Injeção fatal: Olavo Hansen (14/12/1937 – 9/5/1970), “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.
Nesta data, em 1970, a ditadura assassinou o operário Olavo Hansen, do Partido Operário Revolucionário (Trotskista), Port, que tinha sido preso no dia 1º de Maio daquele ano. Mais um crime bárbaro até hoje impune.
No dia 1º de maio de 1970, por volta do meio-dia, um grupo de 17 pessoas, militantes do Port, foi preso no Estádio Vila Maria Zélia, na Vila Maria.
Quero contar o que sei e o que vi acontecer com Olavo Hansen, operário químico e dirigente do Port, nas dependências policiais por onde passamos depois, na prisão.
Treze sindicatos organizaram uma festa em que seus filiados podiam levar os filhos, a família, em uma tímida tentativa de reorganizar os trabalhadores e fazer ressurgir o movimento sindical de oposição. Por isso, estávamos lá e, por isso também, lá havia polícia de todo o tipo.
Olavo, experiente e atento que era, percebeu logo que estava se formando um cerco à nossa volta, e imediatamente começou a nos orientar para que pudéssemos deixar o local em segurança e sem causar suspeitas.
Entre crianças que brincavam com corrida de saco, de colher com ovo, de cabracega etc., discursos, sanduíches e hinos, fomos disfarçadamente tentando chegar até o fundo, mas quando lá chegamos havia uma verdadeira cerca de policiais.
Voltamos novamente para o centro da festa e Olavo, mais uma vez, orientou para que nos esgueirássemos com cuidado pelo portão central, e, por incrível que pareça, conseguimos sair do estádio e ainda deu para ver alguns companheiros serem presos no ponto de ônibus. Por causa destas prisões, que chamavam a
atenção dos motoristas, os carros passavam vagarosamente e pudemos então pegar um ônibus fora do ponto.
Quando íamos respirar aliviados, nos demos conta de que uma moça não conseguira pegar o ônibus. Não podíamos deixá-la sozinha, pois ela era irmã de um dirigente do Nordeste (ou cunhada, não me lembro) muito procurado, que estava clandestino em São Paulo e lá estava passando por graves problemas emocionais. Descemos correndo do ônibus, pegamos a moça e tomamos um táxi, aquele fusca de quatro portas, o balança caixão.
Éramos quatro pessoas: meu marido, a moça, Olavo e eu.
Nem tivemos tempo de respirar porque, na contramão, vinha uma perua C-14, que brecou 1 milímetro à frente do nosso táxi, e dela desceram policiais com revólver e metralhadora e nos tiraram do carro com violência e estardalhaço. Na C-14 já estavam os companheiros que a gente havia visto serem presos no ponto de ônibus.
Dali, fomos primeiramente levados para o batalhão Tobias Aguiar, em frente ao antigo Presídio Tiradentes.
Quando a C-14 entrou no pátio, vários policiais cercaram a viatura perguntando se era a gente de Registro (o Capitão Lamarca estava naquela região com seu grupo e a repressão o caçava como a um bicho), dissemos que não, e eles ficaram muito decepcionados, e então começamos a ouvir: são feios, é uma fria, isto é, não éramos uma prisão importante, mal comparando, éramos um bando de pés-de-chinelo.
Depois nos colocaram de pé em uma sala e perguntaram quem do grupo já tinha passagem pela polícia. Olavo, penso eu, tentando chamar a atenção sobre ele, para de alguma forma nos proteger, disse que ele tinha. Em seguida, separaram
as mulheres dos homens. Ficamos sozinhas numa sala durante algum tempo, depois nos juntaram novamente e ficamos sabendo que os homens tinham sido obrigados a tirar a roupa para serem revistados.
De novo, entramos na C-14 e fomos transferidos para o QG da Polícia Militar, que ficava atrás do presídio Tiradentes. Lá, começamos a ser interrogados muito duramente, já com bastante ameaças, intimidações e muita brutalidade. Perdi um pouco a noção do tempo em que estivemos lá, mas entardecia quando novamente nos colocaram na C-14 para sermos levados a outra dependência policial.
