O amanhã que nunca chega
Tocante e pungente, o documentário Amanhã, de Marcos Pimentel, deixa o espectador comovido e conduz a inteligência para além do conhecimento cinematográfico protocolar e adiante da análise e do texto/resenha. Leva à lucidez e a uma reiterada, justa e amarga visão de Brasil. Sem discursos e com poucos diálogos, Pimentel apresenta silêncios e pausas como poderoso instrumento de arte utilizado no processo de reflexão política e social e, nessas suspensões e reticências, pontua a tristeza de um país que patina há décadas e parece não conseguir sair do lugar.
Amanhã se inicia com imagens filmadas pelo diretor, em 2002, registrando o encontro de crianças brincando juntas, soltando pipa, jogando bola em um terreno baldio e vindas de lados opostos, no bairro da região da Barragem Santa Lúcia, em Belo Horizonte.
A menina Julia e o irmão Cristian são moradores da favela do Morro do Papagaio. José Tomás, do condomínio vizinho, de classe média, em seguida às brincadeiras de rua, acompanha os pequenos companheiros na sua casa de favela para todos assistirem TV.
Vinte anos depois, em 2022, em plena pandemia, o diretor decidiu usar as imagens que fez lá atrás e procurou as três crianças, então adultas e amigos de um fim de semana no passado, para produzir um doc no qual mostra o que a vida destinou para elas em um país que, no intervalo de tempo de mais de duas décadas, foi ‘virado pelo avesso’ como muitos de nós constatamos. Desde então, as três crianças nunca mais se encontraram.
Os dois irmãos, Julia e Cristian, estão lá, em Amanhã, mas Tomás não. O rapaz de classe média recusou o convite e a proposta para participar do filme atual onde, a partir dessas três figuras como quê fugidias, Pimentel fala sobre “um tempo e um lugar que nos desfigura”, como escreveu o crítico Bruno Carmelo.
Marcos Pimentel é mineiro de Juiz de Fora, mora em Belo Horizonte e, antes de Amanhã, fez docs elogiados pela crítica e aclamados em vários festivais. A Parte do Mundo que me Pertence, Sopro, Arquitetura do Corpo e Fé e Fúria, este um dos mais conhecidos, aborda o universo de “traficantes evangélicos” e comenta como religião e poder caminham juntos nas periferias das nossas grandes cidades alimentando a crescente onda conservadora que vem tomando conta de algumas regiões.
Professor na Escuela Internacional de Cine e Televisión de Santo Antonio de los Bãnos, de Havana, Pimentel já participou de 52 festivais, recebeu cerca de 90 prêmios e, quando estudante, em Cuba, se dedicou à técnica da observação em filmes documentários que, com frequência, dispensam narração em off e/ou entrevistas analíticas, o que torna os temas, já por si mesmos contundentes, ainda mais absorventes – ou explosivos.
Em Amanhã, o diretor faz breves intervenções em off de caráter político. Silêncios e o passar do tempo sempre foram assuntos caros a Pimentel. Assim como o tema das “relações obscuras entre poder e religião, quando se procura justificar o injustificável”. Em diversos instantes, ele adota o clima cinematográfico de mestres do cinema soviético. Longos travellings, pausas, meditação, convite à reflexão mais profunda do espectador. E a trilha musical (aqui, o rap) como personagem significativo.
No caso de Amanhã, Cristian, por exemplo, dá o seu testemunho sobre a última década, desde que deixou a irmã e a mãe: “Fugi de casa, fui morar na rua, e muitas coisas que poderia ter feito não fiz”. Cristian participou de assaltos, foi parar na cadeia e condenado várias vezes.
Júlia, a primeira protagonista, a mais extrovertida, hoje trabalha como cabeleireira, é mãe de duas crianças e continua vivendo na mesma região da Barragem Santa Lúcia. Tem problemas financeiros. Júlia lembra da casa da sua mãe onde ela e o irmão nasceram, demolida apressadamente pela prefeitura e de onde foram forçados a sair para a construção, no local, de um conjunto do projeto Minha Casa Minha Vida. Hoje, paga tarifas públicas que pesam no seu apertado orçamento mensal.
Enfim: Amanhã, que estreou nos cinemas nesta quinta-feira (29), trata de um desses ‘pequenos grandes’ documentários realizados na atual onda vigorosa de filmes brasileiros realizados com esforço memorável e que pretendem rastrear a situação social e política do país. Esse, no caso, nos traz “memórias das pessoas e de seus baús interiores”, como assinala o autor. É imperdível.
*Imagem em destaque: Cena de ‘Amanhã’, de Marcos Pimentel (Divulgação/Descoloniza Filmes)
Jornalista.