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Passado, presente e contradições na polarização

Passado, presente e contradições na polarização

 “Eu me lembrei do passado para discutir questões do presente: polarização, perdão, julgamentos que não foram feitos e o horror da ditadura”, declarou a cineasta carioca Lucia Murat quando apresentou o seu filme O Mensageiro (roteiro de sua autoria com Tunico Amâncio), meses atrás, nos festivais de cinema dos quais participou. Agora, ele está em cartaz em várias cidades do país. “É um filme muito contemporâneo, apesar de se passar em 69”, ressalta a diretora.

O Mensageiro é uma obra especial dentro do pacote de dezenas de produções de documentários nacionais realizados nos últimos anos, que estreiam nesse período de pós-pandemia e relembram alguns dos bastidores, a dor e o sofrimento vividos no Brasil durante os 21 anos de feroz ditadura civil-militar.

O filme está em exibição, como aponta Murat, “em cenário atual de disseminação do discurso de ódio”, em um país que não tem memória; e isto é um problema nosso. “Todas as nossas histórias dolorosas são jogadas para baixo do tapete, e a ditadura é uma delas.”

Tendo em vista a situação de país inconsequente, Lucia Murat promoveu, em junho e julho deste ano, vinte sessões gratuitas de O Mensageiro, especiais para estudantes de escolas públicas de ensino médio e universitário do estado do Rio de Janeiro, seguidas de debates sobre a memória da ditadura. Um importante e necessário exemplo a ser seguido pelos seus colegas de profissão e arte.

A trama se passa no ano de 1969 e é concentrada na relação de um jovem soldado vindo de Santa Catarina com a mãe de uma estudante carioca, presa política. Ele, em crise de consciência, é comovido com as sessões de tortura sofridas pela moça na prisão da fortaleza de Santa Cruz, em Niterói, conhecido local de torturas durante a ditadura de 64. A mãe, por sua vez, está desnorteada, sem saber se a filha ainda está viva ou onde se encontra. A estudante Vera é vivida pela atriz Valentina Herszage, e o soldado, pelo ator Shi Menegat, que decide levar mensagens clandestinas para a mãe dela, interpretada pela atriz Georgette Fadel.

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A excepcionalidade do filme é o fato de ele atravessar as contradições dos personagens: dos pais da estudante, de família tradicionalista de classe média, que vem a ser a origem da prisioneira; do pai que “não entende nada do que está acontecendo”, como acusa sua mulher, mãe da guerrilheira; da própria militância; do militarismo; e da cisão entre a Igreja Católica progressista com sua opção pelos pobres e de outros sacerdotes parceiros dos militares.

Uma das cenas mais contundentes é a do padre argentino sequestrado pelos militares, punido pelos sermões que faz criticando o regime e “devolvido”, como diz Lucia, na escadaria da igreja, nu, pintado de vermelho, ferido e mal conseguindo se movimentar. O episódio aconteceu de verdade com o bispo Dom Adriano Hipólito. “Pode ser que o público não saiba disso, mas são fatos, histórias reais, que coloquei no filme”, sublinha a diretora. “Dentro da história da ditadura, houve uma divisão na Igreja Católica no Brasil. Teve uma hierarquia alta da Igreja que, principalmente no início do regime, foi favorável à ditadura; mas tivemos também vários padres ligados à Teologia da Libertação que foram presos e torturados.”

Em entrevista ao jornalista Caio Coletti, do site Omelete, ela compara e contextualiza: “Nos últimos anos, vimos o crescimento da Igreja Evangélica colocada na posição de referendar o conservadorismo; até porque os fiéis votam na extrema-direita”, em uma alusão a líderes religiosos e políticos como Silas Malafaia, Marco Feliciano e Eduardo Cunha.

O Mensageiro é uma coprodução Brasil/Argentina e conclui com a seguinte informação: no país portenho, a justiça condenou mais de mil torturadores; o Brasil jamais puniu um ditador ou torturador.

Mas Lucia Murat é incansável. Faz filmes há 40 anos sobre a ditadura. Clássicos como Que Bom Te Ver Viva, Doces Poderes e Quase Dois Irmãos são de sua autoria. Ela cursou economia, militou em grupo estudantil e foi presa em 1971, durante o congresso de Ibiúna, da União Nacional dos Estudantes, a UNE, em São Paulo. Foi torturada pela sua ação política quando tinha 20 anos.

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