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Surgimento do Banco Central e Questionamento da Autoridade Monetária

Surgimento do Banco Central e Questionamento da Autoridade Monetária

O dinheiro, segundo os economistas clássicos com inabalável devoção a John Locke e seu naturalismo monetário, nada mais era senão ouro ou prata. Como tal, era uma mercadoria sujeita às mesmas leis de oferta e demanda como qualquer outra.

A notável infraestrutura monetária organizada na City londrina, segundo Walter Bagehot, editor de The Economist por dezessete anos, desde 1860 até sua morte, foi o sistema operacional da Revolução Industrial e distinguiu a Grã-Bretanha de todos os outros países do mundo. Essa foi a boa notícia, segundo Felix Martin, no livro Dinheiro.

A má notícia, alerta Bagehot, em seu livro Lombard Street: A Description for the Money Market, publicado em 1873, seria caso funcionasse mal, pois os efeitos poderiam ser catastróficos. A maior tentação de todas – a tentação para a qual a economia abstrata da escola clássica mostrou uma fraqueza insuperável – seria esquecer o Banco Central, como representante do soberano, ser o único capaz de manter a fé e a confiança nas quais o sistema monetário de crédito depende.

Portanto, essa Autoridade Monetária é a única responsável pela saúde pública econômico-financeira. Tem não apenas de garantir o dinheiro de todos os depositantes em bancos, mas também de toda a economia de mercado, tanto em tempos normais, quanto em tempos de crise.

“Não devemos pensar”, escreveu Bagehot, “termos uma tarefa fácil quando temos uma tarefa difícil, ou estarmos vivendo em um estado natural quando na verdade estamos vivendo em um estado artificial. O dinheiro não se administra sozinho, e a Lombard Street [City londrina no século XIX] tem muito dinheiro para administrar.”

Era o centro financeiro do mundo. No entanto, Bagehot pregava: “chegou a hora da reforma!”

Ele tinha dois conjuntos de propostas – ambos referentes à prática moderna do Banco Central. A primeira dizia respeito às reformas da governança e do status dele próprio.

O Banco da Inglaterra continuava sendo uma empresa privada. O acordo de ele estar no topo da pirâmide monetária era implícito, intermitente e inteiramente fruto do capricho de sua administração nomeada de forma privada. Apesar dos fatos de “os diretores do Banco [Central] serem … de fato, se não no nome, fiduciários do público … longe de haver um compromisso distinto da [sua] parte … de cumprir essa função”. Como até hoje, muitos deles “dificilmente o reconheceria, e alguns o negariam totalmente”.

Não seria da conta do governo ou tampouco do Parlamento a política de juros. Essa situação de autonomia operacional, senão independência plena, não era sustentável.

Ainda mais importante era sua política de supervisão bancária. Nas crises de bancarrotas com risco sistêmico, a Autoridade Monetária deveria empregar seus poderes únicos para salvar o sistema financeiro do desastre. Mas em cada uma dessas ocasiões, o Banco da Inglaterra, no caso, agiu apenas quando a catástrofe era iminente.

Como disse certa vez Winston Churchill a respeito dos Estados Unidos: “sempre se podia contar com eles para fazer a coisa certa — depois de terem esgotado todas as outras possibilidades”. Grande parte do problema, argumentou Bagehot com base no testemunho dos diretores do Banco da Inglaterra, era simplesmente eles não terem os princípios de política monetária adequadamente articulados de modo os tomadores de decisões políticas compreenderem suas árduas tarefas.

Sua primeira e mais básica prescrição era de o papel do Banco Central como credor ou emprestador de última instância (corretor por comprar títulos de dívida pública e privada com emissão monetária) deveria ser uma responsabilidade estatutária – e não deixada a critério discricionário dos diretores. Quando a fé na segurança ou liquidez do dinheiro privado vacilasse, o Banco da Inglaterra deveria estar pronto para emprestar dinheiro soberano sem qualquer limite especificado com política monetária proativa.

A primeira regra proposta por Bagehot expunha o essencial dessa política: “em tempos de pânico [o Banco Central] deve descontar títulos [de dívida pública e privada] livre e vigorosamente para o público, inclusive fora de sua reserva.” O céu seria o limite

A segunda regra era, em seu papel de emprestador de última instância, o Banco Central não deveria fazer distinções entre quem é insolvente e quem não tem liquidez no calor de uma “crise de corrida bancária”. Deve emprestar “tanto quanto o público pedir”.

