O aborto medicamentoso está ampliando os direitos das mulheres na Argentina

O aborto medicamentoso está ampliando os direitos das mulheres na Argentina

Após anos de luta, o aborto foi retirado do Código Penal argentino em janeiro de 2021, permitindo que qualquer mulher tenha acesso gratuito ao procedimento até a 14ª semana de gravidez, sem a necessidade de justificar sua decisão

Por Daniel Gutman

BUENOS AIRES – Viviana Mazur é médica no Hospital Santojanni, em Mataderos, um bairro de classe trabalhadora em Buenos Aires. Lá, ela testemunhou os avanços nos direitos das mulheres na Argentina, onde até 2020 o aborto era permitido apenas em duas circunstâncias, enquanto agora basta uma manifestação de vontade até a 14ª semana de gravidez.

“Hoje, o que vemos no hospital é que a maioria das mulheres procura ajuda muito precocemente; em muitos casos, elas procuram ajuda assim que percebem um atraso na menstruação. Isso permite que quase todos os abortos sejam resolvidos com medicamentos, na própria casa da mulher, com aconselhamento e controle médico”, relata.

Mazur, que também é coordenadora de Saúde Sexual no governo da Cidade Autônoma de Buenos Aires, explica que as vantagens do aborto com medicamentos em comparação ao tradicional curetagem uterina e outros métodos abortivos são muitas e de diferentes perspectivas.

“É menos traumático e menos arriscado para a mulher, e é menos custoso para o sistema de saúde pública”, diz ela à IPS.

Na Argentina, como resultado de anos de luta do movimento pelos direitos das mulheres, o aborto foi retirado do Código Penal a partir de janeiro de 2021. Na fase final, manifestações massivas de mulheres – e também de homens – portando lenços verdes tomaram as ruas, no que se tornou um símbolo da América Latina pelo direito de decidir.

Desde então, a Lei 27.610 de Acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez permite que qualquer mulher tenha acesso ao aborto até a 14ª semana de gravidez de forma gratuita e sem a necessidade de explicar os motivos de sua decisão.

Antes da vigência da lei, o acesso ao aborto era fortemente restrito: uma decisão da Suprema Corte de Justiça em vigor desde 2012 autorizava o que era chamado de Interrupção Legal da Gravidez (ILE), apenas em caso de estupro ou quando a gravidez colocasse em risco a vida ou a saúde da mulher.

Mais abortos registrados em 2022

Em 2022, o primeiro ano completo de vigência da lei que permite a interrupção voluntária da gravidez, foram realizados 96.664 abortos no sistema de saúde público da Argentina, que possui 46 milhões de habitantes, segundo dados oficiais. Isso representa um aumento significativo em relação a 2021, quando foram realizados 73.847 abortos, em parte devido ao aumento de abortos no sistema público de saúde.

“Mais de 85% dos abortos em 2022 foram realizados com medicamentos”, informa à IPS a diretora nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva Valeria Isla.

“A boa notícia é que hoje são práticas seguras no âmbito do sistema de saúde. No entanto, como até recentemente a maioria dos abortos era clandestina, acreditamos que é cedo para tirar conclusões sobre o número. As estatísticas ainda precisam se estabilizar”, ressalta.

Isla explica que sua diretoria realiza treinamentos para fornecer atendimento de aborto a profissionais de saúde em todo o país e distribui medicamentos para realizar a prática, além de equipamentos para a aspiração intrauterina manual, um procedimento médico de consultório menos arriscado que a curetagem uterina, que é realizada em um centro cirúrgico.

Nesse sentido, um grande avanço ocorreu desde 2022 com a incorporação da mifepristona ao sistema de saúde argentino, juntando-se ao misoprostol, que já era usado há anos para realizar abortos com medicamentos.

A combinação de mifepristona e misoprostol, chamada de “combipack”, torna os abortos mais eficientes e menos dolorosos para as mulheres, e de fato a combinação desses dois medicamentos para a interrupção da gravidez é um dos esquemas recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2005.

No ano passado, a OMS ratificou ambos os medicamentos como essenciais para fornecer serviços de saúde de qualidade, e confirmou sua eficácia e segurança para o aborto.

Isla esclarece que desde o ano passado o governo nacional distribui mifepristona nos hospitais públicos, graças a uma doação do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).

Desde março deste ano, a mifepristona está disponível também para o sistema de saúde privado argentino, desde que a Administração Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica (ANMAT) autorizou sua venda em farmácias.

