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‘O Mercado como Deus’: baixe a tradução

‘O Mercado como Deus’: baixe a tradução

Quando circulei meu Texto para Discussão, Poupança: Economia Normativa Religiosa, a estimada professora da UFRJ, Ana Célia Castro, enviou-me o link de um artigo com a mensagem: – “Você vai adorar.”

Dito e feito, adorei a ironia do autor do artigo! E resolvi traduzi-lo por ser oportuno e oferecer uma leitura deliciosa a quem tem bom humor.

Não foi fácil, pois tinha muitos termos religiosos, desconhecidos por meu ateísmo, tal como “dispensação”. É o período de experiência ao qual um protestante é submetido para provar a sua obediência a algo especialmente revelador da vontade de Deus. O subtítulo do artigo é justamente “Viver na Nova Dispensação”.

Harvey Cox é professor de Teologia da Universidade de Harvard. Publicou seu texto no dia 1º de março de 1999, ápice da Era Neoliberal, após as crises mexicana (1995), asiática (1997), russa (1998), brasileira (1999). Vislumbrou o possível de ocorrer a partir da divinização de O Mercado.

É oportuno ironizar essa sacralização. Respeitosamente, sempre o trato com reverência com artigo definido e letra inicial maiúscula, pois Ele é apresentado como onipresente (existente em todos os lugares), onipotente (possuidor de todo o poder) e onisciente (privilegiado com todo o conhecimento), portanto, sobrenatural.

Aprendi através da leitura de Deus, um Delírio, livro publicado em 2006 de autoria do etólogo (estudioso do comportamento social e individual dos animais e dos costumes humanos como fatos sociais) e biólogo evolutivo Richard Dawkins: nenhum dos muitos deuses existentes podem ter as duas últimas virtudes ao mesmo tempo, porque são contraditórias! Se ele anuncia o futuro com certeza, perde o poder de mudá-lo… Uma coisa ou outra!

Afinal, o que é O Mercado?

A Inteligência Artificial do ChatGPT responde: “O Mercado pode se referir a diferentes conceitos, dependendo do contexto no qual é utilizado, mas, em geral, se refere a um ambiente onde ocorrem transações de compra e venda de bens, serviços ou ativos financeiros.

Em um sentido mais amplo, O Mercado pode ser entendido como o conjunto de compradores e vendedores interativos, em determinada atividade econômica, estabelecendo preços e quantidades de troca. Esse conjunto de interações pode ser influenciado por fatores como oferta e demanda, concorrência, regulação governamental etc.

O Mercado pode ser segmentado em diferentes componentes, entre outros, o mercado de ações, o mercado imobiliário e o mercado de trabalho. Cada um deles apresenta suas próprias características e dinâmicas (variações ao longo do tempo) específicas, mas todos estão interconectados em maior ou menor grau”.

Assim, O Mercado é um dos principais elementos do credo de economistas ortodoxos. Tais como teólogos, estes são eternos defensores da livre interação entre oferta e demanda sem intervenção do Estado na sua regulação.

Ultimamente, andam meio chateados com a volta do novo trabalhismo (social-desenvolvimentista) ao Poder Executivo no Brasil. A coalizão entre o adorado neoliberalismo e o fanático neofascismo tupiniquim foi derrotada na eleição com urnas eletrônicas, coisa espantosa para os viventes em bolhas (ou “câmaras de eco”) de sua obtusa rede social.

Pior, enquanto eles não arrumarem uma desculpa ou Teoria da Conspiração para colocar a culpa em O Estado, o infalível e indefectível O Mercado, incapaz de cometer erros, falhou! Diziam Ele nunca se enganar ou se deixar confundir, entretanto, deixou passar as “inconsistências contábeis” (no tucanês) das redes de varejo Americanas e Magalu!

O varejo brasileiro sobrevive à base de crédito. Os fornecedores o financiam até a venda aos consumidores, assim como o varejista financia o cliente e oferece recebíveis aos bancos para descontar e garantir crédito.

Um fornecedor de pequeno porte, ao vender a prazo a um grande varejista, não tem capital de giro para esperar o recebimento. Ocorre, então, a triangulação: um banco antecipa o pagamento ao fornecedor, cobrando uma comissão por isso, e concede prazo para receber do grande varejista. O banco fica com o chamado “risco sacado”.

A rede de varejo se financia por meio do tempo, concedido em distintos prazos entre recebimentos e pagamentos, ou seja, a moeda é mera escritura contábil. A estratégia varejista é operar mais com o capital de outros em lugar do próprio capital.

