“Diáspora Africana nas Américas” debate memória, restituição, reparação e reconstrução

“Diáspora Africana nas Américas” debate memória, restituição, reparação e reconstrução

POR TATIANA CARLOTTI

Está acontecendo desde quinta-feira (29) e vai até sábado (31) em Salvador, na Bahia, a conferência Diáspora Africana nas Américas, um evento preparatório para o 9º Congresso Pan-africano, que promete ser um marco na discussão pan-africanista global. Capitaneado pela União Africana e pelo governo do Togo, país localizado na África Ocidental, o evento será realizado na capital Lomé, entre 29 de outubro a 2 de novembro de 2024.

Da Diáspora Africana nas Américas, organizada pela União Africana, os governos do Togo e do Brasil, o governo da Bahia, com apoio da Universidade Federal da Bahia e do Instituto Brasil-África, sairá um documento, a Carta de Recomendações da Diáspora Africana, que será enviada ao Congresso. A escolha do Brasil se justifica: aqui se encontra a maior população afrodescendente fora do continente africano.

A escolha de Bahia e de Salvador também são significativas. “Um estado com 80% da população negra e maior população quilombola” e uma cidade, onde “os tambores soam nos terreiros”, afirma Ângela Guimarães, secretária estadual para Promoção da Igualdade Racial na Bahia, que trouxe o significado do pan-africanismo neste momento, enquanto uma “expressão concreta da nossa unidade enquanto povo, independente das fronteiras geográficas que nos separam” e “a compreensão de que compartilhamos uma história comum de resistências, de lutas e de conquistas” e “somos uma tentativa viável de desenvolvimento para o Sul Global”.

Em nome do governador Jerônimo Rodrigues, da Bahia, ela recebeu lideranças, pensadores e pensadoras, ativistas e representantes da diáspora africana de diversas partes do mundo. O evento, ocorrido na UFBA, contou com a participação do ministro das Relações Exteriores do Togo, Robert Dussey; dos ministros do governo Lula, Anielle Franco (Igualdade Racial), Margareth Menezes (Cultura) e Silvio Almeida (Direitos Humanos); do reitor da Universidade Federal da Bahia, Paulo Miguez e do presidente do Instituto Brasil-África, João Bosco Monte.

“Eles têm medo”

“Por que estamos aqui em Salvador, na Bahia? Por que o movimento pan-africanista se reúne hoje?”, questionou o ministro de Relações Exteriores do Togo, Robert Dussey, em um discurso eletrizante durante a mesa de abertura da conferência.

“É porque nós nos sentimos humilhados, desumanizados, desprezados. Para algumas pessoas, o negro, o afrobrasileiro, o afrodescendente devem ser os últimos da classe. E hoje, nós dizemos não”, afirmou.

Robert Dussey, ministro das Relações Exteriores do Togo. (Foto: reprodução X/ @robertdussey)

Lembrando que a “escrita da História foi falsificada” por aqueles que disseram que os africanos e afrodescendentes “não são ninguém” e que “jamais construiriam” alguma coisa, Dussey destacou que a África é sempre mostrada como “atrasada” e “política, econômica e mesmo culturalmente, apresentada como um continente de desespero”.

“Infelizmente, nós somos vítimas dessa apresentação negativa do negro, do africano, do continente africano (…) Algumas pessoas efetivamente acreditam que nós não somos ninguém”, que não existem prédios como este, construções ou aeroportos na África, “que vivemos em árvores como os animais selvagens”, “como as girafas e os leões”, ironizou. “É esta a mentalidade incutida na cabeça das pessoas pelos dominadores”.

“Os que pilharam precisam restituir o que roubaram”

Comentando os temas da conferência – a memória, a restituição, a reparação e a reconstrução –, o ministro ponderou que são questões que provocam o medo em algumas pessoas. E, com fina ironia, detalhou o porquê:

Alguns se perguntam, “mas, por que esses selvagens vêm falar de memória? Como falam em memória se eles nunca existiram e se fomos nós que demos a eles, humanidade? Por que esses selvagens vêm falar de restituição? Qual restituição? Se tudo nos pertence. Eles se surpreendem que falemos de memória”.

Plateia do evento Diáspora Africana nas Américas em Salvador. (Foto: reprodução X/@robertdussey).

“Nós sofremos a escravização, a deportação, o colonialismo e continuamos a sofrer o neocolonianismo, mas “não temos o direito de dizer. Por que não temos o direito de exigir a mesma humanidade? Por que para falar de memória nós devemos pedir a permissão de alguém?”, questionou.

“Para restituir um bem cultural, você precisa pedir a permissão daqueles que vieram te roubar. Nós pensamos que não devemos pedir permissão a quem quer que seja. Todos os que pilharam o continente africano tem de restituir o que roubaram”, defendeu.

“Ah, mas não há climatização para guardar essas obras”, eles dizem. Buscam “nos infantilizar” e afirmam que “não somos capazes de guardar os nossos próprios bens. Bens que eles roubaram e que nos pertencem. Eles roubam e quando vamos recuperar, dizem não. Ou se dizem sim, impõem condições. Isso não é aceitável”, apontou.

O ministro Dussey convidou todos para o 9º. Congresso Panafricano em novembro deste ano, destacando que será um evento de ação. “A nossa fragilidade é que falamos muito e agimos pouco”. O congresso “será um momento de ação para concretizarmos o que estamos falando”.

E fez um comentário que poderá vingar em ação concreta, ao observar a ausência de conexões aéreas diretas entre o nosso país e o continente africano. “Nós queremos um voo direto entre Brasil e África”.

