Contrastes e desigualdades em torno de um rio nas terras áridas brasileiras
O rio São Francisco impulsionou a agricultura irrigada nos seus 2.863 quilômetros de extensão, grande parte dos quais em território semiárido, com uma precipitação média entre 200 e 800 milímetros por ano. A manga e a uva são as principais culturas locais.
POR MARIO OSAVA
JUAZEIRO, Brasil – Osmir da Silva Rubez recusa-se a aderir ao sistema de gotejamento, mas continua a ser o único entre as 51 famílias que vivem no Projeto Público de Irrigação Mandacaru, em Juazeiro, município do estado da Bahia, na região nordeste do Brasil, a manter os sulcos para levar água a suas culturas.
O rio São Francisco, que nasce no estado de Minas Gerais, perto do centro do Brasil, e corre em direção ao nordeste, impulsionou a agricultura irrigada nos seus 2.863 quilômetros de extensão, grande parte dos quais em território semiárido, com uma precipitação média entre 200 e 800 milímetros por ano.
É uma bacia privilegiada, localizada numa região que sofre com a escassez de água, especialmente nas secas cada vez mais recorrentes, onde rios e riachos menores secam durante a estiagem.
“O pólo fruticultor é um sistema artificial que concentra os melhores solos e água do São Francisco em ilhas e gera a ilusão de crescimento na Grande Juazeiro e Petrolina, onde apenas 5% das terras são aptas para irrigação e só há água suficiente para 2%”, Roberto Malvezzi.
A disponibilidade de água, imensa devido ao grande caudal do rio, foi aumentada pela construção de duas barragens hidrelétricas, uma acima e outra abaixo de Juazeiro, cidade de 238 mil habitantes, onde a fruticultura se desenvolveu, principalmente para exportação.
A manga e a uva são as principais culturas locais, cultivadas em grandes fazendas particulares e nos projetos de irrigação da estatal Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). A atividade exportadora evidencia os contrastes e as desigualdades da chamada ecorregião do Semiárido.
Mangueiras de irrigação por gotejamento em uma fazenda da Agrodan em uma ilha no Rio São Francisco, no árido nordeste do Brasil. A empresa afirma ser a maior produtora e exportadora de manga do país. Imagem: Mario Osava/IPS.
Irrigação por inundação
“As valas que eram usadas inicialmente para a irrigação são perenes no uso da água. Hoje, a irrigação por gotejamento, que usa apenas a água necessária, é controlada por computadores e mede a umidade do solo”, explicou Humberto Miranda, presidente da Federação da Agricultura da Bahia.
“Antes, apenas 30% da água era utilizada, hoje é mais de 90%, o que significa que pouco se perde”, acrescentou durante a visita da IPS a diferentes localidades de Juazeiro para conhecer fazendas e organizações envolvidas no projeto de irrigação.
Em Mandacaru, o sistema que possibilita a mudança para a irrigação por gotejamento, com lagoas e bombeamento, foi implantado em 2011, conta Manoel Vicente dos Santos, um dos primeiros colonos do projeto inaugurado em 1973. “A irrigação por sulcos era irregular, levava mais água para uma planta do que para outras, um desperdício”, lembrou.
Apesar disso, Rubez resiste à mudança. Além do investimento necessário para a sua implantação, com bombas e mangueiras, o sistema de gotejamento consome muita energia elétrica, cerca de 1.000 reais (200 dólares) por mês. “E não tenho herdeiros para deixar o sistema”, brincou com a IPS este homem solteiro de 60 anos.
Suemi Koshiyama, um imigrante japonês que se tornou grande produtor de uvas e mangas no vale do rio São Francisco, em uma terra árida do município de Juazeiro, no nordeste do Brasil, mostra a mangueira que irriga seu vinhedo, alimentada por gotejamento de cima para baixo e não no chão. Imagem: Mario Osava/IPS.
A irrigação por gotejamento representa, sim, um avanço nesses projetos de irrigação, pois, além de economizar água, melhora o manejo do solo, reduzindo a erosão e controlando a adubação química ao direcioná-la diretamente para as raízes por meio da água, reconheceu José Moacir dos Santos, coordenador-geral do não-governamental Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa).
Mas os projetos de irrigação, sejam eles da Codevasf ou privados, não favorecem o desenvolvimento local, concentram renda, oferecem empregos sazonais durante as colheitas e promovem a desigualdade, critica Santos.
Prosperidade para poucos
A riqueza gerada pela fruticultura de exportação fica nas mãos de poucos, mas gera uma perceção de prosperidade que atrai muitos pobres para Juazeiro e Petrolina, a cidade vizinha de 387 mil habitantes, separadas pelo rio São Francisco e ligadas por uma ponte.
A migração para essas duas capitais fruticultoras do Nordeste brasileiro “inflama suas populações, principalmente as periferias pobres e sem infraestrutura, e esvazia as cidades próximas”, assinalou o ativista, filho de Manoel Vicente, um dos assentados do projeto.
Para ele, está acontecendo uma “injustiça”, pois o rio abastece a indústria da fruticultura que exporta a sua água contida nas frutas para a Europa, Estados Unidos e Japão. Mas não faz o mesmo com toda a população ribeirinha, que precisa recorrer a outros mananciais mais distantes.
Estação de bombeamento de água do rio São Francisco para irrigar plantações de frutas em um projeto perto de Juazeiro, centro de um pólo de produção e exportação de frutas, especialmente mangas e uvas, no árido nordeste brasileiro. Imagem: Mario Osava/IPS.