Na realidade, uma boa segurança bancária seria aquela, em tempos normais, considerada também como boa segurança. Mas “a maneira de causar alarme é recusar alguém [um banco grande demais para quebrar como o Lehman Brothers] com boas garantias para oferecer”, embora tenha sido exuberante em suas especulações.

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Evidentemente, surgirá um problema de “risco moral”, como os economistas o chamam. Bagehot, por isso, propôs seu terceiro princípio para evitar esse risco.

Para ele, “empréstimos de emergência só devem ser feitos a uma taxa de juros muito alta … [para] operar como uma multa pesada por timidez irracional e … dar vazão ao maior número de aplicações por pessoas que não o requeiram”. Pela experiência dos anos 90s, no Brasil, o socorro aos bancos deveria ser feito em salvaguarda dos depositantes e à custa da desapropriação dos acionistas – venda da parte good bank e falência da parte bad bank.

Por qual razão essas ideias de Bagehot eram tão controversas? Havia em ampla circulação uma visão bem diferente da natureza do dinheiro e de como a economia funcionava.

Essa era a visão da escola clássica e dominante de Economia — a escola inaugurada por A Riqueza das Nações, de Adam Smith, e refinada por autores como David Ricardo e Jean-Baptiste Say. Tinha sido sistematizada por John Stuart Mill em seu grande livro de 1848, Os Princípios da Economia Política.

Bagehot estava simplesmente trazendo rigor lógico à sabedoria popular sobre o mercado monetário e às regras práticas do Banco Central. Contra essa inovação teórico-conceitual, porém, permanecia a igreja ortodoxa da Economia Clássica, com doutrinas conservadoras e um catecismo preciso sobre questões monetárias e econômicas.

A disparidade entre seus ensinamentos e os de Bagehot não poderia ser maior, tanto em sua compreensão da atividade econômico-financeira, quanto em suas implicações para a política pública. Na raiz dessas diferenças entre ele e seus antepassados clássicos estava a maneira como eles concebiam o dinheiro e as finanças.

O dinheiro, segundo os economistas clássicos com inabalável devoção a John Locke e seu naturalismo monetário, nada mais era senão ouro ou prata. Como tal, era uma mercadoria sujeita às mesmas leis de oferta e demanda como qualquer outra.

Os instrumentos de crédito privados, ao contrário, não eram dinheiro – eram apenas substitutos do dinheiro e tinham valor apenas caso houvesse ouro ou prata reais disponíveis para resgatá-los. Essa compreensão convencional do dinheiro levou os economistas clássicos a divergirem dramaticamente das visões de Bagehot.

A primeira divergência foram os princípios corretos para a política monetária em uma crise. O Banco da Inglaterra deveria, para eles, proteger seu tesouro, recusando o acesso ou aumentando a taxa de juros pela qual emprestaria seu ouro. Essa política recomendada pelos economistas clássicos era classificada por Bagehot como a pior política a seguir, porque mais provavelmente exacerbaria o pânico.

Carente em uma crise não era ouro, mas sim confiança, cujo Banco Central tinha uma capacidade única de restaurar ao trocar as notas desacreditadas de emissores privados por seu próprio dinheiro soberano. A economia monetária de Bagehot implicava em divergência radical também sobre a política preventiva de recessões.

A implicação política básica da Lei de Say era não haver sentido em tentar aumentar a demanda agregada, pois as origens das recessões deveriam necessariamente estar do lado da oferta – se esta era fora de sua órbita, nada poderia fazer… Restava a hoje conhecida como política neoliberal: revogar os regulamentos trabalhistas encarecedores das contratações, reduzir impostos e tarifas para desoneração fiscal etc.

Tentar impulsionar a produção por meio da política monetária, no entanto, seria ineficaz. Somente quando a produção aumentasse mais dinheiro seria demandado e fornecido – e não o contrário. Como as condições do lado da oferta geralmente não mudariam muito no curto prazo, segundo a Lei de Say, seria melhor não fazer nada…

A economia de Bagehot, ao contrário, implicava na visão comumente aceita de “as recessões serem o resultado de as pessoas não terem dinheiro suficiente”. Era, como Keynes demonstrou adiante, correta. A Lei de Say, por sua vez, já era a Economia de tolos espertos.

O melhor e mais simples método de análise desses “tolos espertos” é começar por ignorar o dinheiro. A análise econômica deveria prosseguir focada apenas naquilo cujos economistas convencionais aprenderam a chamar de “termos reais” – sem moeda para atrapalhar o livre estabelecimento de preços relativos, ou seja, uma economia sem o numerário influenciar nas decisões!

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