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Transição: e a Participação Popular?

Transição: e a Participação Popular?

Para os que estão lendo e ouvindo tudo que se começa a dizer sobre o que se espera do governo de Lula, eleito para nos livrar do descalabro e da tragédia previsível se Bolsonaro permanecesse na Presidência, foi um pouco surpreendente constatar que a Participação Popular não estava na lista de 31 temas a “debater…

Para os que estão lendo e ouvindo tudo que se começa a dizer sobre o que se espera do governo de Lula, eleito para nos livrar do descalabro e da tragédia previsível se Bolsonaro permanecesse na Presidência, foi um pouco surpreendente constatar que a Participação Popular não estava na lista de 31 temas a “debater e produzir subsídios para elaboração de relatório final de transição”. Ainda mais porque parecia a todos que a atenção a esta inovação da democracia brasileira, com instrumentos novos explicitados na Constituição de 88, seria uma das marcas diferenciais do novo governo.  Lula já o indicara, ao falar até da possibilidade de experimentarmos a elaboração participativa do orçamento federal, um difícil exercício a esse nível. E já dissera que cogitava fazer reviver o papel positivo que tinham tido, para a formulação das políticas públicas nos mandatos do PT – e para a formação política da sociedade – as Conferências Temáticas, com um processo participativo de aprofundamento e expansão crescentes, a partir da base da sociedade.

Como exemplo do que nos aconteceu no tenebroso mandato presidencial que está terminando em 2022, uma das áreas em que mais fez falta a participação da sociedade, associada ao governo nos organismos de controle social de sua ação, foi a da proteção ambiental. Por isso mesmo já estamos pagando um preço alto pela destruição da Amazonia e pelas ameaças impostas aos povos indígenas. E grandes danos se acumularão, muitos já sem retorno, se demorarmos para recuperar o que se construiu, nessa área, no período democrático iniciado após o regime militar de 1964.

Seguramente quem participará dos grupos da transição não deixará de lado a necessidade de reconstruir o grande número de conselhos, em cada um dos 31 temas definidos, que foram sendo desmontados pelo governo que termina. Nesse sentido a participação popular é um tema transversal a todas as áreas – como o são, aliás, vários dos temas elencados. Mas por isso mesmo é importante que ela em si mesma, enquanto conquista civilizatória das democracias mais avançadas, mereça uma atenção especial, como tema da equipe de transição. Para que, a partir de um levantamento dos escombros que restaram da ação daninha de Bolsonaro, possam ser definidos objetivos realistas de recuperação, que garantam essa transversalidade, e para que a participação popular se torne cada vez mais consistente e responsável.

Na verdade, a participação popular não é somente presença consentida da sociedade civil nos órgãos de governo, de cima para baixo. Como processo crescente ela é, de fato, algo que cabe à sociedade conquistar. Foi assim que aconteceu no Poder Legislativo, a partir da Constituinte. Nela, tudo começou com um desafio lançado pela sociedade civil: “Constituinte sem povo não cria nada de novo”, frase difundida junto às organizações e movimentos sociais e aos próprios candidatos a Constituinte. Pouco a pouco foram sendo criados em todo o país o que se convencionou chamar de “Plenários Pró-Participação Popular na Constituinte”, a partir do primeiro surgido em São Paulo logo que foi decidido instalar uma Assembleia Constituinte no Brasil. A primeira vitória quase imediatamente conquistada foi a da introdução, no seu Regimento interno, da possibilidade da sociedade apresentar as chamadas “Emendas Populares ao Projeto de Constituição”. O resultado, estimulado pelos Plenários, foi a apresentação de 122 Emendas, cobrindo as mais diversas áreas de reivindicação, subscritas – a partir de um mínimo de 30.000 assinaturas em cada uma – por 12 milhões de cidadãs e cidadãos. Esta mobilização social levou à presença, permanente e maciça, de organizações e movimentos sociais em Brasília ao longo de todo o trabalho da Constituinte. Sem dúvida foi esse memorável processo que fez Ulisses Guimarães chamar a Constituição de 88 de “Constituição cidadã”, ao apresentá-la ao Brasil.

