Lei anti-casamento infantil em Serra Leoa se torna referência na África

Lei anti-casamento infantil em Serra Leoa se torna referência na África

Promulgada no país em julho deste ano, nova legislação penaliza os casamentos antes dos 18 anos, um grande avanço para um país onde, em 2022, metade das meninas já estavam casadas aos 15 anos

por Joyce Chimbi

FREETOWN/NAIRÓBI – “Um indivíduo não deve se casar com uma menor”, estabelece a nova Lei de Proibição do Casamento Infantil de Serra Leoa, que impede categoricamente o casamento infantil e fixa a idade mínima para casar em 18 anos. Proíbe também consentir, tentar casar com menor, realizar a cerimônia, participar dela e promover o casamento com uma criança, além de usar força ou maus-tratos contra menores.

O presidente de Serra Leoa, Julius Maada Bio, assinou a lei no dia 2 de julho, em uma cerimônia no Centro de Conferência de Freetown, a capital do país, organizada pela primeira-dama, Fatima Bio, cuja campanha “Não toquem em nossas meninas” foi essencial para este feito. O evento contou com a presença de esposas de governantes de outros países africanos.

“Sempre acreditei que o futuro de Serra Leoa é feminino. As gerações futuras devem prosperar em um país onde estejam protegidas, tenham igualdade de condições e sejam empoderadas”, disse o presidente na rede X pouco depois de promulgar a lei, aprovada pelo parlamento em 23 de junho.

Agora, ao se tornar crime, os homens que se casarem com meninas menores de 18 anos podem ser condenados a 15 anos de prisão, uma multa de 4 mil dólares ou ambas as penas. Além disso, meninas que não querem continuar casadas poderão anular os casamentos.

Fatou Gueye Ndir, representante sênior de compromisso regional e defesa da organização Girls Not Brides (Meninas, não esposas), considera a nova legislação um grande avanço para acabar com práticas nocivas contra as meninas em Serra Leoa. Ela lembra que a lei também impõe sanções aos infratores, protege as vítimas e garante acesso à educação e serviços de apoio para as jovens afetadas.

A Girls Not Brides é uma coalizão mundial de mais de 1.400 organizações da sociedade civil comprometidas em acabar com o casamento infantil e permitir que as meninas possam alcançar seu máximo potencial. Fatou afirma que a nova lei trouxe uma nova força à luta contra o casamento infantil, precoce e forçado em Serra Leoa. “Isso marca um ponto de inflexão. Apelamos ao governo para continuar oferecendo serviços de apoio às meninas afetadas e acesso à educação, que são fundamentais para protegê-las e garantir que não sejam negativamente impactadas pela criminalização do casamento infantil”, declarou.

A lei também proíbe a conspiração, ajuda e incitação para que se realizem casamentos infantis. É tão completa que também proíbe a convivência com um menor, qualquer tentativa, conspiração, ajuda ou incitação a conviver com uma criança.

Fatima Maada Bio, primeira-dama de Serra Leoa, que promoveu a lei contra o casamento infantil com a campanha “Não toquem em nossas meninas”. Imagem: ONU

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) informou que, somente em 2020, quase 800 mil meninas menores de 18 anos se casaram em Serra Leoa, o que representa um terço das meninas do pequeno país da da África Ocidental. Metade dessas vítimas de casamento infantil se casou antes de completar 15 anos. O flagelo do casamento infantil é tão prevalente que cerca de 9% de todas as meninas estariam casadas aos 15 anos e 30% aos 19.

Hannah Yambasu, diretora da organização Mulheres Contra a Violência e Exploração em Sociedade de Serra Leoa (WAVES-SL), comenta que outras medidas para impedir os casamentos infantis não tiveram sucesso em romper com essa prática perniciosa. “A política de educação obrigatória, onde todos os meninos e meninas devem ir à escola, não foi suficiente para manter as meninas dentro do sistema educativo”, exemplifica ela, explicando que há grupos étnicos e comunidades que não consideram necessário que as meninas, estando ou não na escola, cheguem aos 18 anos antes de se casarem.

