BAHIA: Governo presente cuida da gente

Cucos, camaleões e a cidadania indiana

Cucos, camaleões e a cidadania indiana

Estratégias de subterfúgio disfarçam ações autoritárias, como a defesa da controversa lei de cidadania na Índia

por Farrah Ahmed

Há uma sutileza e uma sofisticação surpreendentes na forma como muitos regimes autoritários e nacionalistas contemporâneos alcançam seus objetivos. Aqui estão duas estratégias de subterfúgio através das quais esses governos podem se apropriar de direitos ou valores constitucionais para disfarçar suas ações nacionalistas autoritárias, ilustradas a partir da defesa por parte do governo indiano de uma controversa lei de cidadania.

Lei de cidadania nacionalista indiana

Em 2019, o partido nacionalista hindu Bharatiya Janata (Partido Popular Indiano) voltou ao poder na Índia. O nacionalismo hindu geralmente inclui o compromisso de corrigir as injustiças históricas percebidas em relação aos hindus, acabando com o que os nacionalistas consideram o “apaziguamento” em relação aos muçulmanos indianos e tornar a Índia um “Hindu Rashtra”, ou uma pátria para os hindus.

O Partido Bharatiya Janata supervisionou a promulgação da Emenda à Lei de Cidadania de 2019 (Citizenship Amendment Act em inglês, CAA), que concedeu aos imigrantes hindus, sikhs, budistas, jainistas, parsis e cristãos – mas não muçulmanos – vindos do Afeganistão, de Bangladesh e do Paquistão um caminho rápido para obter a cidadania indiana.

Os críticos temem que a CAA seja utilizada como parte de uma estratégia para excluir da cidadania aqueles que o governo desfavorece, incluindo cidadãos, residentes e imigrantes, sobretudo os muçulmanos.

Nesse contexto, o governo de Narendra Modi utilizou estratégias de subterfúgio diante da intensa, coordenada, tumultuada e múltipla oposição à CAA.

Parasitismo reprodutivo e valores constitucionais

Os parasitas reprodutores, como o cuco, deixam seus ovos para serem incubados, eclodidos e criados nos ninhos de outras aves. Eles fazem com que seus próprios ovos sejam confundidos com os de seus hospedeiros. Esse parasitismo pode causar a diminuição ou a perda total dos ovos do hospedeiro, uma vez que os ovos do parasita geralmente eclodem antes, expulsando e matando todos os ovos e filhotes do hospedeiro.

Esta primeira técnica de subterfúgio é parecida com o compromisso dos nacionalistas hindus com o laicismo. Os grupos nacionalistas hindus não costumam condenar o laicismo. Ao invés disso, eles se apresentam como verdadeiros defensores e intérpretes dele.

Ao defender a CAA, o governo recorreu ao laicismo em várias ocasiões, fazendo uso do discurso público e de procedimentos judiciais para disseminar uma visão nacionalista hindu alternativa do laicismo em células estratégicas.

O resultado esperado era que, sem qualquer esforço direto da emenda constitucional, a versão pró-nacionalista do laicismo – a exemplo dos ovos do cuco – seria incubada com sucesso por outros atores constitucionais e acabaria por substituir o laicismo tal como ele é atualmente entendido na Constituição indiana.

Camuflagem constitucional

Nem todos os subterfúgios animais têm um objetivo complexo e de longo prazo do parasita reprodutor. A camuflagem do camaleão é usada temporariamente para escapar da detecção, especialmente de predadores que possam lhe representar uma ameaça. O governo indiano usou a liberdade religiosa de forma semelhante: como camuflagem para disfarçar a verdadeira natureza da CAA e evitar desafios daqueles que – sem uma camuflagem – a ela se oporiam.

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O governo afirma que a CAA reconhece “a perseguição religiosa em estados vizinhos específicos” e “representa uma proteção dos direitos [e] da liberdade de religião, que é um direito humano inestimável”.

Não há dúvida de que existe perseguição religiosa no Afeganistão, Paquistão e Bangladesh, mas outras declarações do governo denunciaram a tentativa de camuflagem. O ministro do Interior, Amit Shah, fez várias declarações nas quais deixou claro que o principal objetivo da CAA é ajudar a filtrar cidadãos “indesejáveis”, ao mesmo tempo em que retém cidadãos e migrantes desejáveis.

A técnica de camuflagem de “liberdade religiosa” não foi tão convincente, já que o que os críticos da CAA temiam era justamente que ela fosse usada para filtrar muçulmanos e outras pessoas que o governo considerasse indesejáveis.

Supostos precedentes

O governo também defendeu que a CAA “refletisse nosso compromisso nacional de longa data com as questões de direitos humanos decorrentes da tragédia da Partição da Índia”.

O governo tenta estabelecer uma continuidade entre a CAA e acordos internacionais de referência sobre minorias – em particular o Pacto Nehru-Liaquat – para reforçar sua afirmação de que o CAA está em concordância com os padrões de direitos humanos.

Mas não há uma forma plausível de entender a CAA como parte desses acordos ou tampouco como uma extensão deles. O Pacto Nehru-Liaquat e a CAA adotam posturas contraditórias a respeito da relevância da religião para a obtenção da cidadania.

Como compromisso central do pacto, “os governos da Índia e do Paquistão concordam solenemente que cada um deles garantirá, às minorias em todo o seu território, completa igualdade de cidadania, independentemente de sua religião”.

Descrever este compromisso central como o precursor da CAA, já que a lei expressa de maneira explícita que a religião é um atalho para a rápida obtenção da cidadania, é uma perversão. O pacto é apenas um suposto precedente para a CAA.

Os violentos conflitos em Delhi e a pandemia de covid-19 amorteceram consideravelmente os protestos contra a CAA. Até o momento em que este texto foi escrito, a Suprema Corte ainda não havia revisado as petições que contestavam a constitucionalidade da CAA – provavelmente utilizando sua atual linha de estratégia: a de evitar conflitos e controvérsias por meio de atrasos.

Sendo assim, ainda é cedo para avaliar o efeito das estratégias de subterfúgio do governo ou até mesmo para avaliar o sucesso das tentativas legais e políticas de responder a essas estratégias.

Espera-se que esta análise da estratégia de um governo nacionalista – baseada em um artigo mais longo, publicado em uma revista acadêmica – possa oferecer alguns insights sobre como estratégias de subterfúgios de outros governos autoritários e nacionalistas podem ser descobertas e comprovadas.

Farrah Ahmed é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Melbourne, na Austrália, e professora visitante da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.

*Foto em destaque: Manifestação em Jaipur, na Índia (iStock)

**Publicado originalmente em IPS – Inter Press Service | Tradução de Marcos Diniz

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