Tremi de susto e de medo quando percebi que estávamos na famigerada Oban. Eu tinha 22 anos, tinha um irmão preso no presídio Tiradentes e estava ali, com meu marido, o Hélio, e mais 15 jovens. Acho que o mais velho era mesmo Olavo, que
tinha apenas 30 anos. Todos estávamos visivelmente assustados e temerosos.
Aos poucos, a gente foi se acalmando e me lembro sempre de Olavo tentando dar uma palavra de ânimo e conforto, porque aqueles gritos, aqueles gemidos, todo aquele horror destruíam a nossa vontade de ser fortes, e ele sabia muito bem disso.
Ficamos todos em um pátio, os homens em um banco, as mulheres em outro. Cada um de nós que subia para ser interrogado deixava os outros com o coração na mão.
Depois que todos foram interrogados, nos puseram em um pequeno ônibus e fomos finalmente levados para o Dops, onde permaneceríamos até sermos liberados.
Olavo, que já havia apanhado, continuou a ser torturado para que revelasse o local onde ficava a gráfica do Port, coisa que ele não fazia, portanto dobravam as maldades e o sofrimento de Olavo aumentava dia a dia.
Na madrugada em que chegamos ao Dops, tive uma queda muito grande de pressão e sofri um desmaio; chamaram, então, um médico que estava preso, dr. Waldemar Tebaldi, para cuidar de mim. Graças a este desmaio, conseguimos que o dr. Tebaldi pudesse dar sempre uma olhada em mim e ele aproveitava para falar sobre o que acontecia com os companheiros, principalmente com Olavo, já que seu estado de saúde piorava a olhos vistos. Mesmo assim, eles não paravam as sessões de pau-de-arara e de todo o tipo de tortura a que submetiam Olavo.
Dentro daquele lugar horroroso e naquela situação, a gente perde um pouco a noção de tempo, por isso não me lembro exatamente das datas, mas durante todo o tempo em que subia e descia dos interrogatórios, ou quando saía da cela para ser examinada pelo médico, eu podia ver, pela janelinha da cela, que Olavo estava cada vez mais doente.
Dr. Tebaldi me disse em um dos últimos encontros que, se Olavo não fosse levado rapidamente para um hospital, não resistiria muito mais e morreria, pois os seus rins já não estavam funcionando direito.
Uma tardinha, depois, quando desci do interrogatório, Olavo quis mais uma vez falar comigo. Ele estava sentado no meio da sua cela e os companheiros tiveram de carregá-lo pelos dois braços, para que ele pudesse chegar até a janelinha da porta.
Ele não conseguia mais ficar em pé sozinho. Com muita dificuldade, ele perguntou se eu tinha me saído bem, e se ninguém tinha feito nada contra mim e foi novamente carregado pelos companheiros até a cadeira. Ainda se sentou, e com muita dificuldade me fez um aceno com a mão. Foi a última vez que vi Olavo Hansen.
Nesta mesma noite, ele foi levado com os outros companheiros para o hospital militar. No dia 11 de maio, duas companheiras, meu marido e eu fomos libertados.
Um ou dois dias depois, ficamos sabendo que o corpo de Olavo tinha sido encontrado nas imediações do Museu do Ipiranga, e que uma farsa havia sido montada dizendo que ele havia praticado suicídio, se auto-envenenando com alguma coisa que ele tinha escondido com ele. Tudo isso para isentar a polícia de mais um assassinato cometido por ela mesma, nas suas próprias dependências, mas todos nós que estivemos no Dops, naquela época (e éramos muitos), sabemos que Olavo foi assassinado, que morreu por causa de todas as torturas a que foi submetido, porque ele não tinha nada com ele, muito menos veneno.
Como ele teria conseguido esconder alguma coisa se fomos submetidos à revista em cada dependência policial em que estivemos? Se em uma delas, inclusive, ele ficou inteiramente nu? E se, quando chegamos ao Dops, quando descemos para
a carceragem, tudo o que era nosso foi tirado, até mesmo os relógios, antes de sermos colocados nas celas? Onde teria escondido o tal veneno? Onde?
(Depoimento de Dulce Quereno de Carvalho Muniz, presa com Olavo Hansen).
Deferido em: 29/02/1996 por unanimidade.