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Kowawa Kapukaya Apurinã: Para nós, indígenas, Bolsonaro é um “anhanguê”, um “demônio”

Kowawa Kapukaya Apurinã: Para nós, indígenas, Bolsonaro é um “anhanguê”, um “demônio”

A doutoranda em Antropologia pela Sorbonne vê em Lula uma esperança. “A luta não irá parar mas não teremos mais um governo que decreta nosso extermínio”

A ativista Kowawa Kapukaya Apurinã é professora, formada em Artes Visuais, passou por universidades brasileiras antes de desembarcar na prestigiadíssima Sorbonne, de Paris, onde é doutoranda em Antropologia Social (com a Universidade Federal Fluminense), aprofundando estudos sobre a luta Tupinambá. Em Paris, ela frequenta o mundo acadêmico para falar em colóquios sobre a luta dos mais de 305 povos indígenas do Brasil aos quais pertencem os Apurinã e os Tupinambá. Esses povos falam mais de 274 línguas, algumas ameaçadas de extinção.

Kowawa prefere ser apresentada como ativista que como militante. Por essa vocação de passionária – ela se define como « feiticeira indígena » e guarda a história ancestral no corpo e na alma – está numa lista para ser assassinada desde 2016, por ações de retomadas de terras das quais participou.

“O governo Bolsonaro fez um retorno à militarização e ao sistema integracionista dos povos indígenas que houve durante a ditadura militar. Oito mil indígenas são desaparecidos da ditadura militar. Hoje no Brasil, somos assassinados, somos ameaçados, somos presos”, denuncia.

Kowawa Kapukaya Apurinã nasceu no Seringau Porongaba, na localidade « Bom que dói », que desapareceu quando todos os habitantes foram expulsos. Quando aprendeu a falar português, aos 12 anos, só falava a língua do seu povo, que vive entre o Acre e o Amazonas.

Formada em Direito pela Universidade Católica de Pelotas, a ativista-guerreira já venceu uma leucemia em 2005 e dá a impressão de que medo é uma palavra que não existe em seu dicionário. Sua formação jurídica vai ser útil para enfrentar as lutas futuras na defesa das terras indígenas.

A entrevista com Kowawa foi gravada num frio dia de outono na Maison de la Poésie, no Marais, em Paris.

Leneide Duarte-Plon : O que a eleição do presidente Lula muda para os povos originários do Brasil ?

Kowawa Kapukaya Apurinã: Luiz Inácio Lula da Silva representa para nós a esperança e o reconhecimento dos povos indígenas, depois de 500 anos. Ele fez um pacto quando colocou um cocar na cabeça. Isso é muito significativo. Sempre fizemos parte do Estado Nacional, mas não éramos reconhecidos nessas esferas de poder. E quando o presidente nos sinaliza a criação de um Ministério dos Povos Indígenas possibilita um avanço para implementar as políticas públicas: Demarcação dos Territórios Indígenas (cumprindo a Constituição Federal), Segurança/Proteção nos Territórios Demarcados, Extinção da PL do Marco Temporal, expulsão dos garimpos e dos madeireiros e respostas às demandas que garantiriam nossa vida sem sangue. Não vejamos Lula como salvador, isso seria colonialismo, mas como aliado e coerente com as práticas sociais ambientais internacionais que podem dificultar o avanço dos grandes capitais na destruição das florestas que ainda estão de pé. Lula é uma esperança. Estávamos aguardando os filhos do Sol, que os espíritos antigos disseram que estariam prontos a nos ajudar, quando fizeram a viagem para a terra além-mar. E que estes espíritos voltariam quando a escuridão se aproximasse.

Penso que ele seja um deles. A luta não irá parar, mas não teremos mais um governo que decreta a nossa morte e extermínio.

Leneide Duarte-Plon: O que mudou para os indígenas brasileiros com o governo Bolsonaro?

Kowawa Kapukaya Apurinã: Ele assumiu em 2019. O que mudou foi o número de covas cavadas. Mudou a invasão dos nossos territórios, a militarização da Funai, a não-segurança dos povos indígenas com território demarcado. E as violências se intensificaram com a truculência da Polícia Federal. O governo Bolsonaro fez um retorno à militarização e ao sistema integracionista dos povos indígenas que houve durante a ditadura militar. Oito mil indígenas são desaparecidos da ditadura militar. Hoje no Brasil, somos assassinados, somos ameaçados, somos presos. A cena do Roberto Jefferson rindo com um policial federal não pode ser vista quando eles vão nos prender, nos intimar ou nos criminalizar. As lideranças indígenas no Brasil são criminalizadas, perseguidas pelo governo Bolsonaro. Elas ficam desempregadas pois não conseguem ter acesso a nenhum tipo de serviço mesmo tendo qualificação. O governo Bolsonaro é genocida. Pelas milhares de pessoas que morreram de Covid, enquanto ele debochava. Tenho muito orgulho de dizer que estudei na Universidade Federal de Pelotas onde meu reitor Pedro Hallal foi à CPI das vacinas mostrar os dados. Pedro Hallal é processado por um bolsonarista. Tentaram criminalizar também a nós, estudantes da universidade porque vivíamos fazendo protestos.