Horas, depois, o ministro das Relações Exteriores do Togo publicava nas suas redes sociais:

O sentido de “humanidade”

Três ministros do governo Lula participaram da mesa de abertura: Anielle Franco (Igualdade Racial), Margareth Menezes (Cultura) e Silvio Almeida (Direitos Humanos).

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A secretária estadual Ângela Guimarães, o ministro do Togo Robert Dussey e os ministros brasileiros Silvio Almeida e Margareth Menezes, durante a Diáspora Africana nas Américas ocorrida na UFBA, nos dias 29 e 31 de agosto de 2024. Foto: Ruy Conde – Ascom/MDHC.

O ministro Silvio Almeida destacou a abertura de oportunidades possibilitada pelo encontro. “É a partir das memórias que nós passamos a disputar o sentido do que é a humanidade” e este é um evento “de ressignificação da nossa noção de humanidade”.

Ele apresentou o direito ao desenvolvimento como o grande tema dos Direitos Humanos hoje. “O que nos aproxima de África quando falamos em direitos humanos é o direito ao desenvolvimento”. “Eles não podem ser apenas uma pauta moral”, defendeu, é “preciso pensar nos problemas concretos, além das bases morais, para construir as bases materiais, concretas, reais”.

Em sua avaliação, a relação com a África é “essencial para a orientação das políticas de direitos humanos feitas no Brasil”. E o evento, um espaço para se discutir “progresso tecnológico, progresso econômico, as possibilidades de desenvolvimento e de como seremos inseridos e vamos amplificar as nossas vozes no cenário internacional”.

“O que estamos querendo construir é uma alternativa para a humanidade, não apenas para o Brasil ou para a África, a partir das nossas experiências de luta e de sobrevivência”, afirmou.

E arrematou: “Nós sabemos o que significa sobreviver nos nossos países que foram vítimas do colonialismo e que, portanto, têm o racismo em suas estruturas sociais. E se conseguimos sobreviver a tudo isso, e nossos ancestrais nos permitiram chegar até aqui, é porque podemos avançar muito mais”.

“Cultura é o nosso maior ativo”

A ministra Margareth Menezes (Cultura) também participou da mesa de abertura da Diáspora Africana, destacando que, desde seu primeiro mandato, o presidente Lula vem defendendo o Brasil como “um país parceiro e irmão da África”.

Ela fez uma defesa contundente da democracia, “o melhor sistema para negros e negras, povos originários, viverem, porque nos permite viver a oportunidade de ascendermos. É muita luta, são muitas batalhas, mas existe a possibilidade de materialização de um sonho melhor num ambiente democrático” e, sobretudo, “com um presidente que busca que a justiça social se concretize”.

Menezes afirmou o papel da Cultura “como um elemento estratégico na promoção de um crescimento econômico sustentável, no aprofundamento e fortalecimento das políticas de memória, restituição e reparação”. E destacou os esforços do governo brasileiro na “criação de espaços de diálogo, visando o fortalecimento da cooperação regional e global”.

“Neste contexto, ponderou, a Cultura atua como uma ponte de aproximação e ferramenta para o enfrentamento de desafios comuns em nossos países, como a discriminação, o racismo a igualdade e a miséria”, além da “afirmação da nossa riqueza”.

A Cultura, afirmou a ministra, é “o nosso maior ativo para a recuperação e reafirmação da dignidade dos nossos povos”. E citando a antropóloga Lélia González (1935-1994), ela destacou sobre a luta panafricana: “a nossa força cultural é a nossa melhor forma de resistência”.

Movimento negro é a vanguarda do Brasil

Outra estrela presente na abertura do evento foi a ministra Anielle Franco (Igualdade Racial) que destacou os valores do movimento negro e a força de sua consciência. “Quando tiram os nossos líderes e nos dizem que somos descartáveis, que não merecemos estar aqui, a gente se reinventa porque corre sangue nas nossas veias e nós sabemos o tamanho da missão que carregamos neste lugar”, apontou.

“Sabemos que vidas estão sendo ceifadas e que oportunidades estão sendo negadas, daí a importância da recriação do Ministério da Igualdade Racial” e de “sabermos de onde viemos para continuarmos e entendermos onde queremos chegar (…) O movimento negro é a vanguarda deste país. Sem ele, a gente não consegue nem enxergar para frente e nem entender o que passou”, afirmou.

Anielle falou sobre a importância do encontro acontecer em Salvador, “uma das cidades mais negras do Brasil” e destacou que o evento “busca fortalecer as raízes africanas pelo mundo afora e estabelecer um amplo diálogo entre representantes do estado e da sociedade civil dos países da União Africana e das Américas”.

Trata-se de “um encontro para nos enxergarmos como irmãos e irmãs. O exercício de recordar e conhecer o passado é um elemento da luta pela Justiça”, concluiu.

Em tempo:

A Conferência vai até o próximo sábado (31) e sua programação gira em torno de quatro eixos temáticos: memória, pan-africanismo, restituição, além de reparação e reconstrução, reunindo 50 representantes do Brasil e da África para debater o tema, entre especialistas, pesquisadores, personalidades culturais e representantes de movimentos sociais, além de setores público e privado, informa o Ministério dos Direitos Humanos.

Foto de capa: A secretária estadual Ângela Guimarães, o ministro do Togo Robert Dussey e os ministros brasileiros Silvio Almeida e Margareth Menezes, durante a Diáspora Africana nas Américas ocorrida na UFBA, nos dias 29 e 31 de agosto de 2024. Foto: Ruy Conde – Ascom/MDHC.

Confira a íntegra da mesa de abertura:

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