a centralidade dos conflitos econômicos, políticos e ideológicos entre classes sociais, na dinâmica histórica do capitalismo, sem negar a importância das lutas por emancipação e reconhecimento de grupos identitários.

Para eles, o neoliberalismo surge como uma reação à expansão da democracia, buscando limitar o poder do Estado e proteger os interesses do capital contra as demandas por justiça social. Citam Hayek, autor da Escola Austríaca ultraliberal, um dos principais teóricos do neoliberalismo, por criticar a democracia como fosse “a ditadura da maioria” e uma ameaça à liberdade individual, defendendo um Estado mínimo para proteger o mercado de interferências políticas.

Já Karl Polanyi argumentava: a tentativa de transformar trabalho, terra e dinheiro em mercadorias (“a utopia liberal”) gerava uma reação social ou contramovimento em defesa da proteção social e da democracia. No entanto, o neoliberalismo teria conseguido reverter esse contramovimento da sociedade, diante a autorregulação do mercado, impondo reformas capazes de erodirem os direitos sociais e fortalecerem o poder do capital.

Essa “economicização da vida social” leva à mercantilização e privatização de serviços públicos, à precarização do trabalho e à desvalorização de atividades não lucrativas, como a cultura e o meio ambiente. Uma crítica comum (desinformada e/ou preconceituosa) é o neoliberalismo promover a financeirização, estendendo a lógica do mercado financeiro de curto prazo para todas as esferas da vida social.

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Daí, a esquerda contemporânea atribui as crises recorrentes à financeirização desenfreada. A desindustrialização e a devastação ambiental também demonstrariam as consequências do modelo neoliberal. Defende a necessidade de alternativas ao neoliberalismo, baseadas no planejamento público, na reindustrialização, na proteção social e ambiental, e na promoção da justiça social.

O neoliberalismo, embora em crise, teria se adaptado à pandemia, encontrando novas formas de se manifestar e de reforçar sua lógica de competição e desigualdade. Um governo genocida por ser negacionista da Ciência, apesar de apresentar características autoritárias e populistas de direita, não rompeu com a lógica neoliberal, mas sim a aprofundou, implementando políticas em benefício do capital em detrimento da população. Há a necessidade de repensar o papel do Estado impositor do neoliberalismo e a relação entre mercado e sociedade.

No livro “O Pobre de Direita: A Vingança dos Bastardos”, recém-lançado, o sociólogo Jessé Souza (UFABC) defende ser impossível entender o apelo do neofascismo aos menos privilegiados sem levar em conta, de um lado, o racismo regional no país, com “a enorme identificação dos pobres brancos do Sul e de São Paulo com o ex-presidente de extrema-direita”. De outro lado, há a inação da esquerda “sem nem mais tentar disputar áreas periféricas com grande presença das igrejas evangélicas”.

Ele critica também o protagonismo dado pelos partidos de esquerda às pautas identitárias em contraponto à doutrina das igrejas evangélicas, com a solidariedade interna (“pertencimento”) para se enfrentar a injustiça social.

Ele disse em entrevista a O Globo (13/10/24): “passamos por um processo de idiotização das pessoas e de inação de quem deveria fazer um trabalho de base de qualidade. (…) O quadro, nas periferias de São Paulo, há anos, já era o de ‘tá tudo dominado’ pela Teologia da Prosperidade, neoliberal e reacionária”. A esquerda sequer tenta ir às periferias urbanas e rurais enfrentar o trabalho das igrejas evangélicas, marcado pelo anti-esquerdismo.

Análise mais ponderada parece ser a de John Burn-Murdoch, colunista do Financial Times (Valor, 14/10/24). Em ambos os lados do Atlântico, um dos padrões mais antigos em demografia eleitoral começou a se desintegrar. Houve queda de apoio ao Partido Trabalhista nas eleições gerais do Reino Unido deste ano por parte do eleitorado de origem muçulmana, enquanto os melhores resultados dos Conservadores ocorreram em áreas com grandes populações hindus.

No geral, o Partido Trabalhista conquistou menos da metade dos votos de não brancos pela primeira vez na história. Nos Estados Unidos, os republicanos tiveram o melhor desempenho entre eleitores não brancos em quatro décadas, desde 1960.

Mas os britânicos e americanos não brancos como um todo ainda tendem a ser de esquerda. Isto apesar dos resultados contrários estarem deixando de ser exceções. Demonstram: os eleitores de minorias étnicas não formam um bloco homogêneo.

Há ampla gama de atitudes e prioridades entre diferentes grupos minoritários na Grã-Bretanha. Em vários temas, estão mais próximas do espectro conservador em vez do progressista. Por exemplo, minorias étnicas, tais como os conservadores, dizem ser importante para elas o governo manter impostos baixos.

Ao contrário, um percentual muito maior de eleitores trabalhistas brancos com educação universitária defende o governo intervir em questões de justiça social. Uma porcentagem muito inferior dos eleitores de minorias concordam.

Esses padrões são consistentes com a ideia de a política pós-materialista ter se tornado comum entre aqueles já com uma posição confortável na sociedade, enquanto aqueles ainda em busca de ascensão, inclusive minorias étnicas, ainda se concentram em preocupações materiais. Os progressistas brancos americanos agora têm opiniões sobre imigração, racismo, patriotismo e meritocracia desalinhadas em relação ao eleitor médio negro ou hispânico mais pobre.

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