A celebração da tragédia

A guerra não se trava apenas entre Russia e Ucrânia. Toda a Europa está envolvida, junto com os Estados Unidos e seus outros aliados. Fortalece-se o temor de uma escalada sem limites
A visita de Joe Biden a Kiev esta semana celebra um ano da guerra que começou em 24 de fevereiro de 2022 com a invasão empreendia pela Rússia, que a batizou de Operação Especial. O que deveria ser um “raid” para liquidar o assunto em uma semana já dura um ano e ninguém arrisca a previsão de quando vai terminar. Transformou-se num conflito entre a OTAN e a Rússia tendo a Ucrânia como teatro de guerra. Em sua visita Biden deixou uma contribuição de 500 milhões de dólares para o fundo que garante a continuação das hostilidades.
Enquanto isto os generais russos planejam os novos lances para a ocupação dos territórios a leste da Ucrãnia. Putin joga sua cartada decisiva, pois a vitória é a única garantia do seu futuro político.
A China, embora envolvida com seus problemas com Taiwan, ensaia mais uma vez a possibilidade de enviar armas de apoio ao lado russo e os Estados Unidos e a União Europeia radicalizam as próprias posições de suporte ao governo ucraniano. Este suporte, traduzido em armas e veículos de última geração, garante a continuidade da guerra.
A primavera
A primavera aproxima-se, desaparecem as nevascas e os campos gelados tornam-se limpos e prontos para novas ofensivas e maiores combates que vão gerar novas levas de refugiados. Até hoje, a guerra já produziu 5 milhões de refugiados dentro da Europa. O futuro não deve trazer boas notícias. Todos os analistas afirmam que este é o momento mais preocupante.
A guerra não se trava apenas entre Russia e Ucrânia. Toda a Europa está envolvida, junto com os Estados Unidos e seus outros aliados. Fortalece-se o temor de uma escalada sem limites.
A Europa, alinhada aos Estados Unidos, não esconde a enorme preocupação quanto às consequências de um enorme conflito em seu próprio território. O velho continente, desde a criação da União Europeia, por iniciativa de alguns políticos idealistas, imaginava-se livre de guerras depois de ter sofrido, no século passado, com as duas grandes tragédias da primeira e da segunda guerras mundiais. A UE tinha a paz como o seu principal objetivo.
A guerra da Direita
A opinião pública também se divide e as esquerdas permanecem atônitas diante de uma guerra que se trava inteiramente no campo da direita entre dois países de governos que analistas classificam como neofascistas.
A social democracia europeia dá suporte à posição do Ocidente representada pela OTAN enquanto a esquerda mais radicalizada permanece em dúvida, a exemplo da divisão que provocou a cisão da II Internacional em relação à guerra de 1914-1918.
João Vasconcelos Costa, em artigo no jornal Público, de Portugal, lembra que a corrente que veio a se transformar no movimento comunista considerava que a guerra não interessava aos trabalhadores nem os devia envolver pois tratava-se de um conflito entre potências imperialistas dentro do quadro das contradições do sistema capitalista. É o que pode ser visto hoje pois, segundo o articulista, todo o mundo político reage em termos geopolíticos, polarizados, com as simpatias a prevalecer sobre a análise. Essas simpatias, que envolvem posicionamentos muito diferentes em relação ao conflito principal que deve mover a esquerda.
No campo das esquerdas, há quem afirme que não se pode condenar a invasão do Iraque e não fazer o mesmo em relação à da Ucrânia. E lembra-se Gramsci ao afirmar que o socialismo é também um projeto moral.
Um manifesto assinado por 38 partidos comunistas afirma que “os desenvolvimentos da Ucrânia estão ligados aos planos dos EUA, OTAN e União Europeia no contexto de uma acirrada concorrência com a Rússia capitalista pelo controle dos mercados, matérias-primas e rede de transportes do país.”
O Partido Comunista Brasileiro lançou os slogans “Fim da OTAN e da guerra” e “Pela Paz e o Socialismo na Ucrânia e em todo o mundo”
Os comunistas russos
Já o Partido Comunista da Federação Russa, que representa a maior oposição a Putin no parlamento, apoiou a invasão afirmando que significa “impelir os provocadores de Kiev à paz e conter a agressividade da OTAN”. Os comunistas russos denunciam o que chamam a atividade das forças fascistas e nacionalistas da Ucrânia, o anticomunismo e a perseguição aos comunistas, a discriminação contra a população de língua russa e os ataques armados do governo ucraniano contra o povo de Donbass. Repetem, assim, os argumentos do Kremlin.
Em seu longo pronunciamento no Discurso do Estado e da Nação, perante a Duma, o parlamento, e representantes da elite russa, Putin acusou o Ocidente de ter começado a guerra, colocou a Rússia como vítima de uma conspiração global que quer acabar com o país. Afirmou que a Ucrânia tem um regime ameaçador, com uma força militar nazista. Reiterou que foi obrigado a intervir na Ucrânia para salvar os povos russos da região do Donbass. E finalizou com o grave anúncio de que vai suspender a participação do país no acordo Novo START, assinado em 2010 e que pretendia limitar o arsenal nuclear da Rússia e dos Estados Unidos.
Em seu discurso Putin não pronunciou em nenhum momento a palavra guerra, referindo-se sempre a uma “operação militar especial”. E acentuou o traço moralista do seu governo dizendo que o conflito é uma forma de seu país se defender da podridão ocidental, associando pedofilia à homossexualidade.
Deixou claro que o país se prepara para um longo conflito.
A guerra da Ucrânia assinala vários fracassos geopolíticos. A Rússia deu nova musculatura à sua maior inimiga, a OTAN; a Europa entregou-se aos Estados Unidos, que se vêem perdidos diante de uma ordem mundial multipolar. E nunca foi tão grande o risco de uma nova guerra mundial.

Poeta, articulista, jornalista e publicitário. Traballhou no Diário de Minas como repórter, na Última Hora como chefe de reportagem e no Correio de Minas como Chefe de Redação antes de se transferir para a publicidade, área em que se dedicou ao planejamento e criação de campanhas publicitárias. Colaborou com artigos em Carta Maior e atualmente em Fórum 21. Mora hoje no Porto, Portugal.
É autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).