Direito coletivo à terra e violência afetam quilombolas no Brasil

Direito coletivo à terra e violência afetam quilombolas no Brasil

Apenas 12,6% do total de quilombolas residem nos 494 territórios legalizados como sua posse, enquanto o restante vive em insegurança territorial.

POR MÁRIO OSAVA

RIO DE JANEIRO – Doze tiros no rosto acabaram com a vida de Bernardete Pacífico, líder quilombola, como são chamados os descendentes de escravos que lutam pelo direito coletivo à terra, reconhecido pela Constituição brasileira desde 1988.

O assassinato, cometido por dois homens que usavam capacete, ocorreu no dia 17 de agosto, dentro do quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, município de 114 mil habitantes da região metropolitana de Salvador, capital do estado da Bahia, no Nordeste brasileiro.

Pacífico tinha 72 anos e era símbolo da cultura negra e da resistência, assim como Yalorixá, sacerdotisa do Candomblé, uma das religiões de base africana, que sofre frequentes ataques de intolerância.

Ela também se tornou símbolo da tragédia, já que seu filho Flávio dos Santos foi morto a tiros em 2017, aos 36 anos, em um crime ainda sem autores conhecidos.

A violência aparentemente se deve à disputa de terras. A comunidade Pitanga dos Palmares ocupa 854 hectares com cerca de 300 famílias que se dedicam à horticultura. As terras da comunidade quilombola são reconhecidas desde 2004, mas ainda carecem de título de propriedade coletiva.

Essa é uma situação que incentiva conflitos. Esse quilombo desperta o interesse de madeireiros, de proprietários de terras que reivindicam a propriedade de parte da área, e de uma empresa que pretende instalar ali um aterro sanitário, segundo a polícia local.

Duas mulheres choram em protesto de mães negras contra a violência contra seus filhos, principais vítimas de homicídios no Brasil. Os quilombolas, parcela da população negra descendente de escravos que vive coletivamente, principalmente no meio rural, sofrem ataques e assassinatos frequentes porque, além do racismo, enfrentam conflitos por terra. Imagem: Paulo Pinto/Agência Brasil-Fotos Públicas

Um legado da escravidão

Quilombolas é o nome dado no Brasil aos afrodescendentes que se organizam em grupos de vida coletiva, o quilombo, geralmente em locais originalmente isolados onde seus ancestrais escravizados se refugiaram quando conseguiram fugir de seus algozes. O país foi o destino do maior número de africanos submetidos à escravidão, perto de quatro milhões, estima o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O Brasil também foi o último país a abolir a escravatura, em 1888, e não adotou políticas de reparação ou inclusão para ex-escravos trazidos à força da África, principalmente entre 1650 e 1780, “sistematicamente expulsos ou deslocados do local onde escolheram viver”, segundo a antropóloga Ilka Boaventura Leite.

Os quilombos, nascidos como refúgios para aqueles que conseguiram fugir da escravidão, aos poucos se tornaram locais de resistência e de vida comum para os hoje chamados quilombolas.

Pela primeira vez, o IBGE registrou os quilombolas no censo de 2022, concluído em maio de 2023. Identificou 1.327.802 pessoas que se autoidentificaram como quilombolas, o que corresponde a 0,65% dos 203 milhões de habitantes do país.

Nesse mesmo censo, 55,9% da população total se autodefiniam como afro-brasileiros, somando 10,6% de negros e 45,3% de pardos.

A Bahia é, entre os 26 estados brasileiros, o que abriga o maior número, 397.059, e por isso também concentra os casos de violência por conflitos fundiários e religiosos nesse grupo populacional.

Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), da qual Bernardete Pacífico fazia parte, registrou mais de 30 assassinatos de lideranças quilombolas nos últimos 10 anos no Brasil.

Os conflitos por terras tendem a se agravar após o anúncio do atual governo, liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, do esquerdista Partido dos Trabalhadores, de retomar a certificação e titulação das terras quilombolas, interrompido por seu antecessor Jair Bolsonaro, de extrema-direita.

