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Quando os funcionários dos EUA mostram quem são, acreditem neles.

Quando os funcionários dos EUA mostram quem são, acreditem neles.

Há mais de 250 dias, os funcionários americanos que dirigem o Pentágono e o Departamento de Estado têm trabalhado para implementar e disfarçar as políticas de guerra de Washington, que já custaram mais vidas do que em qualquer outro governo neste século. Imagem: Faixa de Gaza, por Ocha/Nações Unidas.

POR NORMAN SOLOMON

SAN FRANCISCO, EUA – “Quando alguém nos mostra quem é”, disse a célebre escritora e poetisa americana Maya Angelou, “acreditemos nele de primeira”. Isto deveria aplicar-se às elites da política exterior que mostram quem são, uma ou outra vez.

Há mais de 250 dias, os funcionários americanos que dirigem o Pentágono e o Departamento de Estado apoiam o massacre contínuo de civis palestinos em Gaza por parte de Israel.

Supostamente dedicados à defesa e à diplomacia, estes funcionários têm trabalhado para implementar e disfarçar as políticas de guerra de Washington, que já custaram mais vidas do que em qualquer outro governo neste século.

Entre as armas de guerra, as munições de fragmentação são especialmente horríveis. É por isso que 67 democratas e um número igual de republicanos da Câmara dos Representantes votaram neste mês para impedir que o governo dos EUA continue a enviar estas armas para exércitos no estrangeiro.

Porém, mais do dobro dos membros da Câmara foram contra e derrotaram uma emenda relacionada ao financiamento do Pentágono que poderia ter proibido a transferência de munições de fragmentação para outros países. Estes legisladores garantiram, assim, que os Estados Unidos continuem fornecendo essas armas às forças militares da Ucrânia e de Israel.

Até à data, 124 países assinaram um tratado que proíbe as munições de fragmentação que destroem os corpos de civis. As “bombas” de munições de fragmentação são “especialmente atrativas para as crianças porque se assemelham a um sino com um laço de fita na ponta”, explica a Just Security.

Nenhum membro do Congresso norte-americano precisa se preocupar com que um de seus filhos pegue numa bomba dessas, ao confundi-la com um brinquedo, para ser morto instantaneamente ou mutilado pelos estilhaços.

A administração de Joe Biden reagiu corretamente às indicações (mais tarde comprovadas como corretas) de que a Rússia estava utilizando munições de fragmentação na Ucrânia.

Em 28 de fevereiro de 2022, a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, disse aos jornalistas que, se as informações sobre o uso de tais armas pela Rússia se revelassem verdadeiras, isso se trataria “potencialmente, de um crime de guerra”.

Naquela altura, a primeira página do The New York Times descrevia as “munições de fragmentação internacionalmente proibidas” como “uma variedade de armas – foguetes, bombas, mísseis e projéteis de artilharia – que dispersam no ar fragmentos de bombas letais numa vasta área, atingindo alvos militares e civis”.

Dias depois, o Times informava que os responsáveis pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) “acusaram a Rússia de utilizar bombas de fragmentação na sua invasão”, acrescentando que “as bombas de fragmentação anti-pessoal… matam de forma tão indiscriminada que são proibidas pelo direito internacional”.

Porém, quando as forças armadas ucranianas ficaram sem munições, no ano passado, a administração norte-americana decidiu começar a enviar-lhes munições de fragmentação.

“Todos os países devem condenar o uso dessas armas em qualquer circunstância”, afirma a Human Rights Watch.

Há um quarto de século, o correspondente da BBC John Simpson resumiu a situação: “Utilizadas contra seres humanos, as bombas de fragmentação são algumas das armas mais selvagens da guerra moderna”.

Conforme o relatório do Serviço de Investigação do Congresso (CRS), as munições de fragmentação “dispersam um grande número de sub-munições de forma imprecisa numa vasta área”. Muitas vezes, elas “não detonam e são difíceis de detectar” e “podem se constituir um perigo explosivo por décadas”.

O relatório do CRS acrescenta: “As vítimas civis se devem principalmente ao fato de as munições serem disparadas em áreas onde soldados e civis se misturam, de as munições de fragmentação imprecisas aterrarem em áreas povoadas e de os civis passarem por áreas onde foram usadas munições de fragmentação não deflagradas.

Os terríveis efeitos imediatos são apenas o começo. “Já se passaram mais de cinco décadas desde que os Estados Unidos lançaram bombas de fragmentação no Laos, o país mais bombardeado do mundo per capita”, lembra a Human Rights Watch.

“A contaminação por restos de munições de fragmentação e outras munições não deflagradas é tão extensa que menos de 10% das áreas afetadas foram limpas. Estima-se que 80 milhões de sub-munições ainda representam um perigo, especialmente para crianças curiosas”, acrescenta.

