Capitalismo financeiro ainda que tardio
A expressão em latim “Libertas quae sera tamen” – lema da Inconfidência Mineira e na bandeira de Minas Gerais –, significa “Liberdade ainda que tardia”. Analogamente, a liberdade para trabalhadores assalariados acumularem reservas prudenciais só advém com a plena implantação do capitalismo financeiro no Brasil, ou seja, a consolidação de um sistema financeiro moderno e integrado aos mercados globais, após uma série de reformas e políticas estabilizadoras. Pior, diante o capitalismo, é “o capitalismo meia-boca”… sem capital.
Esse processo começou a se desenhar ao longo das décadas anteriores, particularmente, a partir da reforma bancária realizada há 60 anos. A acumulação financeira e a relativa autonomia financeira nacional resultaram de uma combinação de fatores históricos, econômicos e institucionais.
Os analistas da economia brasileira deveriam incorporar à análise, em vez de criticar ou demonizar a “financeirização”, os principais fatores favoráveis a esse desenvolvimento nacional. Foi propício ao ganho de relativa autonomia financeira.
O Brasil começou a criar as bases para um sistema financeiro mais sofisticado, durante o regime militar (1964-1985), com sua “modernização conservadora”. Em meados da década de 1960, foram implementadas várias reformas.
A Reforma Bancária de 1964 criou o Banco Central do Brasil (Bacen) e o Conselho Monetário Nacional (CMN), estabelecendo maior controle sobre a política monetária e a supervisão do sistema financeiro. Instituições financeiras públicas, como o BNDES, fundado em 1952 para financiamento da infraestrutura, a Caixa Econômica Federal, unificada no fim de 1969, para financiamento habitacional, e o Banco do Brasil, dominante até então com o crédito agrícola, propiciaram o crédito necessário, embora não suficiente, para a industrialização e a urbanização do país.
Houve esforços para desenvolver o mercado de capitais com a criação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em 1976. Passou a regular o mercado de ações e títulos. Mas só deslanchou recentemente com as emissões de títulos de dívida direta (debêntures) por grandes corporações. O mercado de ações ainda é relativamente raquítico e dominado por investidores institucionais estrangeiros.
Embora o sistema financeiro estivesse se expandindo, ele ainda não tinha a plena sofisticação tecnológica, alcançada posteriormente, ou a autonomia diante o endividamento externo. O país enfrentava períodos de instabilidade econômica, como a crise da dívida externa, nas décadas de 1970 e 1980, limitando sua autonomia financeira, e o regime de alta inflação, de 1979 a 1994, priorizando a gestão da “moeda indexada” pelos ainda poucos “bancarizados”.
A criação da moeda indexada por meio das aplicações financeiras com correção monetária na rede bancária teve um papel importante tanto na acumulação de reservas financeiras quanto nos avanços na tecnologia bancária no Brasil. Esse mecanismo foi implementado como uma resposta às pressões inflacionárias intensas, especialmente durante as décadas de 1960 a 1980.
A correção monetária permitiu à economia indexada funcionar, mesmo sob altas taxas de inflação. Teve diversos efeitos importantes para o sistema financeiro e a economia como um todo, destacadamente, sem dolarização e hiperinflação.
A reposição da perda de poder aquisitivo em aplicações financeiras foi um mecanismo crucial para a preservação do valor do capital em regime de alta inflação e desempenhou um papel central na acumulação de reservas financeiras e no desenvolvimento da infraestrutura bancária no Brasil. Ao garantir o sistema financeiro continuar a funcionar de maneira estável, mesmo em condições adversas, preparou o terreno para a modernização do setor bancário com giro rápido e seguro da moeda nacional e para o fortalecimento do mercado financeiro. Ele se consolidou plenamente após a estabilização da inflação.
A crise da dívida externa com efeito colateral na dívida pública interna, para esterilizar o seu impacto monetário, nos anos 1980, conhecida como “a década perdida” em termos de crescimento, foi um momento crítico para o Brasil, quando a dependência do capital externo e a inflação elevada criaram grandes dificuldades econômicas. Nessa fase, o Brasil dependia muito de empréstimos externos e de programas de ajustamento do FMI, limitando sua autonomia financeira.
Porém, a crise também forçou o país a iniciar um processo de reformas econômicas neoliberais para ajustar seu modelo econômico à doutrina ideológica dominante na época. Sob pressão das instituições financeiras multilaterais (FMI e WB), prepararam as bases para a liberalização do sistema financeiro nacional em 1988, a abertura externa para a globalização e a estabilidade monetária para o regime de banda cambial e controle inflacionário a partir dos anos 1990.
