BAHIA: Governo presente cuida da gente

Relatório sarcástico: Dênis Casemiro (9/12/1942 – 18/5/1971). “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.

Relatório sarcástico: Dênis Casemiro (9/12/1942 – 18/5/1971). “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.

Nas duas últimas semanas de cada mês, Fórum 21 continuará divulgando histórias de mortos e desaparecidos políticos ocorridas durante a ditadura de ’64 – que durou mais de duas décadas -, e continuam impunes até hoje. Nesta edição, mais três casos deste mês de maio: Dênis Casemiro (9/12/1942 – 18/5/1971); Péricles Gusmão Régis (1925 -…

Esteve na lista de desaparecidos até 13 de agosto de 1991, quando seus restos mortais foram identificados e trasladados para a sua cidade natal. A responsabilidade do Estado pela sua morte foi reconhecida no Anexo da Lei 9.140/95.

O Dossiê relata o caso da seguinte forma:

Nascido na cidade de Votuporanga, no estado de São Paulo, filho de Antônio Casemiro e Maria Casemiro, era trabalhador rural e desenvolvia trabalho político no sul do Pará, onde cuidava de um sítio próximo à Imperatriz, Maranhão.

Localizado e preso pelo delegado Sérgio Fleury, em fins de abril de 1971, foi trazido para o Dops/SP, onde foi torturado por quase um mês. Durante esse período, era sempre transportado pelos corredores daquele órgão policial com um capuz
cobrindo seu rosto, para impossibilitar sua identificação pelos demais presos.

Um desses presos era Waldemar Andreu, conterrâneo de Dênis, que chegou a conversar com ele por alguns minutos. Ele estava confiante de que a retirada do capuz era um sinal de que as torturas acabariam e que o perigo de ser assassinado havia passado.

Mas foi fuzilado pelo próprio delegado Fleury, em 18 de maio de 1971. Em relatório interno do Dops, é narrada com sarcasmo a morte de Dênis.

Segundo um dos torturadores, Dênis pediu para não ser morto, chegando a chorar. A seguir, descreve a tentativa de fuga e os tiros pelas costas desferidos pelo policial.

Este relatório, posteriormente, foi mostrado pelos policiais a alguns presos, como ameaça de que algo igual poderia acontecer com aqueles que não colaborassem.

A requisição de exame feita pela polícia para que o IML procedesse à necropsia, relata a tentativa de fuga seguida de morte. Segundo a polícia, Dênis teria tomado a arma de um policial e morreu ao travar um tiroteio com as forças da repressão.

Seu corpo, no entanto, teria sido encontrado no pátio do IML, que procedeu à sua necropsia. No laudo necroscópico, realizado pelos médicos-legistas Renato Cappelano e Paulo Augusto de Queiróz Rocha, apenas está descrita a trajetória
das balas que o mataram, sem nada falar sobre o estado do corpo. Preocupados em legitimar a versão policial, ignoraram as torturas sofridas pelo preso.

Dênis foi enterrado secretamente com os dados pessoais alterados para dificultar sua identificação. No livro de registro de sepultamentos do cemitério ele teria 40 anos e demais dados ignorados. Na realidade, tinha 28 anos e todos os seus dados constavam do Atestado de Óbito. Sua história passou a ser desvendada a partir da Campanha pela Anistia, em 1979, quando foram tomados relatos de ex-presos políticos.

Seus restos mortais encontravam-se na Vala de Perus, juntamente com outras 1.049 ossadas. Só foi possível a identificação de seus restos mortais porque a prefeita Luíza Erundina, a partir de 1990, determinou as investigações das ossadas encontradas.

No dia 13 de agosto de 1991, seus restos mortais, depois de identificados na Unicamp, foram enterrados em Votuporanga, como os de um herói, tendo sido velados na Câmara Municipal da Cidade, com missa de corpo presente na Igreja Matriz.


Terror em Conquista: Péricles Gusmão Régis (1925 – 12/5/1964). “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.