Pódio do II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas, com a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, em Brasília em junho de 2023. A liderança feminina do movimento dos habitantes de comunidades de descendentes de escravos é fortalecida pela religiosidade de matriz africana, com muitas sacerdotisas. Imagem: Antonio Cruz/Agência Brasil

Direito à propriedade negado

O Censo apontou que apenas 12,6% do total de quilombolas residem nos 494 territórios legalizados como sua posse, enquanto o restante vive em insegurança territorial. O IBGE iniciou o censo com base na existência de 5.972 localidades com população quilombola.

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“A obtenção do título de propriedade é o objetivo central da nossa luta, num processo que começa com a certificação da identidade quilombola, seguida pelo reconhecimento da terra e sua titulação”, explicou Rodrigo Marinho, da Equipe de Articulação e Assessoria ao Comunidades Negras (Eaacone).

Sua organização atua no Vale do Ribeira, vasta região florestal na zona sul de São Paulo, onde existem 34 quilombos. “A maioria foi reconhecida, mas não avança. Há uma comunidade reconhecida desde 2006, sem nenhum progresso desde então”, lamentou Marinho à IPS por telefone de Eldorado, no coração do Vale.

Eldorado possui 2.245 quilombolas em 13 comunidades, o que corresponde a 17,2% do total de seus 13.069 habitantes. Mas é outro município da região, Iporanga, que concentra a maior proporção desses afrodescendentes, 35,2% da população total de 4.046 habitantes.

O Vale do Ribeira é conhecido por esta concentração de quilombolas, sem a violência atual que pode ser letal na Bahia, mas há conflitos e ameaças de agressão e morte, alertou o articulador da Eaacone.

Existem três desafios principais para essas comunidades. A primeira, as ameaças de invasão por grandes projetos de mineração, turismo, hidrelétricas e plantações de monoculturas madeireiras como o eucalipto, adoçadas como “desenvolvimento” pelas grandes empresas, destacou.

A segunda são as dificuldades de obtenção do título de propriedade, o que representaria uma proteção aos quilombos. O processo ficou paralisado durante o governo Bolsonaro (2019-2022) que sempre negou os direitos dos povos indígenas e tradicionais, e nomeou Sergio Camargo, um homem negro que rejeita políticas favoráveis ​​aos afrodescendentes, para dirigir a Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura que certifica comunidades quilombolas.

A Constituição Brasileira, aprovada em 1988, determina que “os remanescentes das comunidades quilombolas são reconhecidos como propriedade definitiva das terras que ocupam” e que o Estado deve fornecer títulos de propriedade. Mas foi só em 1995 que o processo de titulação começou e, como registou o censo, beneficiou uma pequena minoria da população planeada. 

Além disso, existem áreas conhecidas como quilombos com invasores que devem ser retirados, com os previsíveis conflitos que isso acarreta.

Ambientalismo controvertido

Um terceiro desafio dos quilombolas é a questão ambiental. Embora seja reconhecido seu papel positivo na preservação da Mata Atlântica, que ocupa grande extensão do litoral leste do Brasil e tem sua maior área conservada no Vale do Ribeira, as autoridades ambientais reprimem certas práticas agrícolas ancestrais e técnicas de conhecimento tradicional , lamentou Marinho.

Ele deu como exemplo a chamada “coivara”, nome indígena para a queima limitada e controlada de vegetação para preparar a terra que os quilombolas adotaram dos colonos originais, e culturas permanentes, como banana e pupuna (Bactris gasipaes), palmeira que recebe o nome de chontaduro na Colômbia e pijuayo no Peru.

Para avançar no problema central, o territorial, o movimento quilombola discute uma campanha nacional para que o governo defina um plano com metas de curto, médio e longo prazo para titulação de terras, com orçamento e órgãos competentes para a tarefa, concluiu Marinho.

Artigo publicado originalmente na Inter Press Service.

Foto de capa: Marcha do movimento negro contra a violência policial, realizada na cidade de São Paulo no dia 24 de agosto, em protesto contra o assassinato de Bernardete Pacífico, líder dos descendentes de escravos, baleada com 12 tiros na Bahia, estado do Nordeste do Brasil, com a maior população afrodescendente do país. Imagem: Paulo Pinto/Agência Brasil

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