A greve e a luta de classes
Manifestação em Paris, em 19/01/23, contra a reforma da Previdência na França. (CC Force Ouvrière)
A França continua sob a agitação das greves e paralisações que têm tumultuado a vida das suas cidades. A principal motivação dos trabalhadores franceses é defender o sistema de aposentadorias e contra o aumento da idade para ter direito ao benefício, entre outras medidas que significam prejuízo para quem trabalha.
POR CELSO JAPIASSU
A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes.
Homem livre ou escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito.
(Karl Marx, Friedrich Engels)
A França continua sob a agitação das greves e paralisações que têm tumultuado a vida das suas cidades. A principal motivação dos trabalhadores franceses é defender o sistema de aposentadorias e contra o aumento da idade para ter direito ao benefício, entre outras medidas que significam prejuízo para quem trabalha. São as reformas neoliberais do presidente Macron que causam tanta repulsa, o que não ocorreu no Brasil em situação muito parecida e onde a reforma da previdência foi aprovada sem protestos dos que sofreram com os prejuízos. Assim também como no Brasil, onde uma importante greve dos petroleiros durante o governo Bolsonaro, que contestou as ações de um governo agressivamente reacionário, foi praticamente ignorada pela imprensa, a mídia francesa no princípio deu pouca cobertura ao movimento que já paralisou o país, afetou até o turismo e configura-se como a mais longa das greves trabalhistas da história da França.
Alguns cronistas da história – não os historiadores – já disseram que os franceses têm paixão pelas greves, mas na verdade a classe trabalhadora em qualquer parte do mundo jamais conseguiu algo que não fosse através de movimentos fortes, entre os quais o mais poderoso deles é a greve. A suspensão voluntária do trabalho. O horror dos patrões. E os trabalhadores franceses mais uma vez se colocam na vanguarda das lutas de classe.
Uma era de retrocessos
As paralisações atuais já afetaram o fornecimento de eletricidade e o funcionamento de escolas, hospitais e principalmente dos transportes, a mais sensível para a maioria das pessoas. A própria Torre Eiffel, símbolo da cidade, e outros monumentos parisienses foram fechados diante da precariedade dos serviços públicos interrompidos pelo protesto.
Na quinta-feira (23/3), mais de 1 milhão de pessoas saíram às ruas em todo o país, pelos cálculos do Ministério do Interior. A CGT, federação de entidades que representam os trabalhadores, diz que foram 3 milhões.
É a maior luta dos trabalhadores franceses desde maio de 1968, que o General De Gaulle na época chamou de chienlit, um personagem típico do carnaval parisiense, para significar desordem ou algo que, no Brasil, poderia ser traduzido na linguagem vulgar por esculhambação.
Vivemos uma era de retrocessos. Com a queda do Muro de Berlim e a volta dos países ditos socialistas ao capitalismo radical, o mundo como que se alinhou a um novo tipo de total liberalismo econômico e a uma segura hegemonia do sistema financeiro internacional. Esse é o capital que financia, dirige e supervisiona os governos visando as privatizações dos bens públicos em benefício dos seus negócios.
O movimento atual na França reabilita mais uma vez a greve como instrumento de luta da classe trabalhadora.
A própria palavra greve é um vocábulo da língua francesa. Tem origem na designação da Place de Grève, em Paris, onde no passado os trabalhadores desempregados esperavam oportunidades de emprego. Esta é a praça onde hoje se localiza o Hotel de Ville, a prefeitura da cidade. Lá foi instalada a guilhotina durante o período mais radical da Revolução Francesa para, literalmente, cortar a cabeça da aristocracia dominante.
A greve geral
Após mais uma greve geral e uma sucessão de greves setoriais de diferentes categorias de trabalhadores, os franceses continuam a apoiar o movimento que representa nada mais do que uma acirrada manifestação da luta de classes tão bem estudada por Marx.
O presidente Emmanuel Macron diz que não vai ceder pois as reformas são necessárias ao país. O brilhante cronista português Miguel Esteves Cardoso apelidou-o Macronapoléon e comentou “quanto mais um Presidente corresponde à caricatura da elite – condescendente, arrogante, convencido, ambicioso, falso -, mais fácil é odiá-lo.”
É de se notar ainda a quantidade de imigrantes que se destacam nas ações que agitam as greves francesas. Os árabes e os negros, alvos preferenciais do ataque dos partidos de extrema-direita, mostram a sua cara nos protestos de rua, aproveitam um palco onde podem enfim se manifestar e expor a natureza do seu protesto.
Um renascimento
Uma classe trabalhadora multirracial, multinacional, típica do século em que vivemos, aparece com toda a sua força. E desmente Toni Negri, André Gorz, Ernesto Laclau, Chantal Mouffe e outros autores diversos que afirmaram estarmos a viver hoje assistindo a substituição do conceito clássico de classe trabalhadora pela ideia de multidão.
Pelo contrário, um ponto de vista que toma corpo na esquerda francesa é o de que a radicalização e a forte mobilização das diversas categorias para esta greve atual pode estar a fermentar a criação de um novo e robusto partido revolucionário. O que se vê é que, parafraseando o famoso manifesto de Marx e Engels de 1848, um novo espectro ronda a Europa.
Os trabalhadores estão vivos e na vanguarda das lutas sociais. E ainda se ouve cantar a Internacional nas ruas de Paris.
Poeta, articulista, jornalista e publicitário. Traballhou no Diário de Minas como repórter, na Última Hora como chefe de reportagem e no Correio de Minas como Chefe de Redação antes de se transferir para a publicidade, área em que se dedicou ao planejamento e criação de campanhas publicitárias. Colaborou com artigos em Carta Maior e atualmente em Fórum 21. Mora hoje no Porto, Portugal.
É autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).