Yambasu destaca que, até a promulgação da lei, as meninas entravam em um terreno perigoso aos 12 anos, sendo muitas vezes forçadas a se casar, com consequências para toda a vida. Ela ressalta que a lei, por si só, não é suficiente e que são necessários esforços coordenados para conscientizar a comunidade sobre todos os aspectos da norma, especialmente porque a Lei de Casamento Consuetudinário e Divórcio de 2009 permitia os casamentos infantis com o consentimento dos pais ou tutores e não estipulava uma idade mínima para o casamento.

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Fatou, da Girls Not Brides, afirma que a implementação eficaz da lei resultará em avanços substanciais e resultados positivos em educação, saúde e progresso econômico das mulheres. Ela enfatiza que o casamento infantil está estreitamente ligado à gravidez juvenil, e que a lei ajudará a reduzir a mortalidade materna e infantil em Serra Leoa. Ao adiar o casamento e a gravidez, diminuirão significativamente os riscos associados à maternidade precoce, inclusive complicações que frequentemente levam a altas taxas de mortalidade materna e infantil.

Fatou ressalta que as meninas que evitam o casamento infantil têm menos chances de sofrer estresse ou trauma psicológico associado a ele, o que resulta em melhores resultados de saúde mental. Além disso, de acordo com a ativista, quando mais meninas completarem sua educação, haverá um grupo maior de mulheres instruídas entrando na força de trabalho, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento econômico de Serra Leoa. “Mulheres instruídas têm mais chances de conseguir empregos bem remunerados, melhorando o status econômico de suas famílias e reduzindo os níveis de pobreza”, acrescenta.

Organizações e especialistas concordam que o rápido aumento da população de crianças na África necessita de medidas radicais para acabar com práticas nocivas, incluindo o casamento infantil, que dificultam o progresso em direção ao acesso universal à educação. Nesse contexto, o casamento infantil é visto como o maior obstáculo para o desenvolvimento sustentável.

Seis dos dez países com as taxas mais altas de casamento infantil no mundo estão na África Ocidental e Central, onde a prevalência média é de quase 41% das meninas e adolescentes se casando antes dos 18 anos. A nova lei de Serra Leoa é considerada oportuna, especialmente à luz do Relatório de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2024, que detalha os desafios importantes que o mundo enfrenta para alcançar avanços substanciais. O relatório destaca áreas com retrocessos, mas também mostra onde houve progresso, como na busca pela igualdade de gênero até 2030, quando devem ser cumpridas as 269 metas dos 17 ODS.

Embora as práticas nocivas estejam diminuindo, o relatório revela que não acompanham o crescimento populacional. Ainda hoje, uma em cada cinco mulheres casa-se antes dos 18 anos, em comparação com uma em cada quatro há 25 anos. Foram evitados 68 milhões de casamentos nesse período. O relatório expressa preocupações sobre o fato de muitas mulheres ainda não poderem exercer seu direito de decidir sobre sua saúde sexual e reprodutiva, e a violência contra as mulheres continua afetando desproporcionalmente as mulheres com deficiências. Com apenas seis anos restantes, o progresso atual está muito aquém do necessário para alcançar os ODS. Sem investimentos massivos e ações ampliadas, o relatório questiona a possibilidade de atingir esses objetivos.

A Cúpula do Futuro da ONU ocorrerá em setembro de 2024, uma oportunidade única para melhorar a cooperação em desafios críticos e reafirmar compromissos existentes, incluindo os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Hannah Yambasu entende muito bem esses desafios, pois trabalha de perto com adolescentes, mulheres e pessoas vulneráveis, incluindo pessoas com deficiências. Ela apela a todos os governos, partes interessadas e gerações mais velhas que deem às meninas a oportunidade de viver suas vidas como escolherem. “A oportunidade de ir à escola e depois escolher seus maridos. Elas entram no casamento forçado com o coração sangrando e suas vidas mudam para pior. Todas as crianças merecem proteção e felicidade, e agora temos um plano legal para salvaguardar seus sonhos”, afirma.

Ela enfatiza que as meninas merecem “ter acesso a todas as ferramentas necessárias para participar plenamente do desenvolvimento de nossas nações na África”, e conclui: “Devemos nos levantar contra práticas nocivas. As tradições estão aí, sim, e queremos preservá-las. Mas vamos manter apenas aquelas que servem para o desenvolvimento e progresso de nossas comunidades”.

*Imagem em destaque: Joyce Chimbi/IPS

**Publicado originalmente em IPS – Inter Press Service | Tradução e revisão: Marcos Diniz

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