O assassinato do Chile
O historiador Eric Hobsbawm escreveu uma análise nove dias após o golpe militar orquestrado pela direita em conluio com os EUA que matou o presidente socialista Salvador Allende. Com uma clareza cristalina escrita no calor do momento, ele detalha como o golpe se consumou e o governo da Unidade Popular (UP) sucumbiu.
POR ERIC HOBSBAWM
Tradução: Pedro Maia Soares
Texto escrito em setembro de 1973, publicado posteriormente no livro Viva la revolucion: a era das utopias na América Latina, Eric Hobsbawm. Republicação via Jacobin Brasil.
O assassinato do Chile foi esperado durante muito tempo, e a agonia dos últimos meses de Allende foi noticiada com frequência na imprensa, para todos os que vivem de pôr seus nomes na mídia para oferecer obituários públicos — exceto Washington, que tem (enquanto escrevo) mantido um silêncio eloquente. Até mesmo o Partido Trabalhista britânico, que se interessou tão pouco pela social-democracia chilena durante sua existência quanto normalmente se interessa pelos assuntos do Afeganistão, saudou sua morte com algumas lágrimas oficiais. Isso é temporariamente embaraçoso para os assassinos, cujo modelo foi uma contrarrevolução pouco divulgada que, aliás, produziu o maior massacre no período do pós-guerra — o indonésio de 1965.
Os jovens reacionários picharam “Jacarta” nas paredes de Santiago antes do golpe; e os militares chilenos dizem agora aos telespectadores que a Indonésia tem sido bem-sucedida desde que atraiu investimentos estrangeiros. Não haverá nenhum problema com o investimento estrangeiro. Ninguém nem vai saber quantos chilenos cairão vítimas da vingança de sua classe média, já que a maioria das vítimas será do tipo de chileno de quem ninguém nunca ouviu falar fora de sua fábrica, favela ou vila. Afinal, cem anos após o fim da Comuna de Paris, ainda não sabemos com precisão quantos foram massacrados após sua repressão.
O principal problema dos obituários é que poucos deles se interessaram pelo Chile. A tragédia desse pequeno e remoto país é que, como a Espanha na década de 1930, sua política era de importância global, exemplar e, infelizmente, desprotegida. Tornou-se um caso de teste. Os americanos sabiam perfeitamente que era um caso de teste de algo muito mais simples do que saber se o socialismo pode ocorrer sem insurreição violenta ou guerra civil. A questão para eles era, e continua a ser, a manutenção da supremacia imperial na América Latina. Ela começou a ser corroída nos últimos cinco anos por uma variedade de regimes políticos não só no Chile, mas também no Peru, Panamá, México e, mais recentemente, com o triunfo de Perón na Argentina. É provável que tenha sido Perón, em vez de Allende, que acabou por inclinar a balança no sentido de encorajar um golpe militar. Os Estados Unidos haviam confiado no lento estrangulamento econômico para acabar com o Chile — um país com uma dívida externa assombrosa, uma conta de importação em crescimento rápido e uma única commodity para vender (cobre), cujo preço desmoronou em 1970 e ficou baixo nos dois anos seguintes. Mas os americanos acharam que não podiam esperar mais. Em todo caso, a entrega contínua de armas às Forças Armadas chilenas mostrava que os Estados Unidos nunca descartaram a possibilidade de um golpe.
Para o resto do mundo, o Chile era um caso de teste mais teórico do futuro do socialismo. A direita e a extrema-esquerda estavam ambas preocupadas em provar, para sua própria satisfação, que um socialismo democrático não poderia funcionar. Seus obituários preocuparam-se principalmente em demonstrar como estavam certos. Para ambos, a culpa foi de Allende.
As fraquezas e os fracassos da Unidade Popular (UP) de Allende foram, de fato, sérios. Mas antes que as várias mitologias se fixem em moldes permanentes, é também necessário deixar três coisas claras.
A primeira, e mais óbvia, é que o governo de Allende não cometeu suicídio, mas foi assassinado. O que acabou com ele não foram os erros políticos e econômicos e a crise financeira, mas armas e bombas. E para aqueles comentaristas da direita que perguntam que outra escolha havia para os oponentes de Allende, se não um golpe, a resposta é simples: não dar um golpe.