Corresponde ao risco sacado das lojas Americanas, empregado na rolagem do financiamento a fornecedores. A fraude ocorreu por ela, há anos, não contabilizar corretamente as operações desse risco sacado, correspondente ao financiamento bancário de compras junto aos fornecedores. A operação era lançada na conta fornecedores e os juros da transação não eram reportados em despesa financeira sem os auditores contábeis se manifestarem nos balanços publicados.

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Ela precisava de alta escala de venda, para cobrir a elevada conta de fornecedores e reduzir dela os juros do risco sacado. Os analistas de mercado deveriam ter observado a “queima de caixa”, a perda de participação de mercado e o aumento da alavancagem para acima de três vezes.

Havia altos estoques na empresa, sem fazer liquidações de produtos como as concorrentes com reduções de preços para dar baixas nos balanços. O prazo médio de estoques quase dobrou de 74 para 140 dias de vendas em 2022, o maior nível desde o início de 2019, e o prazo médio de pagamento de fornecedores caiu de 195 dias pré-pandemia até alcançar 122 dias no 3º. trimestre de 2022. A diferença entre um e outro se inverteu de 57 dias a seu favor para 18 dias quando ela tinha de cobrir com seu caixa.

Em um negócio de margens de lucro baixas, altamente sensível à taxa Selic, e sustentado na venda em até 12 vezes sem juros, essa “Pirâmide da Felicidade” se desmoronou. Houve a elevação do custo de oportunidade, arcado pelo dinheiro próprio ter sido cedido para terceiros lucrarem durante tanto tempo.

Os adoradores de O Mercado e amantes da disparatada taxa de juro brasileira não tiveram coragem de pregar uma teoria conspiratória: o “choque exógeno” (vindo de fora de O Mercado) foi consequência da alta do juro básico de 2% aa para 13,75% aa em 17 meses – e sua manutenção há mais de 7 meses. Mas isso não isenta de responsabilidade a falta de vigilância da contabilidade da dívida financeira ter sido registrada como dívida com fornecedores, a (falta de) auditoria da rede (PwC), a diretoria conivente e o (des)controle do Conselho de Administração, capitaneado pelo trio de sócios bilionários.

Conivente é quem, sabendo de algo negativo a ser praticado por outrem, não faz nada para impedi-lo, embora pudesse fazê-lo. Torna-se cúmplice de quem se conluiou. Por isso, os novos dirigentes renunciaram – e denunciaram a fraude contábil.

Quanto ao caso Magalu, refere-se à bonificação, no formato de desconto financeiro, atrelada ao valor com o qual a varejista se compromete a vender (bonificação “sell out”) ou ao valor no qual a rede compra efetivamente da indústria (bonificação “sell in”). A Magalu usa ambos os modelos, mas a denúncia cita supostas irregularidade no reconhecimento da bonificação “sell in”, ou seja, nos acordos de compra de fornecedores e distribuidores. O denunciante alega os valores terem sido reconhecidos como receita antes da entrada de pedido na empresa.

Os debenturistas e/ou os acionistas minoritários analisam os balanços contábeis? O mercado brasileiro de ações tem grande concentração do capital nas mãos das famílias fundadoras das empresas. Há baixíssima participação dos minoritários nas Assembleias Gerais Ordinárias (AGO), pois almejam apenas ganhos de capital entre a compra e a venda de seus ativos. Elas aprovam a pauta e os balanços com o “quórum qualificado”.

Hoje, o país tem quase 6 milhões de investidores individuais com CPF registrados. No ano passado, menos de 1% deles (Pessoas Físicas) participaram das AGO das 15 maiores companhias abertas do país. Por exemplo, dos 859 mil acionistas PF da Petrobras, foram 15.530 votantes; dos 511 mil da Vale, foram 25.516; dos 854 mil do Banco do Brasil, apenas 1.640; dos 854 mil do Bradesco, 804; dos 458 mil do Itaú, 815.

A Magazine Luiza possui 580 mil acionistas PF com 832 “vigilantes” e as Lojas Americanas 146 mil PF e 958 “observadores”. Todos louvam O Mercado, defendem sua liberdade, mas poucos o vigiam. O preço da liberdade é a eterna vigilância.

Baixe e leia o delicioso (e educativo) artigo do teólogo Harvey Cox sobre o possível de ocorrer a partir da divinização de O Mercado: O Mercado como Deus – Tradução e Edição de Fernando Nogueira da Costa (clique aqui)

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