Os economistas neoliberais mitificam ao dizer a verdadeira transição para o capitalismo financeiro moderno no Brasil ter ocorrido a partir da implementação do Plano Real, em 1994, embora ele tenha sido um marco fundamental para estabilizar a economia e controlar a ameaça de hiperinflação aberta. Não reconhecem os “sem conta”, isto é, os cidadãos sem acesso a contas correntes nos bancos, terem a sofrido durante a implementação do Plano com URVs. Somente após 2003 houve acesso universal a bancos e crédito com o programa de bancarização massiva.
Esse processo proporcionou um ambiente mais previsível para o desenvolvimento do sistema financeiro em suas três funções básicas: sistema de pagamentos, gestão de dinheiro e financiamento. Ao mesmo tempo, devido à privatização, desnacionalização e globalização, a economia brasileira se integrava cada vez mais ao mercado financeiro global via participações acionárias de estrangeiros nas grandes empresas aqui implantadas para explorar o mercado interno.
Com a inflação controlada, os mercados financeiros puderam se expandir, e a confiança desses investidores aumentou. O programa de privatizações, iniciado nos anos 1990 permitiu o influxo de capital externo e a modernização de várias áreas da economia, incluindo o sistema financeiro nacional.
Os governos neoliberais promoveram a liberalização de mercados, permitindo maior fluxo de capitais, investimentos estrangeiros diretos e acesso a mercados de crédito global. O Banco Central e a CVM continuaram a aprimorar a regulação dos mercados financeiros, promovendo a diversificação dos instrumentos financeiros e a modernização do sistema bancário.
Durante os anos 2000, especialmente com o boom das commodities e o crescimento econômico do Brasil, o país experimentou uma nova fase de acumulação financeira. A B3 (Bolsa de Valores do Brasil) se consolidou como um dos principais mercados acionários da América Latina, atraindo mais volumes de capital dos especuladores estrangeiros.
A bancarização significou cidadania financeira. Além de propiciar a gestão do dinheiro, houve uma significativa expansão do crédito, tanto para pessoas físicas quanto para empresas, facilitada pela estabilidade macroeconômica e, depois da GCF-2008, pela atuação anticíclica dos bancos públicos federais.
Empresas nacionais, como Petrobras, Vale e bancos como Itaú e Bradesco, passaram a emitir títulos e ações no exterior, aumentando a integração do país aos mercados financeiros globais. Hoje, dadas as participações acionárias de investidores estrangeiros, com essa Internacionalização é difícil as classificar estritamente como “empresas brasileiras”.
O Brasil acumulou reservas internacionais expressivas (atualmente em cerca de US$ 357 bilhões), sobretudo a partir dos anos 2007. Isso afastou as contumazes crises cambiais e proporcionou maior resiliência diante de crises externas.
Neste século XXI, enfim, o país alcançou maior autonomia financeira, sobretudo devido à acumulação dessas reservas internacionais e à diversificação de sua base econômica. Embora tenha enfrentado crises econômicas e políticas a partir de 2015, o sistema financeiro nacional manteve relativa estabilidade.
Em 2021, foi aprovada a Lei da Autonomia do Banco Central, conferindo maior independência à instituição para conduzir a política monetária. Provou ter sido um passo importante para consolidar a estabilidade financeira de longo prazo ao resistir à pressão por política eleitoreira do candidato populista de extrema-direita.
O sistema financeiro tem avançado em áreas como fintechs, digitalização bancária e modernização dos meios de pagamento, por exemplo, o Pix. É up-to-date com a tecnologia bancária mais moderna no mundo.
Portanto, foram fatores-chave para a acumulação de funding (fontes de financiamento) e autonomia financeira no Brasil: a abertura externa e liberalização financeira no início dos anos 1990; a estabilização monetária com o Plano Real há 30 anos; o “entreguismo” desnacionalizante com privatizações e influxo de capital estrangeiro; a acumulação de reservas internacionais pelos governos após 2003; os crescimento do mercado de capitais e internacionalização das empresas brasileiras, transformando-se em transnacionais; a centralização e a concentração em cinco “big-five” bancos, oferecendo segurança em um sistema bancário moderno e regulado sob o Banco Central.
Esses fatores permitiram ao país alcançar uma maior acumulação de capital e autonomia financeira em um ambiente de crescente integração com a economia global. Evidentemente, persistem algumas vulnerabilidades internas e externas.
Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: [email protected].