E foi no bojo desse esforço da sociedade civil que se criou a “Iniciativa Popular de Lei”, a partir de duas das 122 Emendas, que eram quase uma proposta de extensão das Emendas Populares à vida do Congresso que se instalou em seguida. Instrumento de processo legislativo já existente em outros países de democracia mais avançada, ele abre a possibilidade do Parlamento discutir até propostas incômodas para a classe política, sem as limitações criadas pelo sistema partidário. E foi graças a isso que surgiu posteriormente, a partir da sociedade e não do próprio Congresso ou do Executivo, a Lei contra a compra de votos (“voto não tem preço, tem consequências”) e a chamada “Lei da Ficha Limpa”, exemplos mais conhecidos dessa porta que assim se abriu para a participação popular. Esta inovação mostrou-se também importante para a superação da carência de formação política na base de nossa sociedade, ao ampliar sua participação – como com as Conferências Temáticas – na discussão de temas políticos, necessária no demorado processo de coleta do elevado número de assinaturas exigido para propor as Leis. Esse número já era bem mais elevado do que os 30.0000 necessários para as Emendas Populares: a Constituição fixou um mínimo de 1% do eleitorado como subscritores das Iniciativas Populares de Lei. Isto significava, na primeira delas que foi aprovada, mais de um milhão de eleitores. Um aumento nas exigências que pode indicar que muitos Constituintes passaram a temê-las….

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A Lei contra a compra de votos foi aprovada pouco mais de dez anos após a promulgação da Constituição, mas seu projeto começou a ser elaborado em 1997. E foi apresentado somente em 1999 ao Congresso, com as subscrições exigidas, coletadas já com o apoio de organizações com grande capilaridade no país, como a CNBB, que tinha adotado no ano anterior, na sua Campanha da Fraternidade anual, o tema Fraternidade e Politica. O que ela visava era dar maior eficácia ao combate a um crime infelizmente quase usual no Brasil, até então dependurado num isolado artigo da Lei Eleitoral vigente. Para mérito do Congresso, a Lei 9840/99, com pequenas modificações no projeto a partir da discussão parlamentar, está entre as Leis até hoje mais rapidamente por ele aprovadas (em torno de sete semanas), e rapidamente promulgadas pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, para que vigorasse já nas eleições seguintes. E levou efetivamente à cassação, já nessas eleições, do registro de grande número de candidatos pouco aptos, eticamente, para a representação política. Até porque ela estimulou seu mais de um milhão de signatários, já organizados em Plenários e Comitês para a coleta de assinaturas, a fiscalizar sua aplicação – o que mostrou mais essa potencialidade da participação popular. Esperamos que agora sirva para punir exemplarmente – “nada aquém da Lei, nada além da Lei”, como dizem os bons juristas – as escandalosas compras de votos nas recentes eleições.

A segunda Iniciativa Popular (da Ficha Limpa), aprovada em 2010, outros dez anos depois, exigiu mais tempo para ser aprovada (em torno de sete meses…), porque enfrentou, entre outras resistências, a de muitos deputados e senadores que corriam o risco de não obterem o registro de suas candidaturas, quando buscassem sua reeleição. Mas foi também imediatamente promulgada por Lula, então Presidente. Tem sofrido contestações de diversos tipos, especialmente porque foi usada pelos que buscavam, há quatro anos, impedir o registro da candidatura de Lula e sua eleição. Usaram para isso até mesmo uma interpretação, ainda juridicamente pendente, da possibilidade de execução da pena de prisão já a partir de uma decisão em segunda instância, sem precisar esperar o trânsito em julgado. Infelizmente o que conseguiram provocou muito sofrimento para o povo brasileiro. Mas, apesar disso, é incontestável a eficácia da Lei da Ficha Limpa, nascida na sociedade, para elevar a qualidade ética de nossos representantes.  

No momento em que vivemos, a participação popular tem que continuar a ser reivindicada pela sociedade, mas pode ser promovida também de cima para baixo, ao contarmos com um governo a favor da Vida e não da Morte, como o que está no poder (mas ainda por quase 2 meses!), que foi capaz de cooptar parte significativa da sociedade como se fosse um rebanho a ser manipulado segundo seus interesses. Nessa perspectiva, é preciso que o governo Lula garanta a autonomia da sociedade civil no exercício da sua independência, ao lhe dar assento nos órgãos deliberativos da administração pública, ou ao chama-la para abrir novos caminhos na formulação de políticas através de conferencias e outros mecanismos a inventar, emergindo de baixo para cima. Será pena que não se faça uma boa reflexão sobre a participação popular neste momento de transição, e sobre o modo de obter que ela seja pelo menos acolhida sem medo, ou, o que seria ainda melhor, seja vista com bons olhos. Na verdade, é um desafio que vale a pena enfrentar.

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