Quanto tempo o tempo tem?

Quanto tempo o tempo tem?

“O tempo perguntou pro tempo,
quanto tempo o tempo tem.
O tempo respondeu pro tempo,
que o tempo tem o tempo que o tempo tem”.
(Do folclore infantil)

A fórmula cinematográfica da história do apocalipse chegando de repente durante uma inocente reunião de amigos que festejam o aniversário de um deles em uma casa na beira de uma praia paradisíaca, não constitui novidade. Pelo menos em filme. Mas em A Ordem do Tempo a narrativa vem impregnada do charme e da introspecção do cinema da diretora Liliana Cavani. Com sua bagagem de 60 anos filmando autores célebres como Curzio Malaparte e Patrícia Highsmith, ela é um ícone do cinema italiano.

Autora dos emblemáticos O Porteiro da Noite, A Pele e O Retorno do Talentoso Ripley (este, retomando a saga dos filmes de WimWenders), Liliana continua em atividade aos 91 anos que foram comemorados no começo deste ano. Ela pertence à brilhante geração de cineastas italianos da década de 1970, companheira de Bernardo Bertolucci, Lina Wertmüller, Pier Paolo Pasolini, Marco Bellocchio.

O seu L’ordine del tempo foi filmado em uma praia do Lácio, onde se situa Roma, e reúne duas inteligências de peso no país. À Liliana, nascida

em família culta e intelectualizada de Bolonha e egressa de duas universidades – uma, bolonhesa, a outra, romana –, reuniu-se o físico especialista em mecânica quântica Carlo Rovelli, autor do best seller homônimo que inspirou o longa-metragem.

Rovelli é um cientista reconhecido internacionalmente por apresentar uma nova interpretação dos mistérios do tempo. É autor de livros traduzidos para mais de 40 idiomas, entre eles A Realidade Não é o que Parece, A Ordem do Tempo e o recém-lançado Buracos Brancos*.

Juntos, Liliana e Rovelli trabalharam na ideia de fazer o atual longa-metragem com a colaboração do roteirista Paolo Costella, outro admirador do cientista.

O filme acompanha um grupo de amigos e amigas, a maioria cientistas e professores universitários, que se encontram todos os anos para celebrar o aniversário de um deles em uma vila à beira da praia. Mas algo está diferente: eles descobrem pelas informações que seus celulares vão trazendo que o mundo deve acabar em apenas algumas horas. Ao que parece, um asteróide chamado Anaconda ruma em direção à Terra e pode ter para a humanidade o mesmo efeito exterminador de outro bólido que dizimou os dinossauros no passado.

Após a notícia aterrorizante, o tempo de vida que restaria ao grupo parece acelerar. Mas ao mesmo tempo, o tempo permanece imóvel e interminável.

Nesse momento de angústia e de contagem regressiva, constatações pragmáticas e racionais são elaboradas pelos personagens intelectualizados e eles são colocados em xeque diante de sua relação com o mundo e com os companheiros com os quais mantêm fortes laços afetivos.

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Para cada um dos personagens, a percepção do tempo carrega muitos aspectos das suas vidas e eles vão sendo passados em revista: a justiça, a fé, o nazismo, a busca da aventura. Relógios que caem no chão e se quebram, as confissões, a contagem regressiva, a psicanálise, os casais ‘normais’, a fidelidade, as traições, as bases da ciência, o amor… Até uma viagem para o Tibet, sonhada a vida inteira e jamais realizada.

Cada um percebe o tempo de modo particular. Uns acreditam que temos um tempo infinito; outros, que cada qual tem o seu tempo. A tarde vai caindo, as horas vão escorrendo, chega a noite e “o meteorito sobre nossas cabeças faz a gente falar”, diz um dos presentes.

Tudo se resume, diz alguém, ao lembrar que “os físicos entraram dentro do universo e o resumo é esse: eu estou agora escovando os meus dentes“.

Liliana Cavani conta que ao ler o livro de Carlo Rovelli sentiu necessidade de transformar a obra de física quântica em um longa-metragem de ficção com linguagem acessível a leigos. “Mergulhei profundamente no livro, em palavras e em frases emocionantes como esta: ‘Toda a nossa física, e a ciência em geral, tratam de como as coisas se desenvolvem conforme a ordem do tempo‘”. “Encontrei uma forma pessoal de expressar medo, nostalgia, espanto, incerteza, esperança; as emoções que essa história desperta”.

Uma das grandes damas do cinema e primeira cineasta homenageada ano passado com o Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza pelo conjunto da sua obra, Cavani comenta que já viu muita coisa na sua vida, “mas aquilo que está por vir será sempre o mais belo”.

A Ordem do Tempo talvez seja o fecho da luminosa carreira da cineasta que vive e mora em Roma e tem o hábito de repetir nas suas entrevistas: “A fraternidade se contrapõe ao drama que é viver; é o único elo que temos para não nos matarmos”. Uma das suas recomendações é esta: “Como estamos todos doentes é importante sairmos para ir ao cinema”.

Compreende-se Liliana Cavani usar Leonard Cohen cantando Dance Me to the End of Love como o belo fundo musical de L’ordine del tempo, em exibição nos cinemas.

* Traduzidos e publicados no Brasil pela Editora Objetiva, selo de não ficção da Companhia das Letras.

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