Armadilha da poupança: preços baixos e baixa venda
Muitos economistas esnobam as identidades contábeis como fossem meras convenções e não fornecessem nenhuma indicação sobre como a economia realmente funciona. No entanto, elas adicionam ao conhecimento econômico o fundamental processo de criação da moeda bancária.
Essa moeda escritural é tanto um passivo quanto um ativo sem existência fora dos balanços dos bancos. Comprova a tese da endogeneidade da oferta da moeda, isto é, ela ser criada pelas forças do mercado e não só por determinação do Banco Central, como ocorre no caso de emissão de papel-moeda e sua colocação em circulação.
Autores pós-keynesianos demonstram a identidade contábil dos ativos e passivos dos bancos ser a chave para uma melhor compreensão da natureza e do papel do dinheiro e da intermediação bancária nas transações econômicas. Contrasta “o dinheiro do banco” com “o papel-moeda”, durante o padrão-ouro examinado na teoria econômica como fosse um mero símbolo da moeda-mercadoria escolhida pelas forças do mercado.
O escritural é gerado pela demanda por crédito e, portanto, não pode ser suprido independentemente dela. Em um sistema de crédito bancário se inverte a famosa Lei de Say, onde “a oferta cria a própria demanda”. De fato, a demanda por crédito determina sua oferta, caso o devedor atenda à avaliação de risco feita pelo banco.
A teoria do economista Jean-Baptiste Say, publicada em 1803, partiu do aparente truísmo: somos capazes de consumir apenas quando conseguirmos produzir algo de valor equivalente com o nosso trabalho. Derivou-se dela a suposição equivocada de não existirem as chamadas “crises de superprodução”, porque tudo produzido seria consumido, dado a demanda ser determinada pela renda criada pela oferta.
A oferta agregada criaria a demanda agregada. Uma relativa superprodução setorial em relação a outros setores imporia a estes uma relativa subprodução. Segundo a Lei de Say, não existiria o entesouramento, pois o dinheiro não gasto por um consumidor, para fazer poupança, seria repassado a outro(s) através de empréstimo(s) dos intermediários financeiros.
Say afirmava: “produtos se pagam com produtos”. O dinheiro teria uma função apenas momentânea em um mercado, para facilitar a troca, pois, logo após a venda de uma mercadoria ter sido concluída, criaria mercado para outra – e assim por diante.
Essa pressuposta “Lei dos Mercados” foi a base da Economia ortodoxa, do início do século XIX até a década de 1930, quando surgiu a realidade incontestável de uma Grande Depressão por carência de demanda efetiva. Seria por causa de generalização da preferência por liquidez ou entesouramento de dinheiro pelos agentes econômicos.
Se um investimento dá pouco retorno, eles optam por ter “o dinheiro na mão”, aguardando a elevação da taxa de juros demasiadamente baixa. Nessa situação de armadilha de liquidez não adianta baixar mais os juros para incentivar o consumo.
Nesse caso, as aplicações deixam de ser interessantes e o investidor retém os recursos. Se essa retenção for sob forma de papel-moeda, este não é produtível, ou seja, sua demanda não gera empregos em substituição aos perdidos.
Mas caso seja sob forma de depósitos à vista, em uma economia de endividamento bancário, os bancos os reteriam sem aplicações em empréstimos ou títulos de dívida com rendimentos de juros? O custo de oportunidade não seria extraordinário?!
Quando uma economia entra em crise deflacionária, com queda nominal dos preços, o consumidor continuará até quando com receio de gastar o seu dinheiro? Ficará esperando por queda maior dos preços, pelo fim do desemprego massivo, provocado pela queda das vendas, para voltar a ter confiança em exercer seu poder de consumo, e/ou pelo aumento das taxas de juros para voltar a investir?
O dinheiro de crédito não existirá se não for demandado a algum banco ou se um investidor não comprar um título de dívida pública ou de dívida direta (debêntures) de empresas não-financeiras. Disso se deduz a demanda por crédito desempenhar um papel crucial na determinação da quantidade de dinheiro ofertada pelos bancos.
Os depositantes emprestam dinheiro composto por seus ativos monetários, correspondentes a passivos dos bancos ao registrarem esses empréstimos. Mas muitos economistas sustentam o dinheiro de crédito ser constituído por dívidas emitidas pelos bancos sobre si mesmo “do nada” (crédito ex-nihilo) para conceder várias rodadas de empréstimos (ativos) depositados em contas correntes (passivos) no processo de multiplicação da moeda.
Porém, ex nihilo nihil fit (nada vem do nada). Só um ente sobrenatural “criou tudo do nada”. O princípio das partidas dobradas não permite os bancos concederem crédito aos tomadores sem lastro em um crédito equivalente dos depositantes.