Os membros do Congresso que acabam de dar luz verde a mais munições de fragmentação estão se esquivando das realidades chocantes. A abordagem básica é proceder como se as realidades humanas não importassem se um aliado usa estas armas (ou se os EUA as usam, como fizeram no Sudeste Asiático, na Jugoslávia, no Afeganistão, no Iraque e no Iémen).

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De modo geral, com a carnificina que persiste em Gaza, é fácil dizer que o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, mostrou quem é. Mas também o Presidente Biden e os republicanos e democratas mais poderosos do Congresso o fizeram.

Enquanto os Estados Unidos têm fornecido a grande maioria das armas e munições importadas por Israel, uma abordagem semelhante por parte de Washington oficial (com resmungos ineficazes) permitiu a Israel restringir letalmente os alimentos que chegam a Gaza.

Durante o seu discurso sobre o Estado da União, no início de março, Biden anunciou planos para que os EUA construíssem um porto na costa de Gaza para trazer alimentos e outra ajuda vital. Mas o seu discurso não mencionou a previsão do Pentágono de que esse porto marítimo poderia demorar 60 dias para se tornar operacional.

Naquela altura, uma manchete do Common Dreams resumia o vazio da tática: “O plano de Biden para um porto de ajuda é considerado um esforço ‘patético’ de relações-públicas enquanto Israel mata os habitantes de Gaza de fome.

Mesmo em plena capacidade, o porto planejado nem de perto compensaria o bloqueio metódico de Israel aos caminhões de ajuda, que é de longe a melhor forma de levar alimentos a 2,2 milhões de pessoas que enfrentam a fome.

“Estamos falando de uma população que está morrendo de fome”, disse Ziad Issa, responsável pela política humanitária da ActionAid. “Já vimos crianças morrendo de fome”, acrescentou.

Um funcionário da Save the Children fez um levantamento da realidade: “As crianças em Gaza não podem esperar para comer. Já estão morrendo de subnutrição. Salvar suas vidas é uma questão de horas ou dias, não de semanas”.

The Nation descreveu “o trágico absurdo das políticas de Biden para Gaza: o governo dos EUA está fazendo planos elaborados para melhorar uma catástrofe humanitária que não existiria sem as suas próprias bombas”.

E há alguns dias – mais de três meses depois do alarido sobre os planos para um porto na costa de Gaza – surgiram notícias de que isso tudo é um fracasso colossal, mesmo nos seus próprios termos.

“O cais temporário de 230 milhões de dólares que o exército dos EUA construiu em cima da hora para levar a ajuda humanitária a Gaza falhou largamente em sua missão, conforme as organizações de ajuda humanitária, e provavelmente, terminará as suas operações semanas antes do inicialmente planejado”, noticiou o The New York Times em 18 de junho.

“No mês passado, desde que foi ligado à costa, o cais só esteve a serviço por cerca de 10 dias. Na maior parte do tempo, foi reparado após ser destruído pelos mares agitados, sendo separado para evitar mais danos ou suspenso por razões de segurança”, acrescentou.

Como patrocinador militar crucial de Israel, o governo dos EUA poderia insistir no fim do massacre contínuo de civis em Gaza e exigir a cessação total da interferência com as entregas de ajuda. Em vez disso, Israel continua infligindo “morte e sofrimento inconscientes”, à medida que a fome em massa se aproxima.

O conselho de Maya Angelou é certamente aplicável. Quando o Presidente e uma grande maioria do Congresso provam que são cúmplices voluntários de um assassínio em massa, há que acreditar neles.

É apropriado que Angelou, poetisa e escritora de renome, bem como cantora e ativista dos direitos humanos, tenha dado voz às palavras da ativista Rachel Corrie, esmagada até à morte em 2003, por uma escavadeira do exército israelense que ia demolir a casa de uma família palestina, em Gaza.

Anos depois da morte de Corrie, Angelou gravou um vídeo enquanto lia um e-mail da jovem ativista:

“Todos nós nascemos e um dia todos vamos morrer. E se a nossa solidão não for uma tragédia? E se a nossa solidão for o que nos permite dizer a verdade sem medo? E se a nossa solidão for o que permite nos aventurarmos, experimentar o mundo como uma presença dinâmica, como algo em mudança e interativo?”

Norman Solomon é diretor nacional da RootsAction.org e diretor-executivo do Institute for Public Accuracy. Autor de numerosos livros, incluindo “War Made Easy”. O seu último livro, “War Made Invisible: How America Hides the Human Toll of Its Military Machine“, foi publicado no verão de 2023 pela The New Press.

Artigo publicado na Inter Press Service.

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