Isso permitiu que o “combipack” começasse a ser usado nos últimos meses também no sistema de saúde privado, onde as mulheres agora têm acesso facilitado ao aborto.

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“No dia a dia, a incorporação da mifepristona tem sido muito importante para tornar o aborto mais fácil para as mulheres, porque permite o uso de menos misoprostol, reduz os efeitos colaterais e permite que todo o processo seja realizado em casa, com controle prévio e posterior”, relata Florencia Grazzini, assistente social em uma clínica de atenção primária no município de Lanús, nos arredores de Buenos Aires.

Grazzini começou a acompanhar mulheres que precisavam de acesso ao aborto muito antes da legalização da interrupção voluntária da gravidez. Ela trabalhou por anos na clínica Kimelú, formada por ativistas feministas que atendiam a região sul da chamada Grande Buenos Aires.

Ela afirma que o acesso ao aborto foi facilitado enormemente agora, mas adverte que para algumas mulheres a interrupção da gravidez ainda é um estigma.

“Apesar de não ser mais necessário justificar a decisão para gestações de até 14 semanas, ainda vemos justificativas nas consultas: chamamos isso de ‘discurso da causa'”, aponta Grazzini, que acrescenta: “Trabalhamos para que as pessoas possam compartilhar sua situação da maneira como sentem, mas não queremos que sintam que é necessário esclarecê-la para ter acesso a uma interrupção da gravidez”.

Nesse sentido, ela explica que na clínica é deixado claro para as mulheres que elas não precisam explicar por que desejam fazer o aborto, embora a assistência psicológica seja fornecida àquelas que a solicitam.

Além disso, o aborto induzido às vezes encontra resistência dos próprios profissionais de saúde. Isso foi refletido em maio, quando o Ministério da Saúde atualizou o Protocolo de atendimento e pediu para “eliminar todas as exigências que não sejam clinicamente necessárias para a segurança da prática do aborto”.

Especificamente, foi solicitada a eliminação de períodos de espera ou reflexão e a não exigência de consentimento dos pais ou parceiros.

A necessidade de acompanhamento

Outro dado que mostra que a legalização do aborto não eliminou todas as barreiras os dados da Socorristas en Red, uma organização de mulheres que oferece acompanhamento em todo o país para mulheres que precisam de um aborto.

Em 2022, a rede recebeu 13.292 ligações de mulheres que queriam interromper suas gravidezes. Dessas, apenas 10% fizeram o aborto no sistema de saúde, e o restante o fez de forma autônoma. A organização forneceu assistência psicológica, informações, instruções, mensagens de WhatsApp, chamadas telefônicas, companhia virtual e presencial de socorristas. Com todos esses recursos, as mulheres encontraram mais conforto do que no sistema de saúde.

Essa situação é agravada pela visível desigualdade no acesso ao aborto em diferentes áreas do país.

Embora os hospitais e centros de saúde públicos que realizam abortos tenham chegado a 1.793 em 2022 – em comparação com menos de 1.000 em 2021 -, em algumas províncias a oferta é muito limitada. Nas províncias do norte de Santiago del Estero e Chaco, por exemplo, há apenas oito e nove instituições de saúde que realizam abortos.

“Em alguns lugares há certa resistência por parte dos funcionários e falta de conhecimento entre os colegas de trabalho sobre o tratamento ambulatorial com medicamentos”, comenta Ana Morillo, assistente social que trabalha na província de Córdoba, no centro do país.

Morillo, que é ativista e faz parte da Rede de Profissionais pelo Direito de Decidir e também da organização Católicas pelo Direito de Decidir, afirma que o trabalho de incidência do movimento pelos direitos das mulheres conseguiu que Córdoba seja hoje uma das províncias com maior acesso, com 180 hospitais e centros de saúde que realizam abortos.

“As maiores desigualdades ocorrem entre as cidades e as áreas rurais, onde é muito mais difícil ter acesso a um aborto. É nessas disparidades que temos que trabalhar mais”, conclui.

*Publicado originalmente em IPS – Inter Press Service | Tradução de Marcos Diniz

*Imagem em destaque: Manifestação na cidade de Córdoba, capital da província homônima, localizada no centro da Argentina, em apoio ao aborto legal, seguro e gratuito e aos direitos das mulheres. A cor verde tem identificado o movimento em favor da legalização do aborto, que conseguiu que o parlamento aprovasse uma lei que permite a prática livre e gratuita no final de 2020. (Católicas pelo Direito de Decidir)

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