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Comandantes da alma, donos do destino

Comandantes da alma, donos do destino

O documentário italiano Io Capitano se inscreve em uma trilogia de filmes recentes sobre as crianças e os adolescentes nascidos em países do continente africano que imigram em massa para a Europa em busca de melhores condições de vida social e econômica. O filme de Matteo Garrone se junta ao célebre Beasts of no Nation (2023) e a Adú (2020), premiados em festivais ao redor do mundo, com boas audiências nos cinemas e ainda hoje integrando catálogo de plataforma de streaming*.

Produções cinematográficas trazem a odisseia dos milhares de refugiados políticos e dos imigrantes que fogem da região até então conhecida como “o continente dos povos esquecidos do mundo”, registrou o jovem presidente de Burkina Faso, Ibrahim Taore, em recente cúpula África-Rússia. “Está acabando o tempo dos africanos/marionetes com cordas controladas pelo imperialismo; e novos relacionamentos surgem”, dizia Taore há um ano.

Antes, tivemos Adú, do cineasta Salvador Calvo, de Madri, um ex-voluntário da Comissão Espanhola de Ajuda aos Refugiados. Calvo ouviu depoimentos que o levaram a filmar as dramáticas histórias dos imigrantes e dos refugiados políticos vindos da África. E agora, depois de receber o Prêmio de Direção e outros 11 troféus no Festival de Veneza, e forte candidato ao Oscar como melhor filme estrangeiro, o longa de Garrone – autor dos brilhantes Dogman, Gomorra e de uma versão insólita de Pinóquio – aborda o martírio da jornada de dois adolescentes senegaleses de 16 anos, Seydou (ator Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall). Eles deixam as famílias em Dakar e vão rumo à Itália para tentar se profissionalizar na música pop e nos palcos do velho continente.

“O filme é o resultado de várias histórias de jovens que fizeram e fazem ainda hoje a travessia da África para a Europa”, comentou o diretor em entrevista. “Ao ouvir os seus testemunhos, ficou claro para mim que suas histórias são provavelmente as únicas narrativas épicas dos nossos tempos”.

Foi em um centro de acolhimento para imigrantes menores, na Catânia, que Garrone ouviu a surpreendente história do jovem africano de 16 anos que comandou um barco abarrotado de homens, mulheres e crianças durante a travessia do Mediterrâneo rumo à Sicília.O ator estreante senegalês Seydou Sarr foi contratado por ele para protagonista do filme e acabou ganhando o Leão de Veneza de Melhor Ator no ano passado. É um excelente intérprete, intuitivo, presente, e dono de excepcional controle técnico.

O diretor escolheu o elenco entre atores de Dakar bem jovens e que nunca tinham saído do país. Assim como a maioria da sua geração, eles sonham em viver em outro lugar, na mítica Europa. Outro jovem, Mamadou Kouassi Pli Adama, ele próprio também imigrante no passado, foi um dos colaboradores do roteiro de Garrone. Mamadou empreendeu a travessia em companhia de seu primo, ambos com 15 anos na época. Vive hoje em Caserta, cidade próxima de Nápoles.

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Amara Fofana, da Guiné, deixou seu país há nove anos em direção à Europa. Em Trípoli, foi obrigado a comandar um barco com 250 pessoas. Chegando ao solo italiano, gritou: Tenho 15 anos! Sou o capitão do navio! Foi detido, saiu da cadeia tempos depois e hoje vive e trabalha na Bélgica.

Em Io Capitano, Seydou é o capitão do navio. Aceita a proposta criminosa dos atravessadores de uma das dezenas de gangues que trabalham ganhando fortunas traficando africanos para as costas europeias. Como não podia pagar pela sua própria viagem, um valor que não conseguira reunir, levaria o barco velho, mal funcionando, até o seu destino. A viagem dos sonhos, das esperanças e das ambições de Seydou acaba se transformando em luta pela sobrevivência.

O que diferencia Io Capitano de Beasts of no Nation e de Adú, é que o filme se detém e se interessa com mais detalhes pela atmosfera da aldeia senegalesa, os ritos religiosos, as festas, a cultura e a vida precária da família de Seydou. Ele sairá de Dakar em companhia do primo, atravessará o deserto, no Niger, em seguida entrará no Mali e embarcará na Líbia em direção à Sicília. Sempre vestido com a camisa do time Barcelona.

Na tela de Garrone, os quadros são cheios, repletos de gente, de movimentos, cantorias e das extraordinárias e históricas cores africanas. Outro ponto que chama a atenção: o olhar crítico que o garoto Seydou tem em relação à própria mãe, uma matriarca conformada, e uma determinação férrea.

Com o recado final em uma imagem espetacular, a mensagem que Il Capitano pretende passar, talvez um passo à frente de Beasts of no Nation e de Adú, é a de que essas crianças e esses adolescentes africanos, parte da herança maldita que a descolonização europeia deixou no rastro da ocupação brutal dos países do continente, talvez estejam chegando agora à Europa como uma geração mais segura dos seus direitos e mais consciente da dívida a cobrar dos ex-colonizadores. Talvez mais segura como cidadãos e menos humilhada como mendicantes.

O grito de Seydou, no fim do filme, insinua isso. Faz lembrar os versos do poema Invictus, de Henley: “Eu sou o mestre do meu destino/ Eu sou o comandante da minha alma“. São eles que o ator Morgan Freeman declama, no filme Invictus, com a biografia de Nelson Mandela. Eu Sou o Capitão!

*No catálogo da Netflix

**O texto O Tráfico de Seres Humanos, de Celso Japiassu, neste Fórum 21, traz um panorama sombrio que perdura com o tráfico de seres humanos fugindo da pobreza da África  e buscando uma fantasiosa prosperidade na Europa. É mais uma prova da desumanidade da nossa espécie.

Assista ao trailer:

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