A contabilidade registra os vendedores não apenas receberem dinheiro, mas concederem crédito aos bancos e, por meio deles, aos tomadores de empréstimos, ou seja, gastadores deficitários. A escrituração por partidas dobradas não registra uma suposta troca de bens por dinheiro, mas sim o produto monetário gerado pelas vendas e, em contrapartida, a utilização feita pelo recebedor desse produto.
Baixemos o nível de abstração e entremos no laboratório oferecido à Ciência Econômica, durante o pandemônio da pandemia, para experimentar ou testar essas hipóteses. De imediato, dado o distanciamento social, houve uma deflação em abril (-0,31%) e maio (-0,38%) de 2020. Neste mês, o IPCA acumulado em 12 meses baixou para 1,88%. A partir de então, ele se elevou até o pico de 12,13% em abril de 2022. Em junho de 2023, após uma série de intervenções governamentais, a inflação em 12 meses registrou apenas 3,16%.
Com a pandemia, houve a baixa do juro básico a 2% aa, mantido até março de 2021. O total de Haveres Financeiros (M4) se elevou de R$ 7,2 trilhões (98% do PIB) em fevereiro de 2020 para R$ 8,5 trilhões (114% do PIB) em fevereiro de 2021. Por qual razão?
Os Haveres Monetários (M1) praticamente não alteraram suas participações relativas entre essas datas: papel-moeda em poder do público se manteve em 3% e depósitos à vista aumentou um ponto percentual para 4%. A maior alteração aconteceu em M2 com elevação dos depósitos a prazo de 16% para 20%, enquanto em M3 as quotas de fundos caíram de 49% para 46%. Os depositantes a prazo fugiram da perda pela “marcação-a-mercado” destes, pois incluíram até debêntures (% CDI) em Fundos DI pós-fixados.
Com a manutenção da alta dos juros (13,75% aa), a participação relativa dos CDBs aumentou até 22%, em maio de 2023, bem como os demais títulos privados (Letras), elevando o M2 deles de 25% para 34% do total do M4. Depósitos de poupança perderam posição de 12% para 9% desse total. Os depósitos a prazo cresceram de R$ 1,1 trilhão em fevereiro de 2020 para R$ 2,5 trilhões em maio de 2023.
Os Haveres Financeiros (M4), depois de atingirem 114% do PIB em fevereiro de 2021, mês anterior à retomada da alta da SELIC, caíram para 108% do PIB em maio de 2023. Por qual razão houve menor “financeirização” do fluxo de renda, embora em termos absolutos o M4 tenha se elevado de R$ 8,5 trilhões para R$ 11,1 trilhões nesse período?
A teoria exposta explica o fator dinâmico da economia estar em alavancagem financeira. De acordo com a estatística de crédito ampliado do Banco Central do Brasil, houve um ciclo de expansão na Era Social-Desenvolvimentista de janeiro de 2013 (107,4% do PIB) a dezembro e 2015 (132,2% do PIB). Com o golpe e a volta da Velha Matriz Neoliberal, esse relativo caiu, devido a um ciclo de desalavancagem financeira, e só voltou ao mesmo patamar em agosto de 2018.
Com a queda dos juros e o programa de salvamento aprovado pelo Congresso Nacional, o crédito ampliado saiu de 139,7% do PIB pré-pandemia até atingir 158,4% do PIB antes da retomada da alta da SELIC em março de 2021. Pelo último dado, em maio de 2023, já baixou para 146,9% do PIB em novo processo de desalavancagem financeira.
Por fim, vale destacar as alterações dos componentes do crédito ampliado. Na Era Social-Desenvolvimentista, de janeiro de 2013 a dezembro e 2015, empréstimos caíram de 47% para 42%, títulos de dívida pública de 31% para 27% e de privada de 6% para 5%, dívida externa aumentou de 16% para 25%. De acordo com os últimos dados, em maio de 2023, os empréstimos caíram ainda mais para 37%, títulos públicos se elevaram para 35% e títulos privados dobraram para 10%, enquanto a dívida externa caiu para 18% do total.
No início da série temporal em janeiro de 2013, a participação do governo era 39%, a das empresas era 38% e a das famílias 23% do total. No fim dessa série, em maio de 2023, essas participações foram, respectivamente, 42%, 35% e 23%, ou seja, o crownding-out governamental foi em cima das empresas e não das famílias.
Esse efeito deslocamento ocorreu pelo aumento do endividamento público ter sido acima do privado. Quando não há iniciativa privada, resta a iniciativa pública…
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].