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Direito ao aborto vence a ofensiva da direita moralista no Brasil

Direito ao aborto vence a ofensiva da direita moralista no Brasil

Uma multidão saiu às ruas em São Paulo no dia 15 de junho contra o projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que amplia a criminalização do aborto no Brasil. A rejeição maciça nas ruas, nas redes sociais e os manifestos de múltiplos setores e personalidades inviabilizaram a proposta que pretende criminalizar o aborto como homicídio quando a gestação ultrapassar 22 semanas. Imagem: Paulo Pinto/Agência Brasil.

POR MARIO OSAVA

RIO DE JANEIRO – O aborto tornou-se o cavalo-de-batalha político no Brasil, por opção da extrema-direita, que sofreu uma surpreendente derrota onde parecia predominar na mobilização popular e, consequentemente, no Congresso Nacional legislativo.

Manifestações nas ruas, protestos massivos nas redes sociais e a rejeição de várias instituições e personalidades, inclusive religiosas, inviabilizaram o projeto de lei (PL) com o qual essa direita moralista e antiética pretendia criminalizar a interrupção da gravidez de mais de 22 semanas como homicídio.

“Não foi apenas a volta às ruas, o mais importante é o amplo alcance do repúdio ao projeto de lei, que não aconteceu por acaso, mas devido ao trabalho silencioso, sistemático e contínuo do feminismo que luta pelo aborto no Brasil e não desistiu”, disse Sonia Corrêa, coordenadora do Observatório Internacional de Sexualidade e Política.

Isso, ponderou à IPS no Rio, apesar das ações adversas de alguns governos, como o anterior do ex-presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro (2019-2022).

A proposta do deputado Sóstenes Cavalcanti, do Partido Liberal liderado por Bolsonaro, foi apresentada em 17 de maio de 2024, e amplamente rejeitada após se aprovado, em 12 de junho, o caráter de urgência de sua tramitação na Câmara dos Deputados, uma manobra que poderia resultar em sua aprovação nos próximos dias.

“Gênero, sexualidade e reprodução são temas centrais no projeto de sociedade da ultra direita, que não demonstra nenhum disposição em desistir”, Sonia Corrêa.

“O PL da morte crucifica inocentes”, denunciou um grupo de 150 freiras católicas e evangélicas.

Milhares de pessoas gritaram “Meninas não são mães, estupradores não são pais” nas ruas de várias cidades, repetindo o slogan de um movimento feminista que destaca as meninas de até 14 anos como a maioria das vítimas de estupro e as que chegam às 22 semanas de gestação sem conseguir um aborto, embora legal nestes casos.

Elas seriam, portanto, as mais criminalizadas, vítimas do estuprador e da lei, se o projeto de lei, também apelidado de “PL da gravidez infantil” e “PL do estupro”, for aprovado.

A pena de seis a 20 anos de prisão, maior que a de seis a 10 anos para estupro, funcionou como mais um forte argumento contra o Projeto de Lei 1904, número da iniciativa.

Mais de 17.316 meninas de até 14 anos tiveram filhos em 2021, segundo dados do Sistema Único de Saúde. É um número que está diminuindo, mas lentamente.

Ofensiva em várias frentes

A ofensiva moralista da extrema-direita, intensificada desde a eleição presidencial de Bolsonaro em 2018, não se limita a ataques à legislação em vigor desde 1940, que assegura o direito ao aborto em casos de estupro e risco de morte materna, ampliado em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal para o de anencefalia fetal.

Os governos estaduais aprovaram leis locais e outras barreiras contra o aborto legal.

Um exemplo é a lei do estado de Goiás, no centro-oeste do Brasil, que obriga as mulheres grávidas a ouvir os batimentos cardíacos do feto na tentativa de convencê-las a desistir do aborto, destacou Laura Molinari, co-fundadora e co-coordenadora do Movimento Ni Presa Ni Muerta.

“As dificuldades impostas fazem com que muito poucos abortos sejam registados legalmente, pouco mais de 2.000 por ano”, disse à IPS no Rio de Janeiro. Em 2023, o Ministério da Saúde registrou 2.687.

Em São Paulo, o governo fechou os serviços de aborto legal no final de 2023 no hospital Vila Nova Cachoeirinha, um dos poucos que atendia casos com mais de 22 semanas de gestação.

Além disso, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo suspendeu por seis meses o registro de dois médicos acusados de negligência e tortura por interromperem a gravidez de mulheres com autorização judicial para tal.