Péricles foi interrogado pelo chefe do IPM, capitão Antonio Bandoqui, e outros, das 7h do dia 11 de maio de 1964 até 2h do dia 12. Nesta hora foi levado à cela onde estavam outros presos políticos, no quartel da PM de Vitória da
Conquista, Bahia, para recolher suas coisas, escoltado por quatro ou cinco militares que o apressavam. Ficou em uma cela solitária. Às 15h teria sido encontrado morto, com os pulsos cortados. Para atestar o óbito, os militares foram buscar o dr. Hugo Castro Lima, médico oftalmologista que fora preso junto com Péricles e dezenas de outros cidadãos no dia 6 de maio, e que já estava solto.

Local da morte: “prisão – Quartel da PM” — horário e data: “15h do dia 12 de maio de 1964”. Causa da morte: “anemia aguda – hemorragia externa devido à secção dos vasos sanguíneos (suicídio)”.

Declarante: Hermann Gusmão Prates.

Péricles tinha 38 anos. Era casado com Maria Portela. Deixou quatro filhos, o mais velho com 9 anos e o quinto já estava com 7 meses no ventre de Maria.

Era vereador pelo Movimento Trabalhista e líder na Câmara do prefeito Pedral Sampaio.

Ônibus na praça

Os militares chegaram a Vitória da Conquista no dia 6 de maio e estacionaram o ônibus na praça Rio Branco, a principal da cidade.

Diversos cidadãos foram presos, entre eles o prefeito Pedral Sampaio, os vereadores Péricles Gusmão Régis e Anfilófio Pedral Sampaio, o médico Hugo de Castro Lima, os radialistas Gilson Moura e João Idelfonso, o vereador Raul Ferraz — mais tarde, prefeito e deputado federal —, os jornalistas Reginaldo Carvalho e Aníbal Viana, o poeta Camilo de Jesus Lima, os sindicalistas Alender Santos, Flávio Viana de Jesus, os estudantes Luiz e Paulo Demócrito, comerciantes, políticos, advogados, professores.

A presença de militares armados, de várias viaturas, dos inquisidores encabeçados pelo chefe do IPM, além da transferência dos presos para Salvador, tudo isso criou um clima de terror em Vitória da Conquista, inclusive por causa da prisão do prefeito e do seu grupo político.

A família de Péricles e vários dos seus companheiros não acreditam na versão do suicídio. Mas não surgiram indícios contrários a essa versão. De fato, o dr. Hugo Castro Lima constatou que o preso tinha os pulsos cortados e não há
informações de que ele tenha sido retirado da cela solitária, onde ficara a partir das 2h, e de onde fora transferido Gilson Moura.

Tanto Gilson como outros presos descrevem o momento em que Péricles foi encontrado e a correria que se estabeleceu no quartel-prisão. Gilson Moura recorda-se que Péricles estava deprimido quando foi para a cela, onde seria encontrado morto.
Raul Ferraz descreve o seu estado de espírito como transtornado ao chegar do longo interrogatório.

Ele veio escoltado por militares para recolher suas coisas, pressionado o tempo todo. Raul Ferraz disse que se não fosse o médico Hugo Castro Lima a atestar a causa da morte, não aceitaria a versão do suicídio. Hermann Gusmão, seu primo e declarante do óbito, informou que seu corpo apresentava hematomas e sinais de sevícias.

O relator João Grandino Rodas, cujo parecer foi acolhido por unanimidade (morte de causa não-natural em dependência, policial ou assemelhada), não viu indícios suficientes para duvidar da versão de suicídio. Susana Keniger Lisbôa
e Nilmário Miranda deixaram consignadas as suas dúvidas na reunião de 30 de janeiro de 1997. Deferido pela Comissão Especial em 30/01/1997.


A mentira do general: Merival Araújo (4/1/1949 – 14/5/1973). “Dos Filhos deste Solo”, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.

