Paloma quer o direito de existir e ser feliz
O filme, do aclamado diretor de Recife, Marcelo Gomes, chega na mesma semana em que o seu argumento também emerge nas telas em outra produção, o documentário Eu, Um Outro, de Silvia Godinho, apresentado em quatro salas de São Paulo. A narrativa da história de um grupo de homens que nasceram mulheres biológicas e cujos rumos…
Acaba de estrear nos cinemas mais um filme do aclamado diretor de Recife, Marcelo Gomes, uma das estrelas do grupo de realizadores do cinema pernambucano que há cerca de duas décadas encanta as nossas platéias, o público e os júris de diversos festivais mundo afora.
Agora, esse grande vencedor do recente Festival do Rio é protagonizado por uma emocionante Kika Sena, a primeira trans vencedora do Troféu Redentor de Melhor Atriz que também é poeta, performer e arte-educadora.
Paloma chega na mesma semana em que o seu argumento também emerge nas telas em outra produção, o documentário Eu, Um Outro, de Silvia Godinho, apresentado em quatro salas de São Paulo. A narrativa da história de um grupo de homens que nasceram mulheres biológicas e cujos rumos se cruzam.
Lucas, em busca do seu amor de menino; Raul, estudante de Filosofia e Thalles, um segurança que odeia o trabalho que faz e luta para registrar seu nome masculino. No elenco, fazendo o trio de atores, Luca Scarpelli, Raul Capistrano e Thalles Rocha.
“Espero que o filme consiga proporcionar uma experiência de alteridade e faça o público refletir sobre quão diferentes somos uns dos outros e, ao mesmo tempo como todos atravessamos experiências semelhantes as quais nos conectam enquanto seres humanos. Ou seja, como o exercício da empatia pode nos tornar pessoas melhores e com um olhar mais amoroso sobre o outro e o mundo”, observa Silvia Godinho lembrando que o Brasil é o país que mais mata a população LGBTQIA+ no mundo.
Em Paloma, a condição de transsexualidade vem na história real de uma mulher trans, uma agricultora que trabalha sol a sol no sertão de Pernambuco; história que Gomes leu, um dia, num jornal e em companhia de Armando Praça e Gustavo Campos transformou em roteiro cinematográfico.
A dupla de roteiristas reunida por Marcelo Gomes é a mesma de um lindo filme de sua autoria, de 2019, produzido naquele outro mundo de antes da pandemia: o documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar* em que ele aborda o afã dos moradores da cidadezinha de Toritama, município de 40 mil habitantes do agreste de Pernambuco e próxima da estrada entre Santa Cruz do Capibaribe e Caruaru, na produção frenética de jeans durante os 365 dias do ano e as ansiadas férias da população, nos feriados do carnaval.
Esse é um filme surpreendente que ”levanta o véu do mundo do trabalho no Brasil em pleno século 21”, como definiu, na época, o próprio diretor, entremostrando uma China incrustada no Brasil profundo. Mais provocador impossível, inclusive quando ele, atrevido, usa o concerto nº 5 de Bach para apaziguar o som ambiente do ruído frenético das máquinas que costuram os jeans.
Os filmes desse grupo pernambucano têm em comum o afeto, mesmo quando embutido ocasionalmente em brutalidade ou em rudeza, a empatia sincera pelos personagens e pelo ambiente em que eles vivem, respiram e sonham, e os tempos calmos, os silêncios contendo intenções.
Bons exemplos são Baile Perfumado, Amarelo Manga, Madame Satã, Cinema, aspirinas e urubus, Era uma vez eu, Verônica, O som ao Redor, Bacurau, Tatuagem, Boi Neon , Deserto feliz , Viajo porque preciso, volto porque te amo entre outras pérolas do cinema brasileiro.
No presente caso de Paloma, a afetuosidade volta a ser uma das marcas do cinema de Gomes. ”Paloma apenas quer o seu lugar no mundo”, anota o autor do filme em entrevista recente.
”Nasci homem mas sou mulher”, ela se afirma, em uma cena de conversa com a amiga.
Vivendo uma harmoniosa e tranquila vida com o companheiro e com uma filha pequena, adotada, Paloma sempre quis casar na igreja como manda a tradição e a cultura religiosa. Ela junta suas economias para pagar a sonhada festa, procura o pároco para falar do seu caro projeto, mas o padre da igreja local se recusa a celebrar o matrimônio pelo fato de Paloma ser trans.
O encontro e a conversa são um dos diálogos-chave do filme que é salpicado pelas grosserias e pequenas rejeições cotidianas de alguns da comunidade da pequena vila onde todos vivem e trabalham.
No segundo ato do relato, Paloma vai enfrentar o obscurantismo e a ignorância dos seus vizinhos que a vêem como uma ‘piada’.
O filme de Marcelo Gomes é uma reflexão assim como vários outros da sua obra. Um relance, um instantâneo, com tempos pausados embebidos da humanidade que Kika Sena/Paloma sabe tão bem transmitir com o olhar e com o sorriso.
Seu final se mantém em aberto como também diversos outros do cinema atual pernambucano. As estradas estão sempre ali, no sertão, abertas à vida, ao futuro e ao imprevisível, aguardando quem precise usá-las na sua luta mais simples e mais básica pelo direito de sobreviver e existir feliz.
Jornalista.