A luta contra o trabalho precário por aplicativos no Brasil

A luta contra o trabalho precário por aplicativos no Brasil

Entre março de 2020 e julho de 2021, no auge da pandemia da Covid-19, ocorreram 308 mil internações por acidentes de trânsito, 54% eram de motociclistas.

POR MÁRIO OSAVA

RIO DE JANEIRO – Daniel tenta há 14 meses recuperar a perna direita quebrada em um acidente de trabalho, quando trabalhava como entregador de mercadorias em uma cidade praiana localizada a pouco mais de 100 quilômetros do Rio de Janeiro, no sudeste do Brasil.

A motocicleta, seu meio de transporte e instrumento de trabalho, é responsável por 36% das mortes em acidentes de trânsito no Brasil, que totalizaram 32.174 em 2022, segundo dados preliminares do Ministério da Saúde, o que tende a aumentar quando os dados são consolidados.

A tíbia quebrada, outras duas fraturas e suas complicações obrigaram Daniel a fazer duas cirurgias, com um mês de internação e a conviver com um aparelho de metal para apoiar a perna durante a convalescença. Aos 49 anos, ele vive frugalmente, graças à ajuda da namorada e dos amigos, dada a impossibilidade de trabalhar.

Foram quase cinco anos como entregador, inicialmente de bicicleta, depois de moto emprestada, até conseguir comprar a sua própria usada por pouco mais de US$ 700.

Devido à pandemia de Covid-19, ele decidiu se mudar em 2020 para Saquarema, balneário de cerca de 90 mil habitantes, onde um carro o atropelou em uma esquina em julho de 2022.

“Tive medo de perder a perna. Graças a Deus o serviço público de saúde funciona razoavelmente nesta cidade”, disse à IPS por telefone daquela localidade.

A gasolina dobrou de preço e a manutenção dos carros também. Os custos representam 75% da nossa receita bruta. Os impostos também aumentaram e, no nosso caso, é difícil evitar multas de trânsito. Mas a plataforma só aumentou em 10% o que nos paga desde a pandemia. Miguel, 56 anos, motorista de aplicativo.

A transportadora para a qual trabalhava “sem contrato, pagava uma ninharia por cada entrega”, menos do que o equivalente a um dólar, mas ele preferia isso às grandes empresas de comércio eletrônico e entrega de aplicativos que o empregaram antes. Questões de saúde alimentaram essa decisão.

“Obrigam você a fazer 50 ou 60 entregas por dia, mesmo com chuva e tempestade; trabalhar noutra cidade onde não você mora e não sabe”, justificou. “Eles pagam melhor, eu ganhava cerca de 1.800 reais (360 dólares) por mês, mas também sem contrato e sem direitos”, disse.

O seguro que a lei exige que as empresas ofereçam aos seus “colaboradores”, pouco ajudou no seu caso. Dos 30 mil reais (6 mil dólares) de seguro, pagaram-lhe apenas 1.200 reais (240 dólares), “depois de muita insistência”, lembrou. “Tornou-se um negócio para a empresa que mantém a maior parte dos seguros”, denunciou.

É um drama adicional para os motociclistas, as maiores vítimas dos acidentes de trânsito. “É o que mais se vê no hospital onde estive, lesões em acidentes de moto”, disse Daniel, que decidiu abandonar esse tipo de veículo e tentar um pequeno negócio alimentar quando estiver totalmente recuperado.

Estatísticas do Ministério da Saúde revelam que de março de 2020 a julho de 2021, no auge da pandemia da Covid-19, ocorreram 308 mil internações por acidentes de trânsito, 54% eram motociclistas.

Centenas de carros percorreram avenidas centrais de Brasília para protestar contra um projeto de lei que buscava restringir o transporte por aplicativos no Brasil. Inicialmente os motoristas exigiam liberdade para se dedicarem à atividade que substitui os táxis, agora muitos apoiam uma norma que impõe condições dignas ao seu trabalho, com direitos trabalhistas, previdenciários e de saúde. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Desemprego multiplica motoristas de aplicativos

Daniel foi um dos estimados 1,66 milhão de entregadores e motoristas de aplicativos trabalhando no Brasil que constituem o exemplo mais proeminente da precariedade das relações de trabalho, fomentada pelas tecnologias digitais.

Desse total, 76,7% são motoristas cadastrados em plataformas como Uber, e o restante são entregadores que geralmente utilizam motocicletas, segundo estudo da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) e da não governamental Centro Brasileiro de Análises. e Planejamento (Cebrap).

A Amobitec reúne grandes empresas de aplicativos transnacionais como Amazon, Uber e Ifood e algumas nacionais. Outra associação, o Movimento de Inovação Digital (Mid), representa mais de 150 empresas de entrega e comércio eletrônico.

As péssimas condições de trabalho levaram os motoristas da plataforma a promoverem uma greve em maio de 2023, para exigir a quase duplicação do pagamento mínimo de 10 reais (dois dólares) por cada entrega, ou seja, um aumento de 80%, melhor remuneração por cada quilômetro percorrido e câmeras de vídeo em todos os veículos, além de outros direitos.