A morte do militante Merival Araújo recebeu a seguinte versão oficial, publicada na edição de 8 de maio de 1973 do Jornal do Brasil: Membro da ALN morre. O terrorista Merival Araújo — Virgílio, Augusto, Paulo — pertencente à Ação Libertadora Nacional, faleceu num encontro com as forças de segurança. Por anotações encontradas com ele, as autoridades localizaram um aparelho onde encontraram grande quantidade de armamento e munição, inclusive uma carabina calibre 12.

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Para as autoridades, tudo leva a crer que esta arma — encontrada suja de areia — foi utilizada no assassinato do delegado Otávio Moreira Júnior. Foram encontrados aí dois revólveres pertencentes a elementos da Polícia Militar da Guanabara, que há dois dias haviam sido assaltados por um grupo subversivo.

A versão omite quando, onde e como Merival foi morto. A necropsia do corpo foi feita no dia 14 de abril, 24 dias antes da nota à imprensa. Causa estranheza a frase “(…) tudo leva a crer que esta arma foi utilizada no assassinato do delegado
Otávio Moreira Júnior”. Vinte e quatro dias depois de encontrada, já teria sido possível determinar se aquela arma fora ou não utilizada naquela morte.

Em 1993, o general Adyr Fiúza de Castro concedeu entrevista a Maria Celina D’Araújo e Gláucio Ary Dillon Soares publicada no livro Os anos de chumbo — memória militar sobre a repressão, onde reconta a morte de Merival:

“(…) então montamos uma armadilha — vou encurtar a história. Colocamos um sargento e um cabo junto com o professor Jacques na casa dele, na Rua Campos Sales. Quatro ou cinco dias depois, Merival Araújo, que era um dos comandantes da ALN, entrou em contato com ele: ‘Você sai com a sacola com os revólveres, que eu o estou esperando no posto de gasolina’. Saiu o professor Jacques com a sacola e, atrás, o sargento e o cabo disfarçados. Quando o camarada se aproximou dele no posto de gasolina, o sargento e o cabo o pegaram. Mas Merival era realmente um homem valente, forte, muito disposto e estava armado. Então tirou o revólver, e o sargento segurou sua mão. Ele meteu uma coronhada na cabeça do sargento, rachando-a completamente, mas o cabo que era uns 2 metros de crioulo, um desses tipos ‘PE’ mesmo, reforçado, o pegou pela gravata e quebrou seu pescoço. Matou na hora. Mas ficou sem saber o que fazer, então pegou um táxi que passava e levou todo mundo
para o DOI. E o comandante do DOI me ligou para relatar o fato. Eu lhe disse:

‘Mande-o voltar para o mesmo lugar, porque não quero gente morta no DOI, não tenho como explicar ao Frota. Foi combate de rua! E foi combate mesmo, não é? Mande chamar o rabecão para levar o corpo. E o professor Jacques, dê um jeito nele…’”.

Pescoço sem lesões

A nova versão oficial também é falsa. O Laudo de Necropsia, apesar de confirmar a versão de combate de rua, dá como causa da morte “ferimento penetrante no tórax com transfixação dos pulmões, hemorragia interna e anemia aguda consecutiva”. Ao descrever a situação do pescoço, o laudo é taxativo:

“(…) o pescoço é simétrico e não mostra lesões”.

Além disso, o próprio laudo, feito por habituais assinantes de laudos falsos, Roberto Blanco dos Santos e Helder Paupério Machado, descreve parte das lesões no corpo de Merival nas fossas ilíacas, braço e joelho. As fotos encontradas no arquivo do Dops/RJ mostram que a crueldade aplicada a Merival foi mais vasta.

Desmentem a versão do general Adyr Fiúza de Castro de que a única violência teria sido a do cabo quebrar seu pescoço.

O professor Rubim Santos Leão de Aquino ouviu do professor Jacques, seu colega no curso Miguel Couto Baense, após ter sido solto, em julho de 1973, o que ocorrera.

Preso no dia 5 de abril de 1973, Jacques foi levado por agentes do DOI-Codi ao seu apartamento para aguardar próximos contatos. A mãe e a irmã de Jacques chegaram de Belo Horizonte e também ficaram detidas. Merival entrou em contato com Jacques por telefone. Este, sob ameaça de represálias contra ele, sua mãe e irmã, desceu com os agentes do DOI-Codi.
Merival, percebendo o perigo, tentou fugir, foi ferido e levado ao DOI-Codi, onde morreu sob tortura.

O Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964 revela que Merival foi preso no dia 7 de abril, em frente ao nº 462 da Rua das Laranjeiras, e levado ao DOI-Codi, onde foi torturado até a morte. O Laudo Necroscópico descreve algumas lesões:

“O abdome revela mancha violácea ao nível da fossa ilíaca esquerda e direita (…); o membro superior esquerdo apresenta inúmeras placas de escoriações de cor parda, avermelhada, na face posterior do cotovelo e dorso da mão (…); inúmeras placas de escoriações nas faces anteriores do joelho esquerdo”.

As fotos da perícia de local mostram que, nos braços e pernas, chegam a faltar pedaços, que há ferimentos no rosto e tórax não descritos no laudo.

O Atestado de Óbito de Merival Araújo o dá como morto no dia 14 de abril, às 16h, na Praça Tabatinga, em frente do poste 4.281, e como causa da morte “ferimento penetrante no tórax com transfixação dos pulmões, hemorragia interna e anemia aguda consecutiva”. Certifica o óbito Roberto Blanco dos Santos, sendo declarante o mesmo José Severino Teixeira de vários outros atestados.

O Laudo de Necropsia informa que o corpo deu entrada no IML às 12h10 do dia 14.

A perícia de local nº 125/73 registra que chegou ao local onde Merival teria sido morto às 7h40 do dia 14 de abril de 1973. O cabo Waldir (RG 04617) do 6º BPM, 3ª Cia, por meio do Registro nº 1.542, comunicou à 19ª Delegacia de Polícia que
o cadáver de um homem foi encontrado na Praça Tabatinga, com ferimento à bala, às 7h20 do dia 14 de abril de 1973.

A perícia de local relata que o cadáver de Merival Araújo tinha um “cordão à guisa de cinto”, quando o laudo do IML fala de “cinto preto e amarelo” e as fotos mostram que ele usava cinto.

Apesar de identificado, Merival foi enterrado como indigente em 24 de maio de 1973, 40 dias após sua morte, na cova 23.274, quadra 21 do Cemitério de Ricardo Albuquerque. Em 1978, seus restos mortais foram para o Ossário Geral, e dois anos depois para a vala clandestina.

Merival Araújo tinha 24 anos quando foi morto por agentes do DOI-Codi/RJ.

Nasceu em Mato Grosso, em Alto Paraguai. Morou em Minas Novas, Vale do Jequitinhonha, trabalhando como professor. No Rio de Janeiro, estudava e dava aulas à noite. A família guarda cartas onde fazia planos para trazer a irmã para estudar e morar no Rio de Janeiro.

O relator, Paulo Gonet Branco, em seu voto, diz:

Em 7 de maio de 1973 (na verdade, abril), segundo testemunhas de moradores de prédio no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, onde se encontrava, foi preso por agentes de segurança. Apareceu morto, uma semana depois, em praça pública. Laudo necroscópico descreveu escoriações em partes de seu corpo.

Foi enterrado como indigente em vala comum. Os autos fazem análise crítica, produzida pela Comissão Nacional dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, que desautoriza a versão oficial que noticiava a morte como tendo ocorrido em confronto com agentes de segurança. Há transcrição de testemunho de Rubim Santos Leão de Aquino confirmando que Merival fora preso.

O acervo fotográfico dos autos (leva) a acreditar na versão sustentada de morte por causas não-naturais, em seguida à detenção por agentes públicos.

O voto é pelo reconhecimento da morte como enquadrada no Art. 4º, 1,“B”, da Lei 9.140/95. A indenização respectiva deverá ser calculada no tempo oportuno.

A localização do corpo deverá aguardar o momento em que a Comissão passar a cuidar do tema.

A responsabilidade do Estado na morte de Merival Araújo foi aprovada por unanimidade.

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