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Quem quer ser ‘especial’?

Quem quer ser ‘especial’?

‘Fome de sucesso’ é mais um filme atraente vindo do sudeste asiático, de um país anunciado como “uma economia vigorosa”, incluído no pacote de produções orientais compradas pela indústria exibidora de cinema no ocidente

O diálogo logo no início de Fome de Sucesso (Hunger) aponta o rumo tomado pelo filme quando a jovem Aoy, em busca de emprego, chega para ser entrevistada pelo célebre chef Paul, da cozinha mais badalada da Tailândia. “Por qual motivo você veio até aqui?” é a pergunta dele à moça, cozinheira do modesto restaurante da sua família em um bairro popular, e candidata a entrar na equipe do agressivo astro. “Eu quero ser especial“, ela responde.

A partir desse ponto o diretor tailandês Sitisiri Mongkolsiri materializou o roteiro de Kongdej Jaturanrasamee e juntos fizeram o filme sobre os famintos; não sobre os sedentos por comida, mas sobre os loucos por sucesso. Como o cineasta disse em entrevista, ele e o colega roteirista criaram um espelho das suas próprias experiências de vida em Bangcoc, um destacado destino do turismo gastronômico de luxo internacional e onde “há uma culinária diferente para cada classe social”.

“Alimentos para pobres e para ricos”, Sitisiri diz, “é um bom tema para ser explorado. Mas será que as pessoas pertencentes a esses dois mundos estão famintas pelas mesmas coisas”? E foi assim nasceu Hunger.

Trata-se de mais um filme atraente vindo do sudeste asiático, de um país anunciado como “uma economia vigorosa”, incluído no pacote de produções orientais compradas pela indústria exibidora de cinema no ocidente. A maioria delas, pontuadas por lutas marciais sem novidades e influenciadas pelo cinemão comercial norte-americano, vêm estourando audiências nas plataformas de streaming desse lado de cá do mundo.

Apesar de ser longo demais (2 horas e 20), montado com alguma imprecisão e salpicado de clichês, vale assistir Hunger pelo seu tratamento técnico (uma fotografia de alto contraste e brilhante às vezes; em outras, câmera lenta e dramática), ora pela boa e espetaculosa mis-en-scène ora pela interessante conjunção com o trabalho de mestres do cinema japonês e coreano que trabalham com o cotidiano familiar.

Nas suas sequências das festas e das orgias gastronômicas sacrificiais, expondo a pretensão, a insensibilidade e a perversidade dos ricos – políticos que enriqueceram fazendo política, militares de Bangcoc que se encontram há mais de uma década no poder, e estrelas e astros do show business – e procedendo na crítica direta à burguesia, o filme entrega uma ponta de influência felliniana e acompanha o italiano Paulo Sorrentino de A grande Beleza na forte crítica visual ao universo dos milionários.  Hunger não é um filme maçante como o que recebeu o Oscar do ano passado, o Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo.

A trajetória deAoy nos meandros do mundo da alta culinária da upper class é dura e convence. A atriz Chutimon Chuengcharoensukying trabalha com surpreendente sutileza e reforça a sensibilidade e inteligência do personagem, em especial na sua decisão final.

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Intérprete do chef Paul,o atorChaiyanam Nopachai é o outro protagonista que impressiona pela frieza, agressividade, arrogância e ressentimento. É um ‘especial‘. No balé das suas panelas e nas facas manejadas por esse chef a teatralidade da haute cuisine se confunde com o exibicionismo dos narcisistas famosos, outros ‘especiais‘. Os molhos vermelhos criados por ele, de tomate, são o símbolo do sangue derramado das aves silvestres mortas pelos ricos caçadores que se divertem em safaris luxuosos e vão parar no forno do chef especial‘para serem devoradas.

O contraste, que beira o óbvio, são os pequenos bares/restaurantes populares de Bangcoc de onde provém Aoy e das ruas repletas de vendedores ambulantes de comida barata; os deliciosos Phad Thai. O filme relembra o recente Triângulo da Tristeza e, mais atrás, o clássico Parasita.

Interessante, esse Hunger que sugere ter sido lançado justo no início de uma campanha eleitoral acirrada e terminada semana passada na qual o resultado apontou a forte rejeição aos militares que dominam política do país e a sua derrota para líderes civis.

E como curiosidade: entre os mais de trinta membros do atual governo, dois em cada três militares que dele participavam dispõem de patrimônio de cerca de um milhão de euros segundo sua própria declaração à Comissão Nacional Anticorrupção do país.

Tendo em vista o quadro geral retratado  no filme  e  o vivido na vida real,  o esforço ingênuo de Aoy para chegar a ser uma ‘especial‘ pode até ser compreensível. Mas manter-se no topo é outra história. Talvez seja preciso um estômago de ferro para comer sapos em molho de tomate. Ou de sangue.

*Fome de Sucesso está disponível na Netflix

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