Além disso, a maioria dos agricultores não conta com a irrigação. Os assentamentos promovidos pelo governo há muitos anos e os agricultores tradicionais da bacia não têm acesso à água do rio, nem aos financiamentos e outras facilidades dos projetos públicos.
A monocultura dominante de árvores frutíferas força a importação de alimentos. Juazeiro e Petrolina juntas, com uma população de 625 mil habitantes, produzem menos alimentos para consumo local do que Campo Alegre de Lourdes, um município a 350 quilômetros de distância, com apenas 31 mil habitantes, comparou Santos, um técnico agrícola.
O fluxo de mercadorias, com a saída de frutas e a chegada de outros produtos de várias partes do Brasil, transformou o Mercado do Produtor de Juazeiro no segundo maior centro de comércio agrícola do Brasil, superado apenas por São Paulo, uma metrópole de 12 milhões de habitantes e 22 milhões se somada a sua grande área metropolitana.
“O pólo de fruticultura é um sistema artificial, que concentra os melhores solos e água do São Francisco em ilhas e gera a ilusão de crescimento na Grande Juazeiro e Petrolina, onde apenas 5% das terras são aptas para irrigação e só há água suficiente para 2%”, disse Roberto Malvezzi, ativista da Comissão Pastoral da Terra.
Maciela de Oliveira Silva na loja onde vende produtos da Cooperativa da Agropecuária Familiar de Mossoroca e Região, como doces, geleias e licores feitos com frutas nativas do chamado “fundo de pasto”, uma área coletiva onde os agricultores extraem frutas, produzem mel e criam cabras e ovelhas. Imagem: Mario Osava/IPS.
Alternativas adequadas
Para Malvezzi, formado em filosofia e teologia, a grande vocação econômica e produtiva do Semiárido são os pequenos animais, como cabras e ovelhas, e não a agricultura.
Um erro que lhe custou muitas crises e empobrecimento, além da destruição ambiental do Semiárido, foi a expansão histórica da pecuária na região Nordeste do Brasil, cujo interior é majoritariamente semiárido.
Há necessidade de desenvolver a cadeia industrial e comercial de caprinos, com frigoríficos e serviços como assistência técnica e vigilância sanitária, apontou Malvezzi, que nasceu e estudou Filosofia e Teologia no estado de São Paulo, mas vive no Nordeste desde 1979.
O Semiárido é a terra da agricultura familiar e, há quase três décadas, passa por um processo de transformação que busca adaptar seu desenvolvimento às condições locais, inclusive climáticas. O principal lema é “conviver com o semiárido”, o que significa rejeitar as influências coloniais e as imposições do passado.
Canal principal que abastece um projeto de irrigação com água do rio São Francisco no Semiárido brasileiro. Canais secundários e bombeamento local nos pomares completam o sistema que substituiu a irrigação por sulcos de inundação, praticamente abolida por causa do desperdício de água. Imagem: Mario Osava/IPS.
A criação de animais de pequeno porte, em vez da pecuária intensiva em água, e a captação de água da chuva de diversas formas, tanto para consumo humano e animal quanto para a produção agrícola, são algumas das formas testadas e eficazes.
No estado da Bahia, foi institucionalizada uma singularidade agrária tradicional, o “fundo de pasto”, uma grande terra coletiva, gerida para a extração de produtos nativos, como frutos, e a criação de cabras e ovelhas. A horticultura está em sólida expansão em todo o Semiárido.
A Cooperativa Agropecuária Familiar de Massaroca e Região (Coofama), no município de Juazeiro, é um exemplo de fundo de pasto, cujas geléias, licores e outros produtos de frutas nativas, como o umbu, e o mel, são comercializados na rodovia próxima e nas cidades.
“Quiosque da Umbuzada” é o nome da loja de beira de estrada na pequena cidade de Massaroca, e a Central da Caatinga, uma loja na cidade de Juazeiro, vende os produtos da Coofama e de outras cooperativas de agricultura familiar.
“As cabras sobrevivem melhor em secas prolongadas, comem folhas até de árvores altas”, disse à IPS a produtora da Coofama, Maciela de Oliveira Silva, que dirige a loja de beira de estrada, onde trabalha das 8h às 17h com um salário mínimo, equivalente a US$ 280.
Os ovos são outra produção alimentar viável e promissora no Semiárido, segundo a Associação de Pequenos Produtores de Canoa e Oliveira, liderada por Gilmar Nogueira Lino, dono de cerca de mil galinhas, também no sul de Juazeiro.
As 60 famílias da associação produziram 17.444 dúzias de ovos em 2023, registrou Lino. As galinhas são mais rápidas do que as cabras”, disse à IPS, “começam a dar renda em poucos meses e não precisam de grandes espaços”.
Na propriedade de meio hectare, o agricultor tem seus galinheiros, uma loja onde vende alimentos, bebidas e gás de cozinha, e também doou o terreno para a sede da associação. Só teve de ultrapassar o preconceito de que “criar galinhas é coisa de mulher”.
Artigo publicado originalmente na Inter Press Service.
Foto em destaque: Osnir da Silva Rubez prepara os sulcos através dos quais vai retirar água do rio São Francisco para irrigar suas plantações na ecorregião do Semiárido brasileiro. Ele é um dos poucos que se recusam a aderir ao sistema local de irrigação por gotejamento ou microaspersão, que é mais eficiente em termos de uso da água, fertilização e proteção do solo. Imagem: Mario Osava/IPS.
É correspondente da IPS desde 1978, e está à frente da editoria Brasil desde 1980. Cobriu eventos e processos em todas as partes do país e ultimamente tem se dedicado a acompanhando os efeitos de grandes projetos de segurança, infraestrutura que refletem opções de desenvolvimento e integração na América Latina.