Em segundo lugar, o governo de Allende não era um teste do socialismo democrático, mas, no máximo, da disposição da burguesia de respeitar a legalidade quando a legalidade e o constitucionalismo não funcionam mais a seu favor. A UP não tinha o tipo de poder constitucional que os governos trabalhistas britânicos eleitos tiveram e desperdiçaram. Tinha um presidente legalmente eleito por uma minoria, confrontado com um Judiciário hostil e um Parlamento controlado por seus inimigos, o que o impediu de aprovar qualquer lei, exceto com a permissão da oposição. Allende não operava com poder constitucional, mas apenas com aqueles recursos que a engenhosidade poderia extrair de sua posição de presidente legal (embora constitucionalmente paralisado). A não ser que ganhasse o controle nas eleições parlamentares deste ano, não havia maneira de avançar muito mais por meios constitucionais. E ele não ganhou o controle.
Mas o que dizer dos meios inconstitucionais? Aqui o terceiro ponto a ser observado é que a escolha da “revolução”, em vez da “legalidade”, não estava em questão. A UP não estava em condições, nem em termos militares, nem em termos políticos, de ganhar num teste de força física. Allende certamente odiava a guerra civil, como qualquer adulto com experiência histórica deve odiar, por mais convencido de que às vezes é necessária. Mas se Allende fez de tudo para evitá-la, foi porque acreditava que seu lado perderia uma guerra civil — e ele estava sem dúvida certo. Foi o outro lado que tentou provocar um teste de força, usando, aliás, os métodos tradicionais da classe trabalhadora, com efeito devastador. E as greves nacionais das empresas de transporte foram concebidas não apenas para paralisar a economia, mas para obrigar o governo a escolher entre coerção e abdicação e, portanto, fazer as Forças Armadas saírem de sua postura de neutralidade política. Os reacionários sabiam que se as Forças Armadas tivessem de escolher entre identificar-se com a esquerda ou com a direita, escolheriam a direita. As greves fracassaram na primavera passada, mas tiveram êxito nesse inverno.
Contra isso, Allende tinha apenas a ameaça de resistência. Com efeito, perguntou ao outro lado se estavam preparados para a terrível e, a longo prazo, incontrolável opção pela guerra civil. Provavelmente calculou mal a relutância da burguesia chilena em mergulhar na luta. Em geral, a esquerda subestimou o medo e o ódio da direita e a facilidade com que homens e mulheres bem-vestidos adquirem um gosto por sangue. Mas, como os acontecimentos mostraram, a resistência da esquerda estava organizada. Só o tempo mostrará se estava bem organizada o bastante. Talvez não. Mas, ao contrário da esquerda brasileira em 1964, a esquerda chilena está caindo lutando. E se o país está entrando agora num período de escuridão, ninguém pode ter dúvidas sobre quem apagou as luzes.
O que Allende poderia ter feito? É um momento difícil para realizar inquéritos sobre os possíveis erros de homens e mulheres corajosos, muitos dos quais estão ou logo estarão mortos. De qualquer modo, não desejamos nos unir aos que hoje estão posando sobre o túmulo de Allende com cartazes escritos com palavras convenientemente diferentes: “Eu lhe disse”. Nem sequer é muito fácil, neste momento, distinguir entre o que foi erro e o que não foi, entre coisas fora do controle dos chilenos (como o mercado do cobre); coisas que teoricamente poderiam ter sido de outra forma, mas que, na prática, não eram modificáveis (por exemplo, a paralisia das políticas públicas decorrente das rivalidades dentro da UP); e políticas que poderiam ter sido de fato diferentes. Não há dúvida de que a aposta econômica do regime de Allende — que sempre foi uma aposta contra as probabilidades — fracassou.
Eu mesmo não acho que havia muito o que Allende pudesse fazer depois (digamos) do início de 1972, exceto dar tempo ao tempo, assegurar a irreversibilidade das grandes mudanças já alcançadas e, com sorte, manter um sistema político que poderia dar à UP uma segunda chance mais tarde. Ele não podia nem se propôs a construir o socialismo durante um único mandato. Nos últimos meses, é quase certo que não havia quase nada que pudesse fazer. Por mais trágica que tenha sido, a notícia do golpe era esperada e prevista. Não surpreendeu ninguém.
ERIC HOBSBAWM foi um historiador marxista britânico reconhecido como um importante nome da intelectualidade do século XX. Ao longo de toda a sua vida, Hobsbawm foi membro do Partido Comunista Britânico.
FOTO DE CAPA:
Ditador chileno Augusto Pinochet e o então Secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, em 1976ː “nos Estados Unidos, (…) estamos solidários com o que você está a tentar fazer aqui. Queremos ajudar e não prejudicá-lo.” (Archivo General Histórico del Ministerio de Relaciones Exteriores/Wikimedia Commons)