O movimento chamou a atenção de políticos para o setor. O governo criou um grupo de trabalho para estudar mecanismos para regulamentá-lo. No legislativo, o Congresso Nacional começou a discutir uma lei para regular a atividade dessas plataformas digitais no transporte de pessoas e de mercadorias.

A reação à precariedade do trabalho no setor incluiu um encontro entre os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e os presidentes dos Estados Unidos, Joe Biden, no dia 20 de setembro em Nova York, para discutir uma “coalizão” visando promover o trabalho digno no setor dos conhecidos internacionalmente como riders, de forma a garantir os direitos laborais no universo das mensagens e das aplicações digitais.

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Antonio confia em medida parlamentar. “Já reconheceram a nossa profissão e a necessidade de regulamentá-la. Se aprovarem as nossas diretrizes, melhor ainda, para melhorar a renda, ter alguma segurança e direitos previdenciários, por exemplo”, disse à IPS dentro de seu carro no Rio de Janeiro.

Os entrevistados para este artigo pediram para serem citados por pseudônimos, temendo que suas declarações levassem a punições por parte de empresas de plataforma que muitas vezes proíbem críticas, disseram.

“Trabalho na Uber há mais de seis anos, posso ser excluído por uma simples reclamação de um passageiro, mesmo que falsa, porque a empresa decide sem me ouvir”, conta Antonio, 48 anos e pai de três filhos, todos agora adultos e independentes.

Motoristas de automóveis do serviço de transporte de passageiros por meio de plataformas digitais manifestaram-se na sede da Câmara Municipal do Rio de Janeiro para pressionar os vereadores a reconhecerem sua profissão e aprovarem medidas favoráveis, diante da pressão contra esta atividade dos taxistas desta cidade, no sudeste do Brasil. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Esperança na regulamentação

“Se for aprovada uma boa legislação teremos um contrato e um certificado que comprovam os nossos rendimentos, o que é necessário para as operações bancárias e uma reforma adequada, coisas que não temos agora”, disse.

“A paralisia (ele evita a palavra greve) é o nosso grande argumento. Em maio teve um apoio de 60%, mostrando que unidos temos força. Imaginem uma greve de dois ou três dias, o caos nas cidades e a dor no bolso dos passageiros e das empresas”, argumentou para explicar a pressão sobre o poder político.

Como ex-motorista de caminhão e micro-ônibus, Antonio conhece bem o fator político de sua profissão. Ele ingressou na Uber depois que o governo local proibiu o negócio de transporte de passageiros em micro-ônibus em grande parte do Rio de Janeiro.

Um escândalo de corrupção, envolvendo governantes e empresas de transporte urbano na última década, convenceu Antonio de que havia cumplicidade entre o governo e os empresários de ônibus para eliminar a concorrência dos micro-ônibus. A informalidade do transporte nesses veículos menores facilitou a sua exclusão.

Para Miguel, de 56 anos, com dois filhos e um ainda dependente, o principal problema é o que a empresa lhe paga, quase o mesmo que há quatro anos, quando se tornou “motorista de aplicativo”.

“A gasolina dobrou de preço e a manutenção dos carros também. Os custos representam 75% da nossa receita bruta. Os impostos também aumentaram e, no nosso caso, é difícil evitar multas de trânsito. Mas a plataforma só aumentou em 10% o que nos paga desde a pandemia”, reclamou.

A parte que a empresa fica aumentou bastante, era cerca de 25% do que o passageiro pagava no início e agora chega até 40%.

“Sem melhor remuneração, o serviço se deteriora. Hoje já rejeitamos algumas viagens que não valem mais a pena. Quem trabalha com carro alugado está em situação pior, porque não tem recursos para comprar um”, lamentou Miguel em entrevista presencial em uma rua do Rio de Janeiro, perto da famosa Baía de Copacabana.

O motorista não se arrepende de ter deixado o emprego de enfermeiro devido à informalidade do transporte em plataforma, pois os salários no setor da Saúde também são muito baixos. Agora, apesar da precariedade do seu trabalho, ele consegue manter um nível de vida razoável, embora tenha de trabalhar mais de 10 horas por dia.

Além das promessas do governo e do Congresso, entregadores e motoristas de aplicativos estão obtendo decisões favoráveis ​​na Justiça do Trabalho, que os reconhece como empregados com direitos trabalhistas e não “parceiros” informais como querem as empresas da plataforma.

Em 19 de setembro, um juiz de São Paulo ordenou que a Uber contratasse formalmente todos os seus motoristas e multou-a em um bilhão de reais (US$ 200 milhões) por danos morais coletivos. Mas é improvável que a decisão seja mantida em tribunais superiores.


FOTO DE CAPA: Motoboys, organizados em vários sindicatos e em uma federação nacional, durante um de seus protestos em Brasília contra o aumento dos preços dos combustíveis e em defesa de sua profissão. Atualmente, seus sindicatos reivindicam taxas mais elevadas pelos seus serviços e melhores condições de trabalho, principalmente em relação à segurança, uma vez que são as principais vítimas de acidentes fatais de trânsito. Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

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