Leneide Duarte-Plon: As terras indígenas são frequentemente invadidas por madeireiros, por mineradoras e pelos que destroem a floresta para fazer pasto para gado. Desde quando este problema existe? Ele se agravou muito com o governo Bolsonaro ou vem de antes dele?

Kowawa Kapukaya Apurinã: Esta é uma pergunta complexa, mas vamos a exemplos. A terra dos Yanomami é uma terra demarcada. Davi Kopenawa conseguiu expulsar todos os garimpeiros lá de dentro. Quando você lê garimpeiros, leia grandes indústrias internacionais do Norte global que compram este ouro, inclusive francesas. Com o governo Bolsonaro isto se intensificou. Mas sempre tivemos problemas nos nossos territórios. A questão é que isto foi se agravando ao longo dos anos. Quando Bolsonaro diz que o que ele sabe fazer é matar, ele aplica este verbo matar também dentro da política indigenista dos órgãos responsáveis por proteger o nosso território. Nós indígenas precisamos de proteção para os nossos territórios porque nós não somos tutelados pelo Estado. O governo Bolsonaro facilitou a entrada de estrangeiros nos nossos territórios para o minério, mas também para a extração de madeira e as terras queimadas para o pasto. No ano passado foi detectado no WhatsApp uma convocação para “o dia do fogo”. Tem que queimar a Amazônia. Eu quero que acabem com toda a Amazônia porque assim a humanidade vai se acabar.

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Leneide Duarte-Plon: A emergência de lidanças indígenas relevantes como você, Ailton Krenak, Davi Kopenawa e outros que têm voz e peso na mídia internacional e brasileira é consequência direta dos governos Lula e Dilma Rousseff?

Kowawa Kapukaya Apurinã: É binária a resposta. Nem sim, nem não. A gente tem falado isso nos movimentos indígenas que vêm desde a Constituição Federal. A partir da Constituição de 1988, a gente consegue os direitos indígenas com o artigo 235 com a força de nossas lideranças tradicionais como Ailton Krenak. Quando isso acontece, a gente continua na efervescência das lutas. Eu venho bem antes de Dilma e Lula. Eu acessei ações afirmativas agora no doutorado, mas não nos meus mestrados. O que fez esse empoderamento de vozes foi quando os indígenas conseguem ingressar nas universidades. O número é hoje dez vezes maior. Eu tive o privilégio e um caminho de acesso às universidades sem precisar das ações afirmativas, mas elas foram um marco para os povos indígenas, apesar de Dilma e Lula nunca terem demarcado um território indígena do meu povo.

Leneide Duarte-Plon: O que são as ações afirmativas?

Kowawa Kapukaya Apurinã: São cotas que existem para negros, índios e para pessoas de baixa renda que vêm de escolas públicas.

Leneide Duarte-Plon: Qual o projeto do bolsonarismo-militarista para as populações indígenas do Brasil? Este projeto quer integração ou extinção? São duas faces de uma mesma moeda ?

Kowawa Kapukaya Apurinã : Você destrói um povo quando você tira seu habitat, sua cultura, sua religião e seu modo de ser. Através da implantação dos evangélicos dentro do nosso território, o que foi facilitado mais ainda pela Damares, que agora é senadora. Algumas mortes de Covid entre os índios foram causadas pelas fake news da Damares, que se espalharam dentro dos nossos territórios. O evangelhismo dentro dos nossos territórios é a ponta da lança. Depois, a ideia de que o indígena deixa de ser selvagem e passa a ser civilizado, a ideia do integracionismo. Depois vem a extinção total.

Leneide Duarte-Plon: O objetivo é a extinção?

Kowawa Kapukaya Apurinã: Você só acaba com um povo quando você tira seu espírito. É isso que Bolsonaro quer. Além de querer tirar nosso espírito ele quer tirar nosso território porque ele cobiça tudo o que nós temos. Para nós, Bolsonaro é um « anhanguê » que quer dizer « demônio ».

Leneide Duarte-Plon: O que Jair Bolsonaro representa hoje no Brasil?

Kowawa Kapukaya Apurinã: Acho que a gente tem que pensar que Bolsonaro vem de uma história antiga dos fascistas que fugiram da Europa e foram para o Brasil. Pode-se explicar muito a história do Brasil atual a partir desses imigrantes fascistas que fugiram da Europa e foram se instalar nas Américas. Se eles tivessem ficado aqui na Europa teriam sido extintos. Agora querem aplicar suas velhas práticas ancestrais. Assim como os povos indígenas têm ancestrais, os brancos fascistas também têm ancestrais. Ele é Bolsonaro, italiano, descende do fascismo italiano. Tinha um professor que nos disse : « O ovo da serpente foi chocado no Brasil e nasceu ». Se você olhar os estados que votam no bolsonarismo são os que têm a maior imigração europeia, italiana, alemã, polonesa. Esses descendentes de fascistas se multiplicaram no Brasil. Eu não posso culpar o povo. Mas posso apontar. Se eu pudesse, colocaria todos no paredão e mandaria extinguir porque foi isso que eles fizeram conosco, com meu povo. Temos que fazer este recorte histórico.

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