Barreiras ao aborto legal

Isso gera insegurança jurídica e medo entre os médicos e outros profissionais de saúde envolvidos nessas operações, lamentou Molinari. Muitos médicos recusam-se a efetuar abortos, mesmo legais, alegando conflito de consciência.

Para piorar a situação, o Conselho Federal de Medicina, órgão máximo de regulamentação da profissão, emitiu uma resolução em março passado proibindo a prática da assistolia, um medicamento para interromper a atividade cardíaca, em abortos de fetos com mais de 22 meses.

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Essa proibição “não é ética e está em contradição com as provas médicas”, reagiu a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo). O procedimento tem, de fato, a aprovação da Organização Mundial de Saúde.

O Supremo Tribunal Federal do Brasil suspendeu a validade da resolução do Conselho Federal de Medicina, que também adotou medidas contra as evidências científicas sobre a Covid-19, corroborando o negacionismo ostensivo de Bolsonaro durante a pandemia.

O aborto legal também sofre restrições na justiça. Foram vários os casos de juízes que negaram o direito, que na realidade não depende de autorização judicial, e tentaram convencer as meninas a manter a gravidez.

Casos de meninas de 10 ou 11 anos que tiveram o aborto legal negado perto de suas casas e tiveram que viajar para outros estados para realizá-lo, tiveram grande repercussão durante o governo Bolsonaro, mesmo com autoridades do governo fazendo lobby contra o exercício de um direito.

“Gênero, sexualidade e reprodução são temas centrais no projeto de sociedade da ultra direita, que não mostra nenhuma disposição para desistir”, resume Corrêa.

“E se fosse a sua filha?”, perguntava um dos cartazes empunhados por mulheres durante um protesto em Brasília, no dia 13 de junho, em defesa do direito ao aborto para meninas grávidas de estupradores e que poderiam ser presas se interrompessem a gravidez após 22 semanas, caso fosse aprovado um projeto de lei que as classificaria como assassinas. Imagem: Valter Campanato/Agência Brasil.

Progresso lento mas constante

Uma análise do seu Observatório concluiu, no entanto, que o pior momento para o aborto no Brasil não foi durante o governo extremista de Bolsonaro, mas em 2010, quando Dilma Rousseff, a primeira mulher presidente do país, foi eleita.

Desde então, “as opiniões pró-aborto aumentaram lentamente, mas de forma constante, mesmo sob Bolsonaro, porque o feminismo persistiu em sua ação”, comemorou Corrêa.

“A resistência gerou consciência, a sociedade não aceita retrocessos”, avalia Joluzia Batista, articuladora política do Centro Feminista de Estudos e Assessoria.

Apesar da situação política adversa e de setores da oposição, na medicina e no judiciário, por exemplo, existe um serviço de aborto por telessaúde, com orientação remota, promovido pelo hospital da Universidade Federal de Uberlândia, na região central do Brasil, exemplificou à IPS por telefone de Brasília.

Além disso, instituições como a Defensoria Pública têm sido muito ativas para fazer valer o direito das meninas e mulheres pobres ao aborto legal.

No entanto, alguns danos da ofensiva ultraconservadora permanecem, lamentou Batista. É o caso da educação, onde Bolsonaro e seus seguidores inseriram sua “escola sem partido”, que “aboliu a educação sexual e silenciou famílias e professores”, espalhando um clima de denuncismo.

Permanece o medo entre professores e funcionários públicos de uma nova criminalização, pelo menos por algum tempo. As questões sexuais, como o aborto, continuam sendo tabu, sublinhou.

Mas a tentativa de equiparar o aborto ao homicídio na legislação “foi longe demais” e dividiu os deputados de extrema-direita, incluindo os membros religiosos mais ativos desta corrente política, os evangélicos.

Os seus líderes anunciaram que ainda tentarão fazer passar o projeto de lei na Câmara dos Deputados nos próximos seis meses, mas a rejeição do projeto pela opinião pública e mesmo entre os legisladores faz prever o fim do projeto.

O erro foi tentar uma pena desproporcional de até 20 anos para quem já foi vítima de violência sexual e, em geral, justifica não ter feito o aborto antes da 22ª semana devido às barreiras impostas e, no caso da maioria das crianças, até por desconhecer o comportamento, as leis e as questões mínimas da gravidez.

As pesquisas mostram que uma maioria decrescente de brasileiros condena o aborto, mas uma maioria mais acentuada e crescente repudia a prisão de mulheres que interrompem a gravidez. Eram 52% em 2018 e subiram para 59% em 2023, segundo pesquisa do Instituto Democracia.

Artigo publicado originalmente